versão On-line ISSN 1807-5762
Interface (Botucatu) vol.20 no.59 Botucatu out./dez. 2016 Epub 13-Maio-2016
http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622015.0511
El objetivo de este estudio es describir los elementos clave de la atención centrada en el paciente y su relación con la práctica interprofesional colaborativa en la Atención Primaria de la Salud. El mismo se apoya en la revisión de literatura nacional e internacional. Los resultados muestran que cuando los profesionales desplazan su actuación hacia la atención centrada en el paciente y hacia las necesidades del paciente, amplían sus horizontes de actuación más allá de los límites de su propia profesión. Este desplazamiento es un componente positivo para el cambio del actual modelo de Atención a la Salud desde la perspectiva de la integralidad y con potencial impacto en la calidad de los servicios.
Palabras-clave: Atención centrada en el paciente; Atención Primaria de la Salud; Relaciones interprofesionales
A proposta de analisar a atenção centrada no paciente (ACP) na prática interprofissional colaborativa (PIC) é motivada por duas questões. A primeira decorre da ênfase das políticas de saúde e dos centros de pesquisa voltados para a PIC1-4 na ACP como um dos domínios essenciais para a colaboração interprofissional. A literatura sobre prática interprofissional também aponta a ACP como um elemento primordial do trabalho em equipe e da PIC5.
O segundo aspecto que motiva o estudo é que, embora a literatura estabeleça a ACP como domínio de competência da PIC1,6 e apresente bons resultados empíricos associados à ACP7,8, identifica-se ausência de uma definição consensual para o termo ACP, o que prejudica sua implementação9 e dificulta o diálogo entre a literatura nacional e internacional. Este diálogo é necessário para se compreender de que forma as contribuições internacionais sobre a ACP se aproximam das abordagens usuário-centradas descritas no Brasil.
A literatura mostra que a ACP constitui um dos domínios essenciais para a colaboração interprofissional e elemento primordial do trabalho em equipe e da PIC5. A orientação das equipes para ACP é um dos indicadores para diferenciação em três níveis crescentes de colaboração5 (potencial para colaboração, colaboração em desenvolvimento, colaboração ativa), e reserva a denominação de equipes com “colaboração ativa” àquelas que orientam suas ações tendo como foco o paciente e suas necessidades de saúde.
Análise dos elementos-chave da ACP e de sua relação com a PIC permitirá aprofundar estudos e intervenções para o fortalecimento do trabalho em equipe e da PIC centrados no paciente, que resultem em impacto na qualidade da atenção à saúde.
Este texto tem por objetivo descrever os elementos-chave da ACP e discutir sua relação com a PIC na atenção primária à saúde (APS) no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS).
Para identificar as contribuições nacionais na temática, foi conduzida revisão de literatura nas bases de dados BDENF, Lilacs e SciELO, utilizando o descritor “assistência centrada no paciente”, sem delimitação de tempo. A busca foi realizada no período de setembro de 2013 a fevereiro de 2014, com base nos critérios: estudos que tratassem da ACP como um dos assuntos principais e disponibilidade da publicação na íntegra de forma gratuita, sendo excluídas teses, dissertações e livros. Foram selecionados 14 artigos e acrescentadas quatro referências sobre o tema, presentes nos artigos revisados e de conhecimento das pesquisadoras10-14.
A busca na literatura internacional foi conduzida nas bases de dados Medline, Scopus e CINAHL, no mesmo período da busca nacional, utilizando os descritores “client centered care OR client centred care OR person centered care OR person centred care OR patient centered care OR patient centred care”. Para a seleção dos artigos, foram utilizados os mesmos critérios aplicados às bases de dados nacionais. Entretanto, a busca resultou em mais de vinte e quatro mil artigos científicos. Devido à marcante assimetria entre literatura nacional e internacional, evidenciada pela escassez de produção nacional sobre o tema e numerosa produção internacional com o uso dos descritores, optou-se por fundamentar a análise das contribuições internacionais em quatro artigos de revisão de literatura sobre avaliação, resultados e elementos centrais da ACP15-18.
Observou-se escassez de produção nacional diretamente relacionada à ACP, e que os artigos selecionados eram majoritariamente provenientes da área de Enfermagem. Os estudos referiam à ACP vinculada aos seguintes aspectos: 1) perspectiva ampliada do cuidado em saúde, 2) participação dos pacientes no cuidado, e 3) humanização.
Na perspectiva ampliada do cuidado em saúde, encontra-se o agrupamento de contribuições sobre atenção à saúde de forma holística13,19-26, integral13,20,24-28 e orientada a partir das necessidades em saúde13,19,21,22,24,25,28,29. Enquanto, no aspecto da participação do paciente no cuidado, observa-se predomínio dos conceitos de autonomia21,24-26,30, autocuidado12,19,21,22,29,31, valorização da experiência20,23 e da participação do paciente13,21,28,32.
A participação do paciente no cuidado é definida como oportunidade de exercício de cidadania do paciente em busca de autonomia (relacionada à ideia de liberdade, protagonismo, respeito à subjetividade)33, assim como é condição importante para autocuidado19,20,33. Compreende-se como autocuidado uma proposta de gestão do cuidado que incorpora colaboração entre a equipe de saúde e usuários, ao invés da atuação meramente prescritiva34,35.
Os achados da literatura mostram que a ACP foi associada à humanização, sobretudo ao âmbito relacional, de interações entre profissionais e pacientes. A necessidade de aprimoramento na relação entre profissionais e pacientes foi citada como condição fundamental para a ACP19,21,24,25,30, seja no contexto de resgate da condição humana19,24, na qualificação da assistência22,24,25,28,30,31 ou para o sucesso terapêutico26. São apresentados como valores para a ACP: empatia, respeito, solidariedade30, escuta, apoio psicossocial27, sensibilidade, afetividade, diálogo no cuidado em saúde25, acolhimento e vínculo20,24.
Os três aspectos identificados na literatura nacional sobre a ACP (perspectiva ampliada do cuidado em saúde, participação dos pacientes no cuidado e humanização) expressam propostas presentes na atual Política de Saúde no Brasil.
No cenário nacional das políticas de saúde, as abordagens que mais se aproximam da ACP, de acordo com os aspectos identificados na literatura, são: o processo de trabalho usuário centrado11, o método clinico centrado na pessoa/ medicina centrada no paciente36, o cuidado integral13, a Clínica Ampliada (CA)37 e a Política Nacional de Humanização (PNH), todos ancorados no princípio da integralidade38,39.
A CA integra a PNH e descreve a necessidade de ampliar o objeto de trabalho da clínica, de modo a contemplar a subjetividade dos envolvidos. Amplia-se, também, a finalidade do trabalho clínico, que, além de buscar a cura, prevenção, reabilitação e cuidados paliativos, passa a contribuir para o aumento da autonomia dos usuários.
A CA tem como eixo norteador a integralidade da atenção, a partir do pressuposto de que cada sujeito interfere ativamente em seu processo saúde/doença, sem desconsiderar a determinação social desse fenômeno39. Cabe refletir de que forma a integralidade, enquanto princípio, é por si só uma busca pela ACP, uma vez que critica a fragmentação das ações perante os pacientes e sugere um arranjo das práticas que amplie o olhar limitado ao funcionamento biológico, procedimento centrado e alheio à consideração do indivíduo inserido em um espaço coletivo40. Argumenta-se, portanto, que centrar a atenção no paciente implica considerá-lo unidade singular e partícipe de coletivos, ou seja, articular a dimensão individual e coletiva da atenção à saúde, tal como na concepção de integralidade da saúde.
O termo integralidade é usado para designar um dos princípios do SUS e expressa uma das bandeiras de luta do movimento sanitário41, de modo que se caracteriza como um norte para as práticas do sistema de saúde. Compreendemos integralidade como um termo polissêmico12,13 que se refere a: capacidade de resposta às necessidades, não restrita a condições morfológicas ou funcionais do organismo; integração e não-segmentação das ações de promoção, prevenção e recuperação da saúde; articulações interdisciplinares, intersetoriais e interprofissionais que proporcionem melhores condições na atenção à saúde, e a necessidade de qualidade das interações no cotidiano da atenção à saúde, com condições que permitam o diálogo entre as pessoas envolvidas no cuidado14.
Embora seja crescente o uso do termo patient centred care, não há consenso nas publicações sobre sua definição e os elementos-chave que o caracterizam.
Os estudos internacionais referiam a ACP vinculada a três aspectos: 1) perspectiva ampliada do adoecimento; 2) participação dos pacientes no cuidado, e 3) relação profissional e paciente.
Na perspectiva ampliada do adoecimento, observam-se as definições pautadas nas contribuições de Stewart e autores42, reconhecidos pelo detalhamento dos princípios para a medicina centrada no paciente, que inclui a compreensão de fatores sociais e psicológicos à compreensão das doenças15. O modelo biopsicossocial é descrito como elemento-chave da ACP16, entretanto problematiza-se a necessidade de ampliação da perspectiva biopsicossocial, pela compreensão da singularidade de cada paciente16 e necessidade de percepção integral de atenção à saúde17,42.
Sobre a participação dos pacientes no cuidado, observou-se destaque à importância do envolvimento entre médico e paciente18,43 por meio do compartilhamento de informações15, objetivos, poder e responsabilidades18. O envolvimento do paciente como parceiro no cuidado é descrito como a base da ACP. Isso inclui a compreensão do paciente acerca de sua situação16,17,44 e a participação no processo de tomada de decisões17,44, ao invés de uma relação paternalista entre profissionais e pacientes, como descrito por Parsons45. Nesse sentido, a tomada de decisões compartilhadas é descrita como uma técnica da ACP, a ser empregada na busca de consenso entre profissionais e pacientes17.
A literatura internacional descreve a relação profissional-paciente como essência de modelo conceitual da ACP15, sobretudo, pela necessidade de reconhecimento da subjetividade do paciente e do médico, e da construção de aliança terapêutica15,17,18. Na relação profissional-paciente, elementos centrais, como respeito à escolha dos pacientes e comunicação efetiva, são citados na maioria das descrições da ACP15-18,42,43, com destaque para a comunicação aberta acerca da expertise profissional e do paciente, em um fluxo de troca de informações e conhecimento46. Kitson et al.43 conduziram estudo de revisão baseado na literatura de enfermagem e de políticas públicas de saúde, e corroboram a importância da relação profissional-paciente, porém, ampliando o escopo da atuação profissional para além dos profissionais médicos, na perspectiva interprofissional.
Além das quatro revisões selecionadas, outras publicações sobre ACP a consideram como um modelo de atenção à saúde que é amplamente discutido nos sistemas de saúde ao redor do mundo47 em decorrência da identificação de limites do modelo biomédico convencional.
Diversos países, como Estados Unidos e o Reino Unido, têm adotado políticas de implementação da ACP. Nos estudos americanos, observa-se a ACP inserida no contexto da discussão da Reforma do Sistema de Saúde utilizando o termo Patient Centred Medical Home (PCMH)48, definido, por pesquisadores, como modelo amplamente visado de reforma do sistema de saúde que enfatiza a APS e a ACP. No Reino Unido, a ACP foi classificada por autores como fundamental para a prestação de cuidados médicos de alta qualidade do atendimento e diminuição de erros médicos16,49.
A ACP também é apontada como um atributo da PIC associado à segurança do paciente e qualidade da assistência 50-52.
Considerando o contexto nacional do SUS, seus princípios e diretrizes, com destaque para a integralidade da saúde, participação social e trabalho em equipe, a análise dos elementos-chave da ACP, baseada na literatura nacional e internacional, remete à seguinte síntese: a perspectiva ampliada do adoecimento, presente na literatura internacional, alarga-se para a perspectiva ampliada do cuidado à saúde; o compartilhamento de poder e responsabilidade entre profissionais e pacientes, que remete à participação dos usuários na tomada de decisão sobre seus cuidados, passa a contemplar, também, a participação e controle social da população no planejamento e organização da atenção à saúde em rede; e a relação profissional e paciente, que se refere à dimensão da comunicação e interação, dada a complexidade das necessidades de saúde e da organização dos serviços em rede, estende-se às relações interprofissionais.
A análise das contribuições da literatura nacional e internacional sobre os atributos que caracterizam a ACP permite identificar um consenso em torno de três elementos-chave: 1) perspectiva ampliada do cuidado à saúde16-18,28-30,53, que coloca a necessidade do reconhecimento e resposta integral às necessidades de saúde de usuário, família e comunidade; 2) participação do paciente no cuidado27,42,43, que remete à necessidade de empoderamento e apoio para o autocuidado e autonomia15,19,21,22,24-27,30,34,42,43, e 3) relação profissional e paciente13,14,18-20,24,25,30,42,43, que contempla a expressão da subjetividade dos partícipes enquanto sujeitos dotados de autonomia.
Tais elementos-chave permitem uma análise das relações entre ACP e PIC, corroborando a relação recíproca entre ambos, apontada na literatura1,6.
Esse elemento central da ACP refere-se: à resposta às necessidades dos pacientes sem reducionismo às dimensões de patologia e fisiologia; à atenção à saúde que busque integrar ações de promoção, prevenção, recuperação da saúde e reabilitação, respeitando e contemplando as articulações interprofissionais, interdisciplinares e intersetoriais na rede de atenção à saúde. Identificam-se diferenças na literatura nacional e internacional, pois esta última remete à abordagem integral ou biopsicossocial, enquanto, no cenário nacional, observa-se a busca pela ampliação da perspectiva biopsicossocial desde as discussões iniciais do SUS, com base na abordagem histórico-social das práticas de saúde54 e o reconhecimento dos determinantes sociais do processo saúde-doença10.
A perspectiva ampliada do cuidado à saúde se refere à atuação profissional e concepções de saúde que remetem ao reconhecimento da necessidade de um elenco variado de profissionais, de modo a contemplar as múltiplas dimensões presentes nas necessidades de saúde de usuários, famílias e comunidade. Assim, a complexidade das necessidades de saúde e da organização dos serviços aponta para a tendência crescente de substituição da atuação isolada e independente dos profissionais pelo trabalho em equipe, colaboração interprofissional e a PIC1,6.
A literatura aponta imprecisão da terminologia e ausência de consenso quanto às diferenças e similaridades entre trabalho em equipe e colaboração interprofissional. Autores sugerem que a colaboração interprofissional possa ser compreendida como um termo amplo que engloba demais termos: a PIC, referida à colaboração interprofissional efetivamente implementada nos cenários de práticas, e o trabalho em equipe, como nível mais profundo de trabalho integrado e interdependente55. A colaboração interprofissional é interpretada como um movimento a partir do “uni/multiprofissional” para o “interprofissional”55, e da cooperação (trabalho cooperativo estruturado em torno da divisão do trabalho e de objetivos comuns) para a colaboração, que envolve a determinação e busca para alcançar um mesmo objetivo55, com benefício mútuo de usuários e profissionais.
A escassez de estudos empíricos nacionais sobre a colaboração interprofissional e PIC limita, ainda mais, a possibilidade de compreensão acerca da relação da temática com o trabalho em equipe e ACP. Até o momento, podemos observar que as características do trabalho em equipe efetivo (interação, articulação, interdependência, reflexividade e objetivos comuns)56,57, se limitadas ao contexto das equipes, são insuficientes para lidar com a crescente complexidade do cuidado na perspectiva ampliada do cuidado à saúde. Isto porque esta perspectiva remete à rede de atenção e à prática comunicativa.
A prática comunicativa, caracterizada pela busca de consensos, é fundamental para que os profissionais possam arguir mutuamente no trabalho executado em equipe e construir um projeto comum pertinente às necessidades de saúde dos pacientes57. Compreende-se que, no contexto da ACP e PIC, amplia-se a necessidade da prática comunicativa para além da própria equipe, contemplando a necessidade de colaboração, também, com outras equipes e serviços.
Portanto, a prática comunicativa na atenção à saúde inclui a perspectiva de participação dos usuários, família e comunidade na construção do referido projeto comum de resposta às necessidades de saúde, bem como a participação social.
A participação do paciente no cuidado e participação social diz respeito ao reconhecimento da singularidade do paciente, que é compreendido como único e um ser de competência moral, consciente sobre si e participante do cuidado16. A participação social que expressa relação entre sociedade civil e Estado, exercida no SUS por meio dos Conselhos Gestores e Conferências de Saúde58, estende o compartilhamento de tomada de decisão da esfera do projeto terapêutico para a gestão do sistema de saúde.
A ACP destaca a necessidade de se estimular a participação do usuário e seus familiares nas tomadas de decisão sobre o cuidado, bem como a participação social no plano coletivo de acompanhamento do planejamento, tomada de decisão e execução das políticas de saúde e ações de saúde.
Os achados da literatura acerca do envolvimento do paciente corroboram, no Brasil, as diretrizes e princípios da Política Nacional de Atenção Básica59, que preconiza a participação dos usuários como forma de ampliar a capacidade das pessoas e coletividades no enfrentamento dos determinantes e condicionantes de saúde59.
Entretanto, na contramão do respeito à participação do paciente, família e comunidade, estão as práticas clínicas marcadas pelo poder hegemônico da Biomedicina60, as relações assimétricas entre diferentes categorias profissionais e entre profissional e paciente5,61.
A ACP subentende o desejo dos pacientes de participarem da equipe de cuidados, como responsáveis por seu próprio cuidado. Entretanto, problematiza-se a necessidade de informação, reflexão e investimentos para que a delegação da tomada de decisões aos pacientes se torne uma realidade52.
Esse elemento da ACP abarca a interação com o usuário, família e comunidade e, também, a interação entre os profissionais. A relação entre os profissionais de saúde e os usuários é considerada importante para o sucesso ou insucesso das condutas terapêuticas. A construção de vínculos e a confiança são reconhecidos como condições fundamentais com potencial de impacto tanto na qualidade dos cuidados como nos custos da atenção à saúde.
Na análise da relação profissional-paciente, observa-se a relação de poder discutida por Foucault. O autor discorre acerca da relação entre conhecimento e poder, em que o médico usa seu saber para exercer controle do “corpo” de seus pacientes61. Como formas de dispersão do conhecimento e poder médico na sociedade contemporânea, Foucault analisa a necessidade de voltar o olhar dos cidadãos à autoridade sobre si mesmos e controle de suas condutas62. O empoderamento dos pacientes envolve torná-los conhecedores de seus corpos e condições patológicas, para que estejam aptos a tomarem decisões em saúde, o que pode ser compreendido como um ato de cidadania63, em que os pacientes, munidos do direito de advogar em seu próprio favor, também se tornam responsáveis por manter sua saúde52.
Fox e Reeves52 discorrem acerca da extensão do poder médico a uma gama de profissionais e pacientes/ famílias/ comunidade. Os autores argumentam que a classe social, idade e escolaridade são alguns dos fatores que influenciam a busca de informação por parte dos pacientes, e suscitam o questionamento se a ACP favoreceria apenas grupos socioeconômicos mais privilegiados. Discute-se que pacientes de grupos socioeconômicos menos privilegiados, ao tentarem compreender mais sobre suas doenças, podem ser taxados negativamente ou reprimidos pelos profissionais de saúde. Nesse sentido, o grau de envolvimento e participação dos pacientes no cuidado está relacionado a quanto se sentem confortáveis para questionarem a autoridade profissional e a qualidade da relação, o que remete à esfera da interação e comunicação entre pacientes e profissionais. O plano das interações e comunicação também é decisivo nas relações interprofissionais de colaboração.
Problematiza-se que, embora a PIC e ACP contemplem o reconhecimento das distintas profissões, os profissionais médicos continuam sendo os “principais provedores de acesso dos pacientes a demais profissionais e serviços de saúde”52 (p. 116). Na APS brasileira, cabem majoritariamente aos médicos: as prescrições medicamentosas, solicitação de exames, procedimentos e encaminhamento a demais profissionais. Tal assimetria no escopo profissional é refletida nas diferenças salariais entre os profissionais de saúde. Argumenta-se, portanto, que o movimento para a prática colaborativa e ACP deva ser acompanhado por compartilhamento genuíno do cuidado entre as profissões, com a correspondente corresponsabilização de todos os profissionais envolvidos e a ampliação do escopo de prática das profissões não médicas. Este processo de mudança já está em curso, dada a complexidade das necessidades de saúde e dos serviços, e também requer mudanças nas estruturas convencionais de poder, incluindo aspectos legais, políticos e econômicos52.
Tanto a PIC quanto a ACP têm sido abordadas na literatura como temas distintos ou considerando a ACP como tema subjacente à PIC. Entretanto, observa-se inter-relação entre ambos, sobretudo na literatura canadense, com o conceito de prática interprofissional colaborativa centrada no paciente, que é definida como a contínua interação entre dois ou mais profissionais ou disciplinas, organizadas em um esforço comum para resolver ou explorar questões comuns, incluindo, ao máximo, a participação do paciente64.
Identificam-se, na literatura canadense, as contribuições de D’Amour et al.5 e Orchard et al.1 para o entendimento da colaboração nas práticas interprofissionais de saúde. D’Amour et al.5 analisam que a colaboração está baseada na premissa de que os profissionais querem trabalhar juntos para melhorar a atenção à saúde, ao mesmo tempo que têm seus próprios interesses e almejam reter algum grau de autonomia no trabalho. A autora refere que a colaboração interprofissional permite, por meio da negociação e participação, construir objetivos comuns da equipe centrados na atenção às necessidades de saúde dos usuários.
Orchard et al.1 discute que, na atualidade, ainda predomina a prática multiprofissional na qual cada um procede à avaliação e planejamento do cuidado ao paciente de forma independente, e que a PIC representa um desafio e mudança que deve ser empreendida pelas diferentes profissões em parceria com usuários. Segundo a autora, a mudança está assentada em um conjunto de atributos da própria colaboração, como: participação, planejamento e tomada de decisão compartilhada, coordenação e compartilhamento de poder, e, sobretudo, parceria e participação do usuário.
Nesse sentido, a PIC que se constrói no exercício do diálogo entre os profissionais e destes com os usuários, famílias e comunidade, contempla a participação de todos os sujeitos envolvidos nos processos de decisão acerca do cuidado à saúde, e avança na construção de relações mais simétricas.
À medida que os profissionais centram atenção no usuário e suas necessidades de saúde em todo processo de trabalho, construindo a ACP na prática de cuidado, operam, simultaneamente, um deslocamento de foco para um horizonte mais amplo e além de sua própria atuação profissional, que se restringe ao âmbito da profissão e da especialidade. Este deslocamento dirige-se à prática compartilhada com profissionais de outras áreas.
A mudança de foco das profissões e serviços para o foco no paciente e suas necessidades de saúde, portanto para ACP, é apontada como componente de mudança do modelo de atenção, com potencial para melhorar a qualidade dos cuidados à saúde e imprimir maior racionalidade aos custos dos sistemas de saúde49. A literatura mostra que a ACP pode gerar bons resultados clínicos, de custo e efetividade. Com pacientes em condições crônicas (diabetes65,66, doenças cardíacas67,68 e demência69), a ACP influenciou positivamente tanto os indicadores biológicos (hemoglobina glicada, triglicérides e HDL) quanto o tempo de permanência hospitalar ou institucionalização67,68,70.
Qualidade e custos do sistema se encontram, em esfera global, pressionados pela crescente incorporação tecnológica e excessiva, e, muitas vezes, inoportuna utilização de especialidades profissionais; e há indicativos de que podem ser melhorados, em especial, no que se refere aos resultados da atenção à saúde, com a PIC. Estudos mostram impacto da colaboração interprofissional: nos cuidados à saúde, na redução de absenteísmo profissional, na maior satisfação com o ambiente de trabalho, a segurança do paciente, e a melhoria na qualidade do cuidado71-74.
Por um lado, a análise da produção nacional e internacional permitiu identificar três elementos-chave da ACP que transcendem as diferentes categorias profissionais no contexto das políticas públicas de saúde: perspectiva ampliada do cuidado à saúde, participação do paciente no cuidado e participação social, e relação interprofissional e profissional/paciente. Por outro, estes mesmos elementos-chave estão também presentes no processo que configura a organização dos serviços e da rede de atenção na modalidade de trabalho em equipe e prática interprofissional. O que mostra a relação recíproca, de dupla mão e influência, entre ACP e prática interprofissional.
Para concluir, cabe destacar que as mudanças na perspectiva da PIC se darão à medida que, efetivamente, as práticas de saúde estiverem focadas nos usuários, e, portanto, orientadas às suas necessidades de saúde de forma integral. O que significa que o exercício cotidiano de trabalho dos diferentes profissionais se configure de forma colaborativa e em parceria com usuários, famílias e comunidade.