versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.4 Rio de Janeiro abr. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017224.28632016
A consolidação de sistemas nacionais de saúde universais em diferentes países tem exigido a conformação de regiões de saúde capazes de dar organicidade e concretude ao funcionamento deles1. No Brasil, a proposta da constituição de regiões e redes de saúde ganha relevância política no início do século XXI, tendo por objetivo combater a fragmentação da atenção, ampliar o acesso, garantir a equidade e a universalidade. No entanto, a regionalização da saúde no país é uma diretriz de enorme complexidade, tendo em vista as desigualdades e as diversidades regionais, a abrangência das atribuições do Estado na saúde, o arranjo federativo trino e a multiplicidade de atores (governamentais e não governamentais, públicos e privados) envolvidos na condução e na prestação da atenção à saúde.
Na política recentemente implementada no país, a Rede de Atenção à Saúde (RAS) é considerada a organização do conjunto de serviços de saúde, de forma não hierárquica, vinculados entre si por uma ação cooperativa que visa à garantia de oferta de atenção contínua e integral à determinada população2. Nesta RAS espera-se que a Atenção Primária à Saúde (APS) se constitua como porta de entrada preferencial, principal provedora da atenção e coordenadora do cuidado3. A constituição de redes de saúde com estas características tem sido associada a ações e serviços com melhor qualidade, mais custo-efetivos, com maior satisfação dos usuários e melhores indicadores globais de saúde em diversas realidades4-6.
A centralidade da coordenação da APS na organização dos sistemas e redes de saúde vem sendo crescentemente destacada na literatura. Apresenta forte associação com a ampliação do acesso, continuidade do cuidado, qualidade da atenção, satisfação do paciente, melhor utilização dos recursos financeiros disponíveis, além de impactos positivos na saúde da população7-11. Assim, tem sido considerada central para o manejo de pacientes com doenças crônicas12,13, condição cada vez mais comum na população em virtude das transições demográfica e epidemiológica. Para esta parcela da população, é cada vez mais premente, ao longo da vida, a necessidade de acessar com frequência vários pontos da rede de atenção; ter contato com diferentes categorias profissionais; e ser beneficiária de ações de promoção e prevenção contínuas. Este cenário exige uma APS robusta, capaz de coordenar o percurso terapêutico do usuário e facilitar a prestação de serviços e ações de saúde em local e tempo oportunos14,15.
O debate na literatura internacional sustenta a importância da coordenação do cuidado, fortemente apoiada por sistemas que facilitem a comunicação entre prestadores. Contudo, ressalta-se a necessidade de adaptação aos diferentes contextos, tendo como norte a universalização do acesso com qualidade na atenção à saúde. Reconhece-se que a coordenação significa coisas diferentes para diferentes atores e que não há uma definição amplamente desenvolvida16. A literatura reflete o dissenso até mesmo em relação a como nomeá-la: ‘coordenação entre níveis assistenciais’ ou ‘coordenação dos cuidados’?17. Também se observa o uso indiscriminado dos termos continuidade, coordenação e integração, que se reflete nas diversas formas de mensurar tal atributo18,19.
Assume-se neste texto uma concepção da coordenação de cuidados que a considera como uma articulação harmoniosa entre diferentes profissionais e serviços de saúde, que tem por objetivo comum garantir uma atenção integral e de qualidade aos usuários, de acordo com suas necessidades20. Uma coordenação do cuidado efetiva se sustenta em três pilares de coordenação: a da informação, a clínica e a administrativa/organizacional. A primeira compreende as diversas ações que garantem que as informações sobre o usuário estejam disponíveis em todos os pontos de atenção e para todos os profissionais envolvidos. A coordenação clínica parte de uma APS robusta e fortalecida, que permite a provisão do cuidado sequencial e complementar entre os níveis de atenção. A administrativa corresponde aos fluxos e processos organizativos da rede de atenção à saúde que permitem a integração entre os distintos níveis do sistema de saúde21.
No SUS, com seu arranjo descentralizado e responsabilidades concorrentes, agrega-se barreiras para a coordenação de cuidados. Na perspectiva de um sistema integrado, a construção de rede regionalizada implica em estratégias de planejamento e gestão compartilhadas pelos entes federados para o enfrentamento do conjunto de problemas de saúde que transcendem a capacidade gestora de apenas uma esfera subnacional22. Nesse sentido, considera-se a necessidade de pesquisas que busquem analisar, no âmbito das redes e regiões de saúde, as potencialidades das equipes de atenção básica para assumir a coordenação tanto na esfera local, como para além dos limites municipais, no espaço regional23. O objetivo deste artigo é analisar a coordenação do cuidado pela APS, especialmente para usuários portadores de condição crônica, na percepção de gestores e usuários, tendo como pano de fundo o processo de construção da RAS em uma região do Estado de São Paulo.
Este artigo apresenta parte dos resultados da pesquisa “Política, Planejamento e Gestão das Regiões e Redes de Atenção à Saúde no Brasil”, que analisa o processo de construção das RAS regionais a partir das macrodimensões da política, da estrutura e da organização. Os resultados referem-se à APS, especialmente no seu papel de coordenação do cuidado na rede regionalizada. Partiu-se da premissa de que a APS é um dos condicionantes da dinâmica regional da saúde, sendo essencial para a conformação das redes de saúde. Foi realizado estudo de caso de abordagens quantitativa e qualitativa, procedendo-se à triangulação dos dados, especialmente entre a percepção dos gestores e a experiência dos usuários acometidos pelo evento traçador escolhido, além de análise documental e de dados secundários.
As dimensões e as variáveis utilizadas para análise dos três pilares da coordenação do cuidado (informação, clínica, administrativa/organizacional) são apresentadas no Quadro 1. Estas dimensões abarcam elementos centrais para a realização da coordenação já utilizadas em outros estudos24: posição ocupada pela APS no sistema; capacidade de resolução da APS; estrutura organizacional e administrativa da rede de serviços de saúde; integração entre equipes e serviços; organização de fluxos entre APS e Atenção Especializada (AE) e com a Rede de Urgência e Emergência (RUE); e instrumentos para continuidade informacional.
Quadro 1 Coordenação do cuidado: pilares, dimensões e variáveis utilizadas na análise, Barretos, SP, 2015.
Pilares | Dimensões | Variáveis |
---|---|---|
Clínica | Posição ocupada pela APS no sistema | APS como porta de entrada preferencial na região |
Acesso à AE depende de encaminhamento da APS | ||
Responsável pela coordenação do cuidado | ||
Capacidade de resolução da APS | Coleta de exames na UBS | |
ECG na UBS | ||
Dispensação de medicamentos para HAS na UBS | ||
Quantidade suficiente de medicamentos para HAS | ||
Orientação à alimentação saudável e atividades físicas | ||
Principal responsável por pessoas com HAS | ||
ACS realizam busca ativa por usuários com HAS | ||
Aferição de PA em todas as consultas | ||
Estratificação de risco cardiovascular | ||
Avaliação de risco de doença renal | ||
Grupos de educação em saúde específicos para pessoas com HAS | ||
Uso de protocolo clínico HAS | ||
Organização da atenção ao paciente HAS com base em classificação de risco | ||
Capacidade de resolução após AVE | Acompanhamento de todos os pacientes da área com AVE | |
Oferta de ações de reabilitação | ||
ACS realiza visita domiciliar após internação | ||
Médico ou enfermeiro realiza visita domiciliar após internação | ||
Apoio do NASF | ||
Administrativa/organizacional | Estrutura Administrativa e Organizacional | Composição público privada da atenção secundária, SADT e reabilitação |
Organização dos fluxos para AE | Garantia de encaminhamento oportuno para demais níveis de atenção | |
Existência de fluxos assistenciais definidos | ||
Integração dos serviços na região | ||
Encaminhamento oportuno para cardiologia, neurologia e reabilitação | ||
Encaminhamento para AE de pacientes com HAS grave, refratária ou secundária | ||
Percurso padronizado e facilitado para acesso dos paciente à AE | ||
Existência de monitoramento de filas para AE | ||
Integração APS na RUE | ||
Integração entre equipes e serviços | Equipe da APS é informada da internação de paciente no hospital | |
Médicos da APS acompanham pacientes na internação | ||
Equipe da APS recebe relatório de alta hospitalar com plano terapêutico. | ||
Na alta o usuário é orientado a procurar a APS | ||
Médicos da APS contatam especialistas da AE para troca de informações | ||
Médicos especialistas contatam os médicos da APS para troca de informações | ||
Equipe da APS recebe informações escritas das consultas com especialistas | ||
Atividades de educação conjunta dos profissionais da APS e da AE | ||
Equipe da APS é notificada de atendimento de usuário na RUE. | ||
Continuidade informacional | Instrumentos para continuidade informacional | Uso de Prontuário eletrônico |
Uso de Protocolo clínico | ||
Registro do diagnóstico HAS no prontuário |
Para os usuários, foi utilizado o mapeamento dos itinerários terapêuticos (IT), metodologia que tem potencialidades para análises das redes de serviços de saúde, ainda pouco explorada na literatura nacional25. Na composição do itinerário, duas lógicas diferenciadas aparecem: a dos serviços de saúde e a dos usuários e suas famílias. A lógica dos serviços de saúde é materializada pelo exercício profissional e pela organização do sistema de saúde. Já a lógica dos usuários e de suas famílias é determinada pelas necessidades percebidas e pelas escolhas ou opções possíveis. Se expressa em trajetórias próprias construídas a partir da utilização dos diferentes serviços de saúde e de outros pontos de cuidado que não pertencem ao sistema de saúde26. Na presente investigação priorizou-se a observação da trajetória e comportamento do paciente no interior do sistema de saúde, identificando-se os distintos pontos e formas de acesso aos serviços.
Para a realização do IT foi escolhido um traçador, como proposto por Kessner et al.27, que parte da premissa de que alguns problemas de saúde podem ser particularmente úteis para a análise da prestação de serviços e da interação entre prestadores, usuários e sociedade. O agravo selecionado foi o Acidente Vascular Encefálico (AVE) decorrente de Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS), por sua alta prevalência, passível de ser evitado pela APS e por ter fluxos estabelecidos entre os diversos níveis de atenção28.
A definição do local de estudo partiu de tipologia das 431 regiões de saúde brasileiras elaborada tendo por base a situação socioeconômica e a complexidade e oferta dos serviços de saúde29. A região de saúde de Norte-Barretos, localizada no norte do Estado de São Paulo, foi escolhida intencionalmente entre as classificadas como de alto desenvolvimento socioeconômico e alta oferta de serviços. Esta opção garantiu a exclusão de regiões com estruturas tão deficientes que por si só não permitiriam a priori a coordenação dos cuidados pela APS.
No entanto, no pré-campo identificou-se a existência de dinâmica regional unificada, tanto do ponto de vista da política, quanto da estrutura e da organização dos serviços entre as regiões correspondentes às Comissões Intergestores Regional (CIR) Norte-Barretos e Sul-Barretos. Optou-se assim pela realização da pesquisa nas duas regiões, denominadas a partir de agora por Barretos.
Com 18 municípios, a população das regiões Barretos é de 410.000 habitantes com indicadores socioeconômicos inferiores aos do Estado de São Paulo e superiores à média nacional (IBGE 2010). A rede de APS é composta por 97 Unidades Básicas de Saúde (UBS), com média de 4,7 unidades por 20.000 habitantes; a cobertura da Estratégia de Saúde da Família (ESF) é de 56,7%, contando com o apoio de sete equipes do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF).
A AE é ofertada por 38 equipamentos, públicos e privados conveniados. Dentre estes destacam-se os Ambulatórios Médicos de Especialidade (AME) clínico e cirúrgico da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES-SP). Os AME se configuram em importante política da SES-SP para diminuir a insuficiência de consultas de especialidades, exames de imagens e cirurgias ambulatoriais, todos geridos por organizações sociais de saúde. Em Barretos, a gerência dos AME é da Fundação Pio XII. Esta Fundação é responsável pelo Hospital de Câncer de Barretos, importante referência nacional de atendimento a pacientes oncológicos e referência internacional em ensino, pesquisa e serviços de prevenção e diagnóstico de câncer. Este hospital atende somente pacientes do SUS em seus 246 leitos. A Santa Casa de Barretos é o principal hospital geral da região, com 163 leitos; existem ainda mais 12 hospitais de porte inferior na região.
Entrevistas com aplicação de questionários foram realizadas com 18 gestores/gerentes (gestores municipais e regionais, coordenadores da APS nos municípios e gerentes de Unidades Básicas de Saúde).
As entrevistas distribuíram-se em cinco dos 18 municípios da região: o polo; dois com maior número de estabelecimentos de saúde, excluindo esse; e dois com menor número. Garantiu-se assim a análise de diferentes inserções dos gestores na dinâmica regional. A escolha das UBS para entrevistas de gerentes contemplou características de estrutura mais comuns na região30.
O questionário estruturado incluiu perguntas relativas à coordenação do cuidado em geral, ao paciente com HAS e ao cuidado oferecido após o AVE. Com diversos formatos de questões (sim/não; escala de Likert; semiabertas) as respostas foram analisadas em percentuais no caso das perguntas sim/não, e as questões respondidas na Escala Likert transformadas em números (variando de sempre = 5 até nunca = 1), sendo calculadas médias e apresentadas em gráficos.
Para a identificação dos potenciais entrevistados foram selecionadas as Autorizações de Internações Hospitalares (AIH) da região de Barretos com diagnóstico principal de AVE, ocorridas no período de até sete meses prévios ao trabalho de campo, realizado em agosto de 2015. Dos três hospitais que atenderam estes pacientes, um não permitiu o acesso da equipe de pesquisa. Inicialmente os prontuários foram analisados, sendo excluídos pacientes com causa primária não relacionada à HAS ou com comprometimento cognitivo e/ou de fala importantes. Coincidentemente todos os selecionados residiam nos municípios de Barretos ou Bebedouro, que concentram a maior parte da população. Os endereços registrados nas AIH possibilitaram a identificação das UBS referência, que foram visitadas para a análise do prontuário.
Foram realizadas seis entrevistas com usuários e principais cuidadores, todas no domicílio. Os usuários tinham idade entre 47 e 70 anos, com predominância do sexo masculino, nenhum afiliado ao setor privado e no geral com baixas condições socioeconômicas.
Roteiro orientador estimulou a entrevista; a saturação foi obtida pela identificação e repetição de pontos de atenção acessados por estes usuários. As entrevistas foram gravadas, transcritas e posteriormente reconstituídas na forma de narrativa, a fim de prover uma compreensão aprofundada em perspectiva temporal. Realizou-se leitura transversal priorizando-se a identificação das categorias analíticas expressas no Quadro 1.
Para sistematizar a análise da coordenação na região, os resultados das entrevistas com gestores foram contrastados com as trajetórias experenciadas pelos usuários.
Este estudo foi aprovado pelo comitê de ética da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
A construção da RAS em Barretos tem como traço central o protagonismo de entidade filantrópica, a Fundação Pio XII, na organização, gerência de serviços de saúde e na governança regional. Ademais da gestão e oferta de serviços de saúde, assume a formação de médicos em escola de medicina própria, residência médica e pós-graduação com importante componente de pesquisa; conta inclusive com fábrica de carretas adaptadas para oferta de serviços móveis de prevenção e diagnóstico de câncer. A política de recursos humanos da instituição inclui plano de carreira e corpo clinico com dedicação exclusiva; atende apenas pacientes do SUS, embora 40% do financiamento seja obtido através de contribuição direta da sociedade. Pode ser caracterizada como um holding do setor saúde.
Com a gestão dos AME, a necessidade de constituição da RAS com uma APS robusta ficou evidente para os gestores da Pio XII: se nós conseguimos aqui, no Hospital de Câncer dar um atendimento reconhecido internacionalmente como de ótima qualidade, por que a Atenção Básica não pode ter também um atendimento desse tipo?
Desta forma, na região, a Fundação Pio XII se relaciona com a APS em todos os municípios da região, especialmente através da realização de exames de rastreamento para cânceres ginecológicos realizados em unidades móveis. Segundo um gestor do SUS: Eles fazem para a gente esses dois rastreamentos: coleta de Papa e todo o seguimento....e mamografia... através do Departamento de Prevenção. Esta oferta compete com a das UBS, uma vez que a população conhece a periodicidade das unidades móveis e prefere este atendimento, como afirma um gestor: as mulheres se habituaram já com essa coleta.
Além disso, através do AME clínico, a Fundação Pio XII desenvolve um projeto chamado de “Matriciamento”, que inclui diagnóstico das demandas dos municípios da região por especialidades; estabelecimento de protocolos de encaminhamento com treinamento das equipes municipais; e gestão da fila das especialidades com maior tempo de espera nos municípios. Exemplificando este projeto, um entrevistado relata: Havia uma demanda muito grande por endócrino e pneumologia ..... Conversamos com os médicos: por que vocês encaminham tudo? ‘Ah, eu pensei que era para encaminhar para o especialista’.....Conclusão os médicos da APS do município: chamaram de volta aqueles pacientes da lista e enxugaram a fila.
Há consenso entre os gestores que a APS deveria ser a porta de entrada do sistema, no entanto, reconhecem a existência de entraves para esta efetivação. Algumas das dificuldades elencadas foram: preferência da população por atendimentos mais pontuais e rápidos; priorização política e financeira da AE pela gestão; falta de médicos com adequada formação generalista; dificuldades para acesso às UBS (especialmente horário de funcionamento); e a baixa capacidade resolutiva destas.
No Gráfico 1 visualiza-se que os gestores consideram o acesso à AE condicionado ao encaminhamento pela APS. No caso da Rede de Atenção às Pessoas com Doenças Crônicas (RAPDC), a porta preferencial seria também, na maioria das vezes, a APS.
A perspectiva dos gestores quanto a indicadores da capacidade de resolução da APS para usuários hipertensos e para aqueles que sofreram AVE é também apresentada no Gráfico 1. Nas atividades voltadas para o hipertenso, chama a atenção que apenas dois dos 13 indicadores obtiveram escore alto (acima de 4): ‘busca ativa por ACS’ e ‘aferição de PA em todas as consultas’. Algumas atividades essenciais (‘dispensação de medicamentos’, ‘realização de ECG’; ‘orientações alimentares e de atividades físicas’) obtiveram escores muito baixos, sugerindo que tais atividades são pouco frequentes.
Para os gestores, a APS apresentaria capacidade de resolução boa ou regular após o episódio de AVE (escore igual ou superior a 3,5 para 4 dos 5 indicadores), todavia, o apoio do NASF é pouco frequente.
A rede de APS é pública própria, predominantemente com funcionários estatutários; as consultas médicas especializadas são ofertadas por diferentes tipos de serviços e formas de contratação: serviços públicos com funcionários estatutários, serviços públicos gerenciados por OSS (em especial os AME estaduais), além de serviços privados contratados. Os serviços de diagnóstico por imagem mantêm este perfil, com maior peso para os públicos gerenciados por OSS. No entanto, os exames bioquímicos têm nítido predomínio dos serviços privados contratados.
A capacidade instalada da RAS na região foi considerada insuficiente pelos gestores (83%), especialmente para consultas especializadas e SADT, o que se reflete em problemas nos fluxos assistenciais. Os gestores indicam que os encaminhamentos para cardiologia e neurologia não são realizados em tempo oportuno na maioria das vezes, no entanto, o acesso aos serviços de reabilitação física tem um perfil um pouco melhor.
Para 75% dos gestores, o fluxo assistencial está definido e há integração entre os serviços na região. No entanto, os meios de integração citados são praticamente restritos aos mecanismos de referência e contrarreferência tradicionais, como fichas, protocolos de encaminhamento e o serviço de regulação. Quando indagados acerca da integração entre a APS e os serviços de emergência, o percentual é mais baixo (59%), sendo quase consenso que a contrarreferência da RUE para a APS não ocorre (83%).
Não existe uma única forma para encaminhamento do usuário da APS para a AE, as modalidades mais citadas foram o agendamento pelo próprio paciente junto à central de marcação e agendamento pela UBS com posterior comunicação ao paciente. Também não há monitoramento das filas para a AE e SADT e, evidentemente, critérios de risco não são utilizados para sua gestão.
No caso de HAS secundária ou refratária, os gestores opinam que a maioria dos pacientes são encaminhados para a AE sempre ou quase sempre.
Após o evento de AVE, os gestores consideram que o compartilhamento da responsabilidade entre APS e AE não ocorre frequentemente. No Gráfico 2 é possível visualizar os indicadores de integração equipe-serviços e os instrumentos de continuidade informacional. Observa-se que, à exceção de “uso de protocolo clínico” e “orientação para consulta na APS após a alta”, todos os indicadores obtiveram escore menor que 3. Pode-se afirmar que são precários os mecanismos que asseguram a continuidade do cuidado e a integração dos serviços, inclusive a informação elementar de “registro do diagnóstico de HAS no prontuário clínico”.
As narrativas dos usuários foram organizadas a partir do evento do AVE. Todos os entrevistados identificaram os sintomas como uma situação grave, com risco de vida. Note-se que esta identificação decorreu mais da experiência de vida do que de orientações dos serviços de saúde, já que nenhum entrevistado havia sido informado sobre os sinais de alerta de complicações da HAS, como AVE ou infarto agudo do miocárdio (IAM).
O Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) apareceu como um importante recurso, acionado por familiares ou vizinhos através de ligação à central telefônica por quatro dos entrevistados. A assistência chegou rapidamente, levando os pacientes para os hospitais de referência de AVE na região. Em dois itinerários ocorreu o uso de transporte próprio, como o carro de vizinhos ou familiares. Independentemente da forma de transporte utilizada, observa-se a existência de rede de apoio de familiares e vizinhos.
Mesmo os pacientes que chegaram à unidade de urgência em veículos próprios foram acolhidos, não havendo nenhum caso de peregrinação em busca de atendimento da urgência. Todos foram encaminhados para internação em enfermaria ou UTI após o atendimento no pronto socorro e o avaliaram positivamente.
A tomografia computadorizada (TC), exame mandatório para todos os pacientes com suspeita de AVE, foi realizada por cinco dos entrevistados. Pelos tempos referidos pelos pacientes e pela análise dos prontuários, nenhuma foi realizada no tempo preconizado pelo Ministério da Saúde para esta condição clínica31. Chama atenção que em dois casos os pacientes, internados pelo SUS, tiveram que pagar pela realização da TC. Eles foram removidos de ambulância da instituição em que estavam internados, encaminhados a uma clínica privada, na qual após pagamento direto realizaram o exame, retornando imediatamente ao local de internação.
Na alta hospitalar, nenhum paciente foi encaminhado para a APS, alguns encaminhamentos, vários de forma informal, aconteceram para a neurologia e para os serviços de reabilitação. Em todos os casos, em que os pacientes buscaram serviços de reabilitação, o acesso foi considerado por eles como tendo ocorrido em tempo oportuno. Ao relatarem as formas com as quais conseguiram este acesso, observou-se multiplicidade de caminhos utilizados: pagamento de consulta médica para receber um encaminhamento para a reabilitação no serviço público; agendamento direto no serviço de reabilitação por influência de pessoas conhecidas; início do tratamento com fisioterapeuta no setor privado; e atendimento realizado gratuitamente em clínica escola de fisioterapia da região.
Após o AVE e suas sequelas, mesmo que pequenas, todos os entrevistados e suas famílias iniciaram busca de consultas médicas especializadas para tratamento, especialmente das sequelas e não da HAS, e até mesmo para concessão de direitos previdenciários. Esta busca foi realizada autonomamente pelas famílias e pacientes de acordo com suas possibilidades e conhecimentos e não orientada por um serviço de saúde. O mix público-privado pode ser observado claramente nestas buscas. Os serviços privados procurados foram principalmente especialidades médicas (neurologia e cardiologia) e em alguns casos fisioterapia. Dois formatos de desembolso direto foram identificados: ao médico ou fisioterapeuta escolhido ou para o médico indicado pelo “plano funeral.” As funerárias incluem em seus serviços um rol de médicos de diversas especialidades, seus segurados podem ir aos seus consultórios e pagar por uma consulta com desconto. Este acesso deu-se paralelamente ao uso de serviços do setor público e de forma desordenada. Mesmo o paciente que recebia visitas domiciliares de médicos e enfermeiros da ESF acessava outros médicos especialistas através do “plano funeral”. Observou-se também valoração do atendimento particular: Então todo mundo falava: vai no doutor J., faz uma consulta... é um médico bom que trata diabetes, ele fez curso nos Estados Unidos.
Metade dos pacientes frequentava regularmente os serviços de AE do SUS. Este acesso iniciou-se antes do episódio de AVE. Ao conseguirem atendimento nos serviços especializados se vinculavam a estes por apresentarem resposta melhor e oportuna às necessidades: Não, ele não volta no postinho, ele não volta mais. Agora tudo é no AME. Graças a Deus, foi uma benção que Deus mandou, sabe? ... Tem neurologista... não precisa sair para fazer exame fora, faz tudo lá. Desta forma, a AE surge nos IT como ponto importante de cuidado. Vale ressaltar que o AME tem uma postura ativa com seus usuários, ligando para lembrar de consultas agendadas e averiguando o estado de saúde dos seus pacientes.
Mesmo após o AVE, a UBS não se responsabilizou pelo cuidado regular, com exceção de um entrevistado que contava com visitas domiciliares frequentes de toda a equipe. Em um dos casos, foi destacado que a visita do ACS se dava de forma burocrática, apenas passando na porta e perguntando se tudo estava bem. Em nenhum dos casos as UBS foram avisadas da internação: Eles não sabiam. Só depois que a gente avisou para eles... Os entrevistados, em geral, não reconheciam um serviço ou profissional que coordenasse seu cuidado. Alguns profissionais de fisioterapia foram percebidos como o profissional de saúde de referência.
Mesmo antes do episódio de AVE, a UBS não se configurava como um ponto regular de cuidado para os entrevistados, com exceção de dois. Para os outros, as UBS apareciam nas trajetórias como local de renovação de receitas médicas, obtenção de medicamentos e principalmente de aferição da pressão arterial (PA). A referência a ações de prevenção e promoção realizadas pela APS foi praticamente ausente, apenas um usuário participara em grupos para promoção e prevenção.
As farmácias privadas também foram identificadas como outro ponto de atenção. Para além de adquirir medicamentos, os pacientes as utilizavam para o monitoramento da HAS por meio da aferição de PA: Acompanhava nas farmácias por 35 anos...
O Quadro 2 sistematiza os principais achados, contrastando as opiniões dos gestores e as experiências dos usuários em sua busca por atenção, pelas dimensões de análise da coordenação do cuidado assumidas neste artigo.
Quadro 2 Coordenação do cuidado em evento traçador na perspectivas de gestores e experiência dos usuários, Barretos, SP, 2015.
Dimensão | Gestores | Usuários - Itinerário Terapêutico |
---|---|---|
Posição ocupada pela APS no sistema | APS reconhecida como porta de entrada ideal, porem com serias dificuldades de efetivação. | APS não se configura como ponto regular de cuidado, nem antes nem depois do AVE; |
A APS é reconhecida como porta de entrada para a Rede de Atenção a pacientes com doenças crônicas. | APS não se configura como porta de entrada. | |
Acesso a AE depende de encaminhamento da APS. | ||
Capacidade de resolução da APS para HAS | APS com capacidade para intervir/acompanhar casos de DCNT. | Usuário identifica UBS como local de troca de receitas de medicamentos e aferição de PA. |
Diversas ações da equipe como busca ativa, atividades de promoção, estratificação de risco ocorrem com mais frequência. | APS não é reconhecida como espaço de ações de promoção da saúde e prevenção de doenças crônicas não transmissíveis. | |
Fragilidade na coleta de exames, dispensação de medicamentos, realização de FO e de ECG. | APS não é reconhecida como espaço de tratamento clínico. | |
Capacidade de resolução da APS após AVE | Não há compartilhamento da responsabilidade entre APS e AE. | Acompanhamento pela APS continua não se configurando ponto de cuidado prioritário. |
APS é vista como capaz de manter o cuidado após o AVE. | ||
Apoio NASF insuficiente | ||
Estrutura Administrativa –organizacional | Serviços de APS públicos. | Vínculo entre APS e população adstrita não estão explícitos. |
Serviços de AE, realização de consultas especializadas e exames de imagens realizados por serviços públicos próprios; serviços geridos por OSS (AME); serviços privados contratados. | Mix público privado para realização de consultas, exames especializados e reabilitação: consultas AE via seguro funeral; internação SUS com TC paga em outro serviço | |
Exames bioquímicos realizados quase exclusivamente por serviços privados contratados. | ||
Insuficiente capacidade instalada da RAS, especialmente em SADT e AE. | ||
Organização dos fluxos | Definição burocrática dos fluxos. | Não identificam o fluxo assistencial a partir da APS. Utilizam portas de entrada variadas para AE e exames. |
Ausência de monitoramento e avaliação de filas para SADT e AE. | Vinculação ou desejo de se vincular ao nível secundário, em especial ao AME/SES-SP. | |
Boa acessibilidade ao SAMU no episódio de urgência. | ||
Integração Equipe-Serviços | Ausência de mecanismos formais instituídos para integração. | Ausência de comunicação entre serviços e profissionais. |
Mecanismos de Continuidade Informacional | Inexistentes. | Inexistentes. |
A metodologia utilizada, ao incluir os IT como ferramenta, possibilitou identificar a lógica dos usuários para obtenção de seu próprio cuidado, que tenciona a lógica dos serviços e aportou informações pouco utilizadas na gestão dos serviços e sistemas de saúde. Conill et al.32 identificaram, em cenário distinto, situação semelhante: os percursos dos usuários muitas vezes não respeitam, necessariamente, as pactuações e as normatizações previamente estabelecidas no planejamento das ações e serviços de saúde.
Apesar das lógicas distintas, as narrativas analisadas sugerem fragilidades no papel de coordenação do cuidado pela APS para pacientes com condições crônicas; estes achados vão ao encontro de outras pesquisas sobre o tema realizadas no Brasil e na América Latina21,33,34.
Na região estudada, fica evidente a fragilidade da APS tanto em se constituir como porta de entrada preferencial no sistema, quanto em oferecer uma atenção à saúde resolutiva. A visão dos gestores reproduz a linha de argumentos previstos nas diretrizes nacionais para a organização dos serviços de APS. Contudo, na experiência dos usuários não se confirma tal perspectiva. Ao contrário, as práticas que poderiam reforçar a função central da APS na promoção e prevenção e na manutenção da saúde (diagnóstico precoce, acompanhamento continuado, busca ativa, educação em saúde) são pouco reconhecidas, inclusive em relação à condição de serviço de procura regular. A APS quando trazida pelos entrevistados é reconhecida como loccus de busca e acesso de procedimentos simples, como aferição da PA ou obtenção de medicamentos. Este perfil é semelhante ao encontrado por Cecilio et al.35 com usuários altamente utilizadores de serviços em municípios de SP.
Também a capacidade de resolução clínica da APS identificada foi baixa. A insuficiência de exames essenciais, medicamentos, entre outros, são exemplos desta fragilidade. A ausência de condições estruturais adequadas é um importante entrave para que a APS assuma seu papel de coordenação do cuidado não só na região estudada, mas como em grande parte do país30. Mesmo as ações do ACS surgem na fala dos usuários como burocráticas, não evidenciando a potencialidade da atuação deste profissional.
O mix público privado identificado nas trajetórias, para além dos serviços contratados pelo SUS, se expressou através do desembolso direto, principalmente para a realização de exames e serviços de reabilitação. Vale lembrar que estes gastos somados à compra de medicamentos representavam um fardo econômico para as famílias. O perfil de oferta, somado à insuficiência de retaguarda terapêutica, especialmente na oferta de serviços especializados, fragiliza a capacidade de coordenação da APS, ponto nodal para a organização das redes, em vários aspectos23. Este cenário é comum a outras regiões de saúde, fortemente dependentes do setor privado23. Nestas, a oferta insuficiente e o subfinanciamento público, aliados a uma utilização, por vezes, inadequada dos recursos existentes e à desarticulação entre prestadores, são fatores que dificultam que a APS se configure como uma prática robusta e resolutiva23. Em contraposição ao olhar do usuário, os gestores e os profissionais têm uma visão restrita da relação público-privada, por não serem atores ativos no processo de obtenção do cuidado necessário.
Além da inexistência de fluxos organizados entre a APS e a AE, os resultados sugerem a existência de uma lógica em que a AE, especialmente os serviços ligados a Fundação Pio XII, “invadem” tanto espaços esperados de atuação da APS, quanto da própria gestão regional da RAS. Este papel não decorre apenas das insuficiências demonstradas da APS na região, se alicerça também na valoração do espaço da prática médica especializada pela população e da produção de valor simbólico para o cuidado em saúde oferecido pelos AME/SES-SP, como melhor.
Romper a lógica compartimentalizada de funcionamento dos serviços de saúde não é tarefa fácil. Feo et al.36 identificaram que mesmo após 20 anos da reforma da APS na Espanha, a AE se mantinha como um compartimento estanque. Lógica de funcionamento fragmentada que facilita o surgimento de erros diagnósticos e tratamentos inapropriados36.
O SAMU garantiu acesso rápido e oportuno aos primeiros cuidados após o AVE, não sendo identificadas situações de peregrinação em busca de socorro. A peregrinação é uma experiência que, infelizmente, vários brasileiros enfrentaram nos últimos anos37; a organização regional da RAS é central para sua superação. Machado et al.38 exploram um papel de mão dupla do SAMU, se por um lado demanda arranjos regionais como centrais de regulação, por outro contribui para a constituição cotidiana/efetiva das RAS. No entanto, mecanismos de coordenação do cuidado entre a APS e os pontos da Rede de Urgência e Emergência, são praticamente inexistentes na realidade estudada.
A ausência de prontuários informatizados e integrados também minimizam as possibilidades de comunicação interprofissional, uma das dimensões da coordenação do cuidado39. A avaliação de gestores e usuários é sincrônica ao indicar a fragilidade desta função. Assim como indicam outros estudos, as tradicionais guias de referência e contrarreferência constituem-se como instrumentos conservadores e burocráticos, insuficientes para a organização das redes de atenção à saúde com continuidade informacional e coordenação pelas equipes de APS40.
No Brasil, muito se tem falado sobre o caráter central da APS na constituição das RAS, mas esta é uma relação de mão dupla. Da mesma forma que não existe RAS sem APS robusta capaz de coordenar o cuidado, a APS não consegue exercer seu papel sem um sólido arranjo regional e uma articulação virtuosa entre os três entes federados. Só assim a APS será capaz de coordenar o cuidado, reafirmando que uma coordenação do cuidado fraca é definitivamente um importante obstáculo para a garantia da integralidade, do acesso e da oferta de serviços de saúde de qualidade.