versão impressa ISSN 1414-8145versão On-line ISSN 2177-9465
Esc. Anna Nery vol.23 no.4 Rio de Janeiro 2019 Epub 14-Out-2019
http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2018-0324
A Organização Mundial da Saúde (OMS) preconiza o atendimento interdisciplinar e multissetorial em situações de violência sexual. Abrangendo serviços públicos e privados, como saúde, educação, justiça criminal, serviços sociais; e a sociedade civil.1 Mulheres em situação de violência sexual tendem a procurar os serviços de saúde, uma vez que, na maioria das vezes, são o primeiro contato e ponto de entrada para o atendimento. Nesse sentido, a atuação dos profissionais de saúde é fundamental para formar vínculos e articular o atendimento com os outros serviços intersetoriais.1
A busca por atendimento nos serviços de saúde e demais serviços da rede intersetorial advém dos impactos da violência sexual nas múltiplas dimensões da mulher. A problemática da violência sexual, além das consequências negativas de ordem emocional e psíquica, tem impactos na saúde sexual e reprodutiva da mulher, exposição a riscos como lesões físicas, gravidez e Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs).2,3
Em âmbito mundial, cerca de 35% das mulheres já sofreram violência sexual e/ou física.1 No Reino Unido e nos EUA, a estimativa é que uma em cada cinco mulheres e uma em cada seis mulheres, respectivamente, durante a vida será vítima de violência sexual. Salienta-se que apenas 16,5% - 26,1% das agressões são relatadas, demonstrando que a violência sexual apresenta índices elevados de subnotificação.4
Nacionalmente, dados com base nas informações do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) do Ministério da Saúde (MS) mostram que 527 mil pessoas são estupradas por ano no Brasil, sendo 89% das vítimas do sexo feminino.5 Estudo realizado em Santa Catarina, acerca das características dos casos de violência sexual praticada contra mulheres notificados por profissionais de saúde, mostrou que 12,9% das violências notificadas foram violências sexuais.6 No Distrito Federal, um estudo que descreveu as características epidemiológicas dos casos de violência contra a mulher notificados apontou que 22% das mulheres relataram violência sexual.7
Destaca-se, ainda, o princípio da integralidade no atendimento, envolvendo assistência pautada em conhecimentos científicos atualizados, tecnologia apropriada, respeito às singularidades e sem discriminação.2 É um processo que requer articulação dos serviços, estrutura adequada e profissionais qualificados para assegurar atenção integral à mulher em situação de violência sexual. Nesta perspectiva, a articulação entre os serviços da rede de atendimento, a melhora no acolhimento e a valorização da relação intersubjetiva entre a mulher e os profissionais são fatores que elevam a adesão ao seguimento ambulatorial, como demostrou um estudo com objetivo de compreender os motivos da não adesão ao seguimento ambulatorial por mulheres que experienciaram a violência sexual. 8
Visto a importância de ações conjuntas, intersetoriais, evidenciadas em programas que atendem situações de violência;9 estudos na área da enfermagem vêm sendo desenvolvidos nessa direção colaborativa. É necessário fortalecer esta nova perspectiva de pesquisas na enfermagem, atendendo a prioridades das agendas nacionais e internacionais de pesquisa científica.10
Considerando a importância da temática da violência sexual, em que o atendimento eficaz é fundamental para mulheres nessa situação, justifica-se o desenvolvimento da presente revisão, cujo objetivo consistiu em: identificar as evidências científicas nacionais e internacionais acerca do atendimento a mulheres em situação de violência sexual pela equipe multiprofissional em saúde.
Trata-se de uma revisão integrativa da literatura, com sistematização baseada nas etapas de Ganong.11 Inicialmente, foi elaborada a questão de revisão: Quais as evidências científicas nacionais e internacionais acerca do atendimento a mulheres em situação de violência sexual pela equipe multiprofissional em saúde? A busca nas fontes de dados (base de dados e biblioteca digital) ocorreu com o auxílio de uma bibliotecária, no mês de setembro de 2017, em quatro bases de dados: Public Medline (PubMed®); Cumulative Index to Nursing & Allied Helth Literature (CINAHL®); Scopus®; e Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS®); e em uma biblioteca digital: Scientific Eletronic Library Online (SciELO®).
Os termos de busca (descritores e palavras-chave) foram combinados por meio do operador booleano e "AND". Descritores: Violência contra a mulher; Delitos sexuais; Equipe de assistência ao paciente; Profissionais de enfermagem; Pessoal de saúde. Palavras-chave: Violência doméstica e sexual contra a mulher, Violência de gênero; Abuso sexual, Agressão sexual, Atentado ao pudor, Crimes sexuais, Ofensa sexual, Violência sexual, Injúria sexual; Equipe de cuidados de saúde, Equipe interdisciplinar de saúde, Equipe multiprofissional, Equipe de saúde; Profissionais da saúde, Trabalhador da saúde. Também foram utilizados os respectivos termos citados em inglês e espanhol.
Foram incluídos estudos oriundos de pesquisa original, disponíveis na íntegra online; publicados em português ou inglês ou espanhol e com recorte temporal (publicações entre 2012 e 2017). Salienta-se que foram empregadas estratégias de busca distintas em cada base de dados e na biblioteca digital, sendo identificados 1.254 estudos.
O motivo do recorte temporal advém do aumento das publicações de documentos voltados ao atendimento em situações de violência sexual. Dentre as publicações, destacam-se: o Decreto nº 7.958, de 13 de março de 2013, que estabelece diretrizes para o atendimento às vítimas de violência sexual pelos(as) profissionais de segurança pública e da rede de atendimento do Sistema Único de Saúde; a Lei nº 12.845, de 1º de agosto de 2013, que dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual, e a Portaria MS/GM no 485, de 1º de abril de 2014, que redefine o funcionamento do Serviço de Atenção às Pessoas em Situação de Violência Sexual no âmbito do SUS.12
Na triagem e seleção dos estudos, foi realizada a leitura do título, do resumo e a leitura parcial do artigo. Os estudos duplicados foram considerados apenas uma vez. Foram excluídas revisões, cartas, resenhas e editoriais, estudos não disponíveis na íntegra online e estudos que não atenderam o escopo da revisão. Selecionados 41 estudos e lidos na íntegra; destes, sete foram excluídos por não responder à questão norteadora da revisão. A amostra final foi composta por 34 estudos, que foram organizados em uma tabela no Microsoft Word® para a síntese, a partir dos principais resultados e agrupando-os por categorias. O esquema de busca e seleção dos estudos é apresentado na Figura 1.
Figura 1 Esquema de busca e seleção dos estudos. Florianópolis, SC, Brasil, 2018.*Estudos considerados apenas uma vez.
A classificação da força de evidências dos estudos foi realizada de acordo com os níveis (N): N1 - revisão sistemática ou metanálise de ensaios clínicos randomizados controlados; N2 - ensaios clínicos randomizados controlados; N3 - ensaios clínicos sem randomização; N4 - coorte e caso-controle; N5 - revisão sistemática de estudos descritivos e qualitativos; N6 - estudo descritivo ou qualitativo; N7 - opinião de especialistas.13
Quanto à caracterização dos 34 estudos selecionados, o número de publicações por ano foi: 2012: cinco; 2013: quatro; 2014: sete; 2015: oito; 2016: cinco; 2017: cinco (até a data da busca). Em relação ao país em que foram desenvolvidos os estudos: Brasil (19), Estados Unidos da América (7), Canadá (1); África do Sul, Irã, Holanda e Inglaterra (1) estudo em cada país; e três estudos foram desenvolvidos em multipaíses. O idioma predominante nas publicações foi o português (19), seguido do inglês (14) e espanhol (1). Referente à abordagem metodológica: estudos qualitativos (24), estudos quantitativos (7) e estudos métodos mistos (3). Com relação ao nível de evidência dos estudos selecionados: N - 6 (30 estudos), N - 4 (2 estudos) e N - 7 (2 estudos). O Quadro 1 apresenta o ano de publicação, país, título e objetivo dos estudos selecionados.
Quadro 1 Caracterização dos estudos acerca do atendimento às mulheres em situação de violência sexual, segundo: ano de publicação, país, título e objetivo. Florianópolis, SC, Brasil, 2018.
Estudo | Ano | País | Título | Objetivo |
---|---|---|---|---|
E 14 | 2012 | Brasil | Violência entre usuárias de unidades de saúde: prevalência, perspectiva e conduta de gestores e profissionais | Estimar a prevalência de violência em mulheres usuárias da atenção primária em saúde, se essas situações eram detectadas e como eram tratadas pelos profissionais desses serviços |
E 15 | 2016 | Brasil | Instrumentos para articulação da rede de atenção às mulheres em situação de violência: construção coletiva | Identificar as informações necessárias para a construção de instrumentos destinados a viabilizar a articulação de profissionais de serviços de atendimento com mulheres em situação de violência com vistas à constituição de uma rede de atenção |
E 16 | 2015 | EUA | Sexual Assault Response Teams (SARTs): Mapping a Research Agenda That Incorporates na Organizational Perspective | Conceitua os SARTs de uma perspectiva organizacional e explora três abordagens para pesquisar SARTs que têm o potencial de aumentar nossa compreensão dos benefícios e desafios da prestação de serviços multidisciplinares |
E 17 | 2017 | Brasil | As redes sociais de apoio às mulheres em situação de violência pelo parceiro íntimo | Analisar a rede social e os tipos de apoio fornecidos às mulheres em situação de violência pelo parceiro íntimo |
E 18 | 2013 | Brasil | Mulheres em situação de violência: entre rotas críticas e redes intersetoriais de atenção | Aborda como o tema da violência doméstica e sexual contra a mulher assume, nas últimas décadas, o caráter de problema de saúde pública e direitos humanos. Cotejar esses dois lados da questão: como as mulheres enfrentam o problema buscando apoios e como os serviços têm atuado como apoio social institucionalizado |
E 19 | 2014 | Brasil | Enfrentamento da violência contra a mulher: articulação intersetorial e atenção integral | Identificar elementos que interferem no processo de enfrentamento da violência contra a mulher |
E 20 | 2015 | Brasil | Mulher em situação de violência: limites da assistência | Analisar os limites da prática assistencial à mulher em situação de violência, de equipes de saúde da família na rede de atenção |
E 21 | 2015 | Brasil | Cuidar mulheres em situação de violência: empoderamento da enfermagem em busca de equidade de gênero | Conhecer as ações de cuidar de mulheres em situação de violência por enfermeiras em serviços de urgência e emergência e analisar as ações que busquem o empoderamento de mulheres para a equidade de gênero |
E 22 | 2016 | Brasil | Intencionalidade da ação de Cuidar mulheres em situação de violência: contribuições para a Enfermagem e Saúde | Apreender as motivações da ação da enfermeira ao cuidar de mulheres em situação de violência |
E 23 | 2017 | Brasil | Atenção à saúde de mulheres em situação de violência: desarticulação dos profissionais em rede | Conhecer as concepções e ações de profissionais de saúde sobre a rede de atenção às mulheres em situação de violência |
E 24 | 2015 | Multi países | The health-systems response to violence against women | Revisar as evidências de intervenções clínicas e discutimos componentes de uma abordagem abrangente do sistema de saúde que ajuda os profissionais de saúde a identificar e apoiar as mulheres submetidas a violência sexual ou por parceiro íntimo |
E 25 | 2017 | Brasil | Mulheres rurais e situações de violência: fatores que limitam o acesso e a acessibilidade à rede de atenção à saúde | Analisar o acesso e a acessibilidade à rede de atenção às mulheres em situação de violência, residentes em contextos rurais, a partir dos discursos de profissionais |
E 26 | 2013 | Brasil | Análise das práticas profissionais na atenção em saúde às mulheres em situação de violência sexual | Analisar os discursos de profissionais que atendem a mulher em situação de violência sexual; compreender a relação das práticas profissionais com a emancipação da opressão de gênero |
E 27 | 2014 | Brasil | Violência sexual contra mulheres no Brasil: conquistas e desafios do setor saúde na década de 2000 | Analisar e refletir sobre as principais políticas e ações públicas produzidas ou instituídas no setor saúde brasileiro ao longo da década de 2000 e que contribuíram para o enfrentamento da violência sexual contra mulheres no Brasil, considerando os avanços e as dificuldades encontradas |
E 28 | 2015 | Brasil | Rede de atenção à mulher em situação de violência: os desafios da transversalidade do cuidado | Compreender, sob a ótica dos profissionais que atuam nos serviços que compõem a rede, como se configura a atenção à mulher em situação de violência |
E 29 | 2013 | Multi países | Clinical care for sexual assault survivors multimedia training: a mixed-methods study of effect on healthcare providers' attitudes, knowledge, confidence, and practice in humanitarian settings | Descrever o efeito do treinamento multimídia do CCSAS sobre as atitudes, conhecimento, confiança e práticas dos profissionais de saúde que prestam cuidados clínicos aos sobreviventes de abuso sexual em campos de refugiados na Etiópia e no Quênia, um cenário pós-conflito na República Democrática do Congo (RDC) e um ambiente de refugiados urbanos na Jordânia |
E 30 | 2014 | África do Sul | A cross-sectional study on the effect of post-rape training on knowledge And confidence of health professionals in South Africa | Determinar se um programa nacional de treinamento em cuidados pós-estupro na África do Sul resultou em melhorias no conhecimento e confiança nos profissionais de saúde e em distinguir os fatores básicos relacionados a essas mudanças de conhecimento e confiança |
E 31 | 2012 | EUA | Care of the Sexually Assaulted Woman | Descrever as consequências de curto e longo prazo da violência sexual feminina e, usando estudos de caso, fornece um guia para profissionais de enfermagem sobre cuidados abrangentes e capacitadores, desde a triagem adequada após agressão sexual até infecções sexualmente transmissíveis e profilaxia da gravidez e acompanhamento e encaminhamento para a mulher agredida sexualmente |
E 32 | 2014 | EUA | Original research: Giving sexual assault survivors time to decide: an exploration of the use and effects of the nonreport option | Examinar a implementação da opção nonreport no Texas; explorar seu impacto sobre as SANEs, os sobreviventes e o sistema de justiça criminal; e identificar pontos fortes e desafios do processo de não relato |
E 33 | 2015 | Brasil | Violência sexual contra mulheres: a prática de enfermeiros | Investigar a prática dos enfermeiros acerca da violência sexual contra mulheres |
E 34 | 2012 | Multi países | An assessment of health sector guidelines and services for treatment of sexual violence in El Salvador, Guatemala, Honduras and Nicaragua | Descrever as diretrizes do setor de saúde para o atendimento de vítimas de violência sexual no país e documentar serviços de saúde (hospitais e centros de saúde) UNFPA e Ipas |
E 35 | 2013 | Canadá | Identificación de las fortalezas, preocupaciones y necesidades educativas del Servicio Rural de Agresión Sexual en las comunidades rurales y aborígenes de Alberta (Canadá) | Identificar uma maneira de abordar os riscos da segunda vitimização dentro da prática rural, com base nas forças existentes, e compreender os recursos educacionais necessários para a crise de assistência em trabalhadores em comunidades rurais e indígenas |
E 36 | 2017 | Brasil | Aspectos éticos e legais no cuidado de enfermagem às vítimas de violência doméstica | Analisar os conhecimentos de enfermeiras hospitalares sobre os aspectos éticos e legais no cuidado de enfermagem a vítimas de violência doméstica |
E 37 | 2016 | Brasil | Conceitos, causas e repercussões da violência sexual contra a mulher na ótica de profissionais de saúde | Analisar os sentidos atribuídos por profissionais de saúde aos conceitos, causas e repercussões da violência sexual contra a mulher |
E 38 | 2016 | Brasil | Protocolos na atenção à saúde de mulheres em situação de violência sexual sob a ótica de profissionais de saúde | Analisar a utilização de protocolos na atenção à saúde de mulheres em situação de violência sexual sob a ótica de profissionais em duas capitais brasileiras |
E 39 | 2014 | EUA | 'We desperately need some help here' - The experience of legal experts with sexual assault and evidence collection in rural communities | Examinar as experiências de provedores legais de comunidades rurais que atendem vítimas de agressão sexual |
E 40 | 2012 | Brasil | Perfil do atendimento à violência sexual no Brasil | Avaliar a situação do atendimento nos serviços públicos de saúde às mulheres vítimas de violência sexual no Brasil, visando determinar a prevalência de programas ou serviços municipais de atenção de rotina e/ou de emergência a mulheres e crianças que sofrem violência sexual nos municípios brasileiros, e descrever as características destes e sua adequação à norma técnica do Ministério da Saúde (1999) |
E 41 | 2016 | Irã | Barriers to Healthcare Provision for Victims of Sexual Assault: A Grounded Theory Study | Explorar o processo de cuidados de saúde e serviços clínicos para vítimas de agressão sexual nos centros de saúde do Irã |
E 42 | 2015 | Inglaterra | "Silly Girls" and "Nice Young Lads": Vilification and Vindication in the Perceptions of Medico-Legal Practitioners in Rape Cases | Explorar percepções e presunções em relação ao estupro, mulheres estupradas, e estupradores, entre profissionais de medicina legal que realizam exames médicos forenses em caso de estupro |
E 43 | 2017 | Holanda | Challenges in interprofessional collaboration: experiences of care providers and policymakers in a newly set-up Dutch assault centre | Melhorar nossa compreensão dos desafios na colaboração interprofissional em um centro recém-criado para a violência sexual e familiar |
E 44 | 2012 | EUA | Prosecution of Adult Sexual Assault Cases: A Longitudinal Analysis of the Impactof a Sexual Assault Nurse Examiner Program | Examinar se os casos de abuso sexual de adultos tinham maior probabilidade de serem investigados e processados após a implementação de um programa SANE em um grande município do Centro-Oeste |
E 45 | 2014 | EUA | The Impact of Sexual Assault Nurse Examiner Programs on Criminal Justice Case Outcomes: A Multisite Replication Study | Avaliação multisite de seis programas SANE (dois programas rurais, dois servindo comunidades médias, dois urbanos) para avaliar como a implementação dos programas SANE afeta taxas de acusação de assalto sexual adulto |
E 46 | 2015 | Brasil | Vivência de (des)acolhimento por mulheres vítimas de estupro que buscam os serviços de saúde | Conhecer a estrutura e o funcionamento dos serviços de saúde a partir da fala de mulheres que vivenciaram o estupro |
E 47 | 2014 | EUA | Sexual Assault Services Coverage on Native American Land | Mostrar a cobertura de instalações com SAE ou Programas SART em terras indígenas e demonstra até que ponto a IHS e a provisão hospitalar tribal de exames de agressão sexual melhoraram o acesso para Native American vítimas de agressão sexual a serviços apropriados |
A partir da leitura e da comparação entre os resultados dos estudos, emergiram nove categorias, organizadas em: potencialidades, demandas e fragilidades no atendimento a mulheres em situação de violência sexual. Essas categorias são apresentadas no Quadro 2:
Quadro 2 Potencialidades, demandas e fragilidades identificadas nos estudos selecionados. Florianópolis, SC, Brasil, 2018.
Potentialities | Demands | Weaknesses | |
---|---|---|---|
Rede de atendimento | • Constituição da rede articulada14 | • Articular setores assistenciais distintos e recursos14,15,17-25 | • Descontinuidade e fragmentação do cuidado15,22,26 |
• Viabilização da comunicação15 | • Articulação entre os serviços14,19-21,23,24,26-28 | ||
• SARTs16 | |||
• Estabelece vínculos e resgata a mulher da vulnerabilidade17 | • Revitimizaçã23 | ||
Capacitação e treinamento | • Políticas públicas para capacitação profissional27 | • Estratégias que viabilizam interação de saberes e ações no atendimento integral19,28 | • Processos de qualificação e educação permanente incipientes14,20,26,37,38 |
• Contribui para o cuidado em saúde e de enfermagem28 | • Reorientação da formação profissional e fomento de um trabalho transformador26,30 | • Notificação compulsória e desconhecimento da obrigação legal33,36 | |
• Melhorias no respeito pelos direitos do paciente, conhecimento, confiança e prática clínica29,30 | • Qualification for qualified responses in the care and identification of sexual violence24,25,29-35 | • Falta de treinamento e capacitação para a assistência integral33 | |
• Considerar a formação na graduação30 | • Formação profissional nem sempre isenta de julgamentos e preconceito37 | ||
• Ampliar conhecimentos sobre a notificação compulsória33,36 | • Lacunas no conhecimento das enfermeiras acerca dos aspectos éticos e legais36 | ||
• Educação permanente para qualificação profissional36 | • Abordagem na graduação38 | ||
• Programas de treinamento para SANEs em comunidades rurais39 | • Limitações nas experiências dos SANEs em comunidades rurais39 | ||
Profissional de saúde na rede de atendimento | • Profissionais de saúde auxiliam mulheres pelos cuidados de saúde e por serem articuladores para outros serviços de apoio25,31 | • Enfermeiras: valorizar a comunicação e o papel social na equipe de saúde21 | • Dificuldades em trabalhar com casos de agressão sexual em comunidades rurais39 |
• SANEs e outras enfermeiras: relações colaborativas e posição importante na conscientização de outros profissionais de saúde32 | • Enfermeiras: organizar processos de trabalho e acolher as demandas singulares de cuidado das mulheres22 | • Insuficiência e inexperiência dos SANEs em áreas rurais39 | |
• Importância do papel dos SANEs para comunidades rurais39 | • Treinamento dos SANEs em áreas rurais39 | ||
Protocolos | • Empoderamento das profissionais15 | • Desenvolver competências na prática clínica, disseminar evidências acerca dos direitos e da autonomia das mulheres; concretizar políticas para a integralidade21 | • Inexistência de protocolos para atendimento20,33,40 |
• Informações padronizadas que podem identificar problemas reais ou potenciais de violência17 | • Garantir condições propícias para abordagem24 | • Uso de protocolos clínicos com enfoque nos danos físicos26 | |
• Qualidade às ações de cuidado e de gestão38 | • Construir condutas assertivas28 | • Protocolo existente não é compreendido e adotado38 | |
• Construir protocolos compartilhados38 | |||
Integralidade | • Cuidado e escuta qualificada21 | • Atendimento especializado às necessidades da mulher, sem julgamento17,21,22,24,35,40,41 | • Atenção fragmentada, baseada no modelo biomédico21,22,26,28 |
• Reavivar o movimento feminista brasileiro no direito ao atendimento integral27 | • Prática não coerente com os princípios de humanização26 | ||
• Acolhimento inicial, orientações, encaminhamentos e notificação23 | • Implementar o acolhimento21 | • Despreparo profissional para reconhecer a violência, acolher e encaminhar a mulher19,20 | |
• Discussões e abordagem interdisciplinares e intersetoriais para aprimorar a prática28,33 | • Manutenção da invisibilidade da violência20 | ||
• Lidar com os impactos físico, subjetivo, sexual e afetivo na vida das mulheres violentadas33 | • Desenvolver atenção resolutiva: escuta, acolhimento, comunicação, considerando a subjetividade do outro22,23 | • Posturas inadequadas dos profissionais incidindo na culpabilização da mulher29,41,42 | |
• Construir protocolos38 | |||
Trabalho em equipe | • Qualifica o atendimento23,25,43 | • Criar espaços interdisciplinares na formação em saúde15 | • Processos de trabalhos ainda centralizados no modelo hierarquizado, com fragmentação da atenção28 |
• Ações integradas38 | • Promover a articulação de distintas óticas disciplinares25 | ||
• Colaboração interdisciplinar melhora os resultados da acusação, bem como o apoio às vítima após o relato39 | • Construir boas relações, definir papéis profissionais; visão compartilhada e centrada no atendimento43 | ||
Apoio dos gestores | • Protocolos refletem o planejamento e implementação das políticas, o monitoramento de ações, favorecendo atividades de gerenciamento, articulações de saberes e práticas dos profissionais, efetivando ações intersetoriais38 | • Financiamento de políticas de enfrentamento da violência e recursos para assegurar a sustentabilidade20,41 | • Expansão das redes de atenção e a garantia do acesso aos serviços27 |
• Desenvolver, fortalecer planos de ação multissetoriais24 | |||
• Atenção para o tema, treinamentos, material didático e ações na comunidade33,36 | • Tímida aproximação da gestão local às políticas públicas que norteiam a atenção38 | ||
• Comprometimento com o SUS e indicadores de saúde36 | |||
• Ouvir os profissionais, orientar diretrizes políticas e ações normativas38 | |||
Serviços | • Tempo para sobreviventes decidir se devem denunciar uma agressão sexual à aplicação da lei32 | • Avaliar o acesso, a aceitabilidade e a qualidade dos cuidados, coletando informações de forma segura e confidencial, para receber prioridade nas políticas de saúde, orçamentos e capacitação dos profissionais de saúde24 | • Desconhecimento dos serviços para encaminhamentos19 |
• Sigilo, orientação e privacidade no cuidado de enfermagem36 | • Ineficiência da polícia, justiça e de segurança20 | ||
• Hospitais não tem facilidades para fornecer e manter armazenamento de provas adequadas32 | |||
• Aumento de casos de condenação após a implementação do SANE program44 | • Ampliação das ações de prevenção e reconhecimento da violência sexual como problema social27 | • Discrepância no número de casos registrados pelas instituições legais e de saúde34 | |
• Inadequada coleta de evidências; falta de enfermeiras forenses e inexperiência de alguns SANEs com exame forense39 | |||
• SANE: impacto positivo na progressão de casos de agressão sexual no sistema de justiça45 | • Insatisfação das vítimas com serviços jurídicos e médicos por obstáculos sociais e legais41 | ||
• Bom acolhimento nos espaços da saúde46 | • Padronização do armazenamento e coleta de evidências toxicológicas, acesso a populações marginalizadas32 | • Inadequada infraestrutura física e de recursos humanos para abordagem46 | |
Acesso aos serviços | • Políticas públicas para acesso aos antirretrovirais, monitoramento de pacientes e realização de exames27 | • Maior divulgação dos serviços19 | • Dificuldade de acesso aos serviços especializados pela distância e restrito ao transporte, dependência do companheiro, desatenção dos profissionais e desarticulação da rede25,35,47 |
• Aproximar os serviços e qualificá-los para prática acolhedora25 | |||
• Formar SARTs em comunidades rurais, treinamento SANE para enfermeiras* em comunidades rurais39 | • Descentralização do atendimento de saúde e médico-legais34 | ||
• Expandir os serviços SAE e SART47 | • Vítimas percorrem longas distâncias para coleta de evidências por SANEs e cuidados de saúde9 |
Legenda: Sexual Assault Nurse Examiner (SANE) program: Programa de Enfermeira Examinadora de Agressão Sexual; Sexual Assault Nurse Examiners (SANEs): Enfermeiras Examinadoras de Agressão Sexual; Sexual Assault Examiner (SAE): Programas de Examinador de Assalto Sexual; Sexual Assault Response Team (SART): Equipe de Resposta a Agressão Sexual.
*Enfermeiras: corresponde aos enfermeiros e enfermeiras.
Nos estudos selecionados, algumas questões sobressaem no atendimento à mulher em situação de violência sexual. A rede de atendimento é uma dessas questões, quando constituída e articulada é uma potencialidade no atendimento.14-17 Entretanto, grande parte dos estudos sinalizam fragilidades como ausência da rede e desarticulação, gerando a demanda de construção da rede e articulação dos serviços (23 estudos). Essa lacuna, na articulação dos serviços ou mesmo na falta da rede, implica em consequências como a fragmentação do cuidado15,22,26 e a revitimização da mulher.23
O trabalho em equipe16,23,25,39,43 é um potencial no atendimento e uma demanda com múltiplos desafios. Requer construir boas relações, definir papéis profissionais, promover a articulação de distintas óticas disciplinares e criar espaços interdisciplinares na formação em saúde.15,25,43 Internacionalmente, salienta-se o atendimento em centros, como o Sexual Assault Centres (SACs)43 e equipes, como o Sexual Assault Response Team (SART).16,39,47Ambos abrangem colaboração interprofissional e interdisciplinar, qualificando o atendimento. Além dos SACs e SARTs, os Sexual Assault Nurse Examiners (SANEs) constituem um diferencial no atendimento à violência sexual. 32,44,45
Nacionalmente, o trabalho em equipe, como sinaliza um dos estudos, é um instrumento facilitador na solução de situações de violência contra a mulher.23 Outro estudo também expressa a valorização do trabalho em equipe, uma vez que o cuidado em saúde demanda ações integradas entre os profissionais, por conta da complexidade das situações de violência.38 No entanto, ainda há a necessidade de superação da fragmentação do processo de trabalho e fortalecimento relacional entre os profissionais.23,28
No Brasil, o atendimento às mulheres em situação de violência sexual é baseado na formação de Redes Integradas de Atenção, com orientação para estados e municípios na organização de redes intersetoriais.27 Os serviços abrangem, especialmente, as áreas da saúde, da assistência social, da segurança pública e da justiça.
Outra potencialidade é a atuação colaborativa e influente do profissional de saúde na articulação da rede de atendimento.25,31,32 A enfermagem, que integra equipes multiprofissionais, é considerada uma categoria profissional que possui papel importante na articulação.25 Enfermeiras precisam utilizar do potencial de comunicação e do papel social na equipe de saúde;21 papel que, em algumas situações, consiste na organização de processos de trabalho e o acolhimento das necessidades singulares no cuidado das mulheres.22 Em se tratando de áreas rurais, o papel do profissional SANE é fundamental em situações de violência sexual, por isso há a demanda por mais enfermeiros com treinamento em comunidades rurais, o que possibilitaria superar a fragilidade de SANEs inexperientes e insuficientes nessas comunidades, podendo evitar deslocamentos das vítimas para outros locais.39
Destaca-se, nos estudos selecionados, que a capacitação e os treinamentos dos profissionais contribuem para o cuidado em saúde e de enfermagem,28 assim como pode melhorar o respeito dos profissionais pelos direitos do paciente, aperfeiçoar o conhecimento, a confiança e a prática clínica.29,30 Dentre as demandas referentes à capacitação e aos treinamentos que precisam ser efetivadas (sinalizada em 16 estudos), salienta-se a reorientação da formação profissional, com destaque para a formação na graduação.26,30 Para assim obter respostas qualificadas no atendimento e na identificação da violência sexual,24,25,29-35 possibilitando a integralidade da atenção à mulher.19,28
Já a ausência de capacitação e treinamentos constitui fragilidades no atendimento.14,20,26,33,36-38 Em alguns estudos, essas fragilidades advêm de processos de qualificação e educação permanente incipientes; 14,20,26,37,38 em outro estudo, são lacunas no conhecimento das enfermeiras acerca dos aspectos éticos e legais no processo de cuidar em situações de violência, além do (des)conhecimento relacionado à notificação compulsória da violência doméstica e sexual.36 Outro estudo também sinaliza a subnotificação da violência, mostrando a necessidade de treinamento.33
Apesar da importância da integralidade do atendimento, identificaram-se fragilidades em alguns contextos, como a atenção fragmentada, baseada no saber tradicional (modelo biomédico);21,22,26,28 e com posturas inadequadas dos profissionais no atendimento, incidindo na culpabilização da mulher.29,41,42 Assim, para efetivar a integralidade, demanda, entre outras ações, a construção de protocolos, o atendimento especializado e voltado às necessidades singulares da mulher, sem julgamentos17,21,22,24,35,40,41 e habilidades como escuta, acolhimento, comunicação para lidar com a subjetividade.21-23,33
A adoção de protocolos nos serviços qualifica o atendimento, proporcionando uma atenção apropriada às mulheres em situação de violência sexual.38 Protocolos favorecem a padronização das informações, possibilitando a identificação da violência e o empoderamento do profissional.15,17 Assegurar melhores condições para a abordagem e condutas mais assertivas, entre outras, são demandas a partir da construção de protocolos24,28,38 Entretanto, em alguns contextos, é evidenciada a inexistência destes;20,33,40 quando existentes, no caso de protocolos clínicos, seu uso se restringe a danos físicos26 e, em outras situações, não são compreendidos ou utilizados.38
Referente aos serviços, verifica-se potencialidades, como o bom acolhimento nos espaços da saúde46 e bons resultados, como a implementação do SANE program,44 no entanto fragilidades são identificadas: infraestrutura inadequada, insuficiente quantitativo de recursos humanos, desconhecimento de outros serviços para encaminhamentos, ineficiência e insatisfação com alguns serviços.19,20,32,39,41,46
Acerca das fragilidades na categoria do acesso aos serviços, a (des)informação e a distância, a (des)atenção dos profissionais e a desarticulação da rede dificultam o acesso da mulher aos serviços especializados, principalmente, em situações de violência no contexto rural.25,34,39,47 Diante disso, faz-se necessário maior divulgação dos serviços19 que atendem mulheres em situação de violência sexual, maior proximidade e cobertura dos serviços, bem como a articulação da rede.
Finalizando, o apoio dos gestores desponta como uma demanda relevante. É preciso maior atenção para a violência sexual, financiamento de políticas, desenvolver ou fortalecer planos de ação multissetoriais de enfrentamento à violência contra a mulher, ouvir as categorias profissionais.20,23,24,33,36,38,41 Também é necessário o maior apoio dos gestores aos profissionais para trabalhar em rede e no estímulo a qualificação através cursos e educação permanente. 20,27
Algumas considerações acerca do atendimento a mulheres em situação de violência sexual no contexto urbano e rural: no contexto urbano, constata-se nos estudos a desarticulação entre os serviços19,20,21,23 e a necessidade de capacitação dos profissionais para proporcionar atenção resolutiva e com enfoque na integralidade das ações, superando a fragmentação do cuidado.19,23,21 No contexto rural, além dos aspectos já identificados no urbano, as dificuldades de acesso e de acessibilidade das mulheres rurais ao atendimento se tornam maiores, pela distância, acesso limitado ao transporte, (des)informação, entre outros fatores, salientando que os serviços situam-se nas áreas urbanas.25
O estudo apresenta a limitação da busca em cinco fontes de dados, sendo que há outras bases disponíveis para consulta, implicando a não inclusão de outros estudos acerca do tema.
A revisão apresenta uma noção do contexto acerca do atendimento à mulher em situação de violência sexual. Nos estudos selecionados, identificamos potencialidades, fragilidades e, demandas. Ainda que potencialidades, como melhoramentos do atendimento clínico por meio de protocolos, treinamentos e programas específicos (em alguns locais); existem fragilidades, como serviços inadequados, dificuldades de acesso, despreparo profissional na abordagem, ausência de protocolos, que desafiam a concretização do atendimento integral. Transcender o aspecto clínico, desconstruir a discriminação, o estigma e a culpabilização da mulher ainda são barreiras a serem superadas.
A incipiente e, por vezes, inexistente articulação da rede de atendimento intersetorial suscita a demanda da construção, articulação e sustentabilidade. Capacitação e treinamento dos profissionais é outra necessidade que fortalece o atendimento, bem como o apoio dos gestores na efetivação de políticas públicas. Assim, comprometimento, equipe qualificada, protocolos e articulação dos serviços intersetoriais podem possibilitar a qualidade e a integralidade da atenção.
Embora realizada uma análise que possibilitou a contextualização da temática, a classificação da força de evidências dos estudos, constatou a inexistência de nível de evidência: N1, N2 e N3 nos estudos analisados. A partir disso, infere-se que há uma lacuna de revisão sistemática ou metanálise de ensaios clínicos randomizados controlados, de ensaios clínicos randomizados controlados e de ensaios clínicos sem randomização sobre a temática do atendimento a mulheres em situação de violência sexual pela equipe multiprofissional em saúde.
A contribuição dessa revisão para a saúde, a enfermagem e a equipe multiprofissional é a reflexão acerca de elementos que são fundamentais na concretização da eficácia do atendimento e a serem considerados para aprimorar as políticas públicas à mulher em situação de violência sexual.