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Atendimento dos casos de violência em serviços de urgência e emergência brasileiros com foco nas relações intrafamiliares e nos ciclos de vida

Atendimento dos casos de violência em serviços de urgência e emergência brasileiros com foco nas relações intrafamiliares e nos ciclos de vida

Autores:

Joviana Quintes Avanci,
Liana Wernersbach Pinto,
Simone Gonçalves de Assis

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.9 Rio de Janeiro set. 2017

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017229.13352017

Introdução

Este artigo é fruto de pesquisa epidemiológica que integra o Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes em Serviços Sentinela-Viva1, em seu componente vigilância por inquérito. Este recente e relevante sistema de vigilância é uma resposta governamental ao grave contexto de violência que assola o país, demandando posturas consistentes do Ministério da Saúde. Respondendo a esta demanda social, este Ministério priorizou a atenção sobre os impactos da violência na saúde da população, implementando as Políticas: Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências2, Nacional de Atenção às Urgências e Emergências3 e Nacional de Promoção da Saúde4.

A violência, na perspectiva do setor saúde, é conceituada como o uso da força contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha qualquer possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação, distinguindo entre aquela dirigida a si mesmo, a interpessoal e a coletiva. Dentre as formas de violência interpessoal, destacam-se: (1) a intrafamiliar,que ocorre em geral dentro de casa, mas não exclusivamente; e (2) a comunitária, que ocorre entre pessoas sem laços de parentesco (consanguíneo ou não), conhecidos ou não, e geralmente ocorrendo fora de casa5. O conceito de violência intrafamiliar foca nos conflitos entre os membros da família, transformados em intolerância, abusos e opressão, mas que não têm necessariamente a unidade doméstica como espaço de ocorrência prioritário6.

As violências intrafamiliar e comunitária têm grande magnitude na população mundial e atingem as pessoas de maneira desigual em relação a sexo, raça/cor, idade e condição socioeconômica5. Crianças, adolescentes, mulheres (de todas as idades) e idosos são os grupos mais afetados pela violência intrafamiliar, em função da situação de dependência física, social e econômica e da manutenção de normas culturais patriarcais7-10. Homens, jovens e negros estão entre os mais acometidos pela violência comunitária5.

Na infância, a violência intrafamiliar se sobrepõe à comunitária e é geralmente causada pelos responsáveis. Acomete mais as crianças mais novas, sendo os meninos mais vítimas de agressões físicas enquanto as meninas mais as sexuais. A pobreza tem impacto importante na violência intrafamiliar pelo efeito no comportamento dos pais e na dinâmica familiar, ao lado da existência de muitas crianças em casa, do uso de álcool e drogas pelos pais ou responsáveis e da violência entre eles. Na adolescência, a vitimização da violência comunitária se destaca, assim como a autoria de situações de violência. Ser menino, ter baixo desempenho escolar, dificuldade de relacionamento com familiares e amigos, ter a presença de apenas um dos pais em casa e conviver com conflitos familiares são os fatores que predispõem à violência nessa fase. Na vida adulta, a violência familiar se expressa principalmente pela que ocorre entre parceiros íntimos, com relevância a cometida contra a mulher; enquanto a violência comunitária afeta mais os homens jovens e decorrentes de homicídios. Pouca idade, abuso de álcool, problemas de saúde mental, desemprego, pobreza e normas tradicionais de gênero são aspectos que impulsionam ambos tipos de violência. Entre os idosos, a violência dos filhos contra os pais se evidencia. Nestes casos, a natureza do relacionamento anterior entre a pessoa que cuida e o idoso, a depressão do cuidador, assim como problemas de alcoolismo e dificuldades financeiras são gatilhos para a violência neste momento da vida5,11.

Fraturas e contusões, lacerações e traumas, palpitações, falta de ar e dor crônica são alguns dos sinais e sintomas da busca por atendimento em serviço de urgência e emergência por pessoas em situações de violências12. Melo et al.13 apontam que é neste setor que muitos indivíduos envolvidos em episódios de violência têm o primeiro contato com uma unidade de saúde, e deveria haver uma abordagem adequada pela equipe multiprofissional, voltada para as necessidades do indivíduo e oportunizando acesso a serviços de proteção. Em geral, se conhece muito pouco sobre as informações dos atendimentos nos serviços de saúde em nível de urgência e emergência, que recebem especialmente as vítimas de violências com maior gravidade14-16.

Este artigo tem como objetivos analisar os dados de violência intrafamiliar atendidos nos serviços de urgência e emergência, segundo: (1) as características sociodemográficas das pessoas atendidas, do evento e a evolução do atendimento, da infância à velhice por sexo; e (2) os fatores que diferenciam os eventos de violência intrafamiliar em comparação aos cometidos por não familiares.

Materiais e métodos

Este artigo emprega dados oriundos do Sistema de Vigilância de Acidentes e Violências – VIVA Inquérito, um estudo transversal realizado a cada três anos em serviços sentinelas de urgência e emergência brasileiros, que visa analisar a tendência de acidentes e violências no país, bem como traçar um perfil das vítimas atendidas. O inquérito foi realizado em 24 capitais, no Distrito Federal e em 11 municípios selecionados, perfazendo 114 serviços participantes. Neste artigo, contudo, são empregados apenas os dados das capitais e do Distrito Federal, o que compreendeu 86 serviços de urgência e emergência.

Os dados foram coletados em 30 dias consecutivos, entre os meses de setembro e dezembro de 2014, divididos em 60 turnos de 12 horas, selecionados mediante sorteio probabilístico. O tamanho amostral foi calculado de forma a se obter um coeficiente de variação inferior a 30% e um erro padrão menor que 3: calculou-se um mínimo de 2.000 atendimentos por causas externas nas capitais dos estados. O número de turnos em cada estabelecimento foi dado pela razão entre o tamanho mínimo estabelecido (2.000) e a média de atendimentos do estabelecimento em anos anteriores.

O instrumento empregado para a coleta dos dados tem cinco blocos: (1) dados gerais, com informações sobre o município e o local do atendimento, data, hora, consentimento em participar da pesquisa; (2) dados da pessoa atendida, com variáveis como idade, sexo, raça, escolaridade, trabalho e presença de deficiência; (3) dados de residência da vítima; (4) dados específicos da ocorrência, com questões sobre o tipo de violência ou acidente, especificando meios empregados, prováveis agressores, se o evento foi intencional ou não e se o indivíduo havia consumido álcool; e (5) dados sobre a lesão e a evolução, contemplando itens como as partes do corpo atingidas, a natureza da lesão e a evolução do caso.

A variável desfecho sob análise neste artigo foi a violência intrafamiliar, definida como qualquer forma de violência praticada por pai/mãe, companheiro(a) ou outro familiar. Com foco na violência intrafamiliar, nas análises estatísticas, esses casos foram comparados aos casos de violência cujos agressores não eram membros da família: amigo/conhecido, agente legal público, desconhecido e outro. Os casos de acidentes não estão incluídos no estudo.

Para descrição dos dados foram construídas as distribuições de frequência das variáveis segundo o sexo para cada um dos grupos etários: infância e adolescência (0-19 anos), adulto (20 a 59 anos) e idoso (60 anos ou mais). Com a finalidade de verificar associações utilizou-se o teste de Rao-Scott, com nível de significância de 5%.

Na etapa de modelagem, ajustou-se inicialmente modelos separados para cada um dos grupos etários estudados. A primeira etapa deste processo envolveu a realização da análise bivariada do desfecho (ter sofrido violência intrafamiliar) em relação a todas as seguintes variáveis: raça/cor de pele (branca, preta/parda, amarela/indígena), deficiência (sim, não), vulnerabilidades (cigano, quilombola, aldeado, pessoa em situação de rua), anos de escolaridade, trabalho (sim, não), natureza da violência (física, psicológica, sexual, negligência e outra), uso de álcool (sim, não), agressor [pai/mãe, companheiro(a), ex-companheiro(a), outro familiar, amigo/conhecido, agente legal público, desconhecido, outro], sexo do agressor (masculino, feminino, ambos), meio utilizado (força, arma de fogo, envenenamento, objeto perfuro cortante, objeto contundente, ameaça, substância/objeto quente, outro), local de ocorrência (domicílio, escola, área de recreação, via pública, outro), tipo de lesão (sem lesão, contusão/entorse/luxação, corte/laceração, fratura/amputação/trauma, intoxicação/queimaduras/outras), parte do corpo atingida (cabeça/pescoço, coluna/tórax/abdome, genitais/ânus, membros inferiores e superiores, múltiplos órgãos/regiões) e evolução (alta, internação hospitalar, encaminhamento ambulatorial, outros).

A seguir, procedeu-se a modelagem empregando apenas as variáveis cujos p-valores fossem inferiores a 0,20. Seguiu-se, então, para a modelagem do desfecho de todas as faixas etárias conjuntamente. Como para a situação anterior, o primeiro passo consistiu da análise bivariada entre o desfecho e as demais variáveis. A avaliação da qualidade do ajuste dos modelos foi realizada empregando-se a estatística R-quadrado de McFadden, cujos valores variam de 0 a 1. Todas as análises foram realizadas empregando-se o módulo Complex Samples do pacote estatístico SPSS 20.0.

A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) do Ministério da Saúde aprovou a realização da pesquisa. Obteve-se o consentimento verbal do paciente ou de seu responsável no momento de realização da entrevista. Conforme estabelecido na Resolução 466/2012, aos participantes foi garantido o total anonimato bem como a liberdade de interrupção da entrevista a qualquer momento, sem qualquer prejuízo para a vítima ou seus familiares.

Resultados

Foram pesquisados 4.893 indivíduos em serviços de emergência brasileiros no período investigado, dos quais 26,6% sofreram violência intrafamiliar (40,0% crianças e adolescentes, 57,2% adultos e 2,8% idosos) e 73,4% foram vítimas de violências praticadas por pessoa não pertencente à família.

A Tabela 1 mostra que dentre as 413 crianças e adolescentes que sofreram violência ocasionada por familiares 50,5% eram do sexo masculino, 54,5% eram pretos ou pardos e 89,1% tinham até 8 anos de estudo. Numa análise por sexo, verifica-se que 16,1% dos casos femininos relataram possuir entre nove e 12 anos de escolaridade contra apenas 3,6% dos masculinos (p = 0,010). Em relação ao tipo de violência sofrida, a negligência (58,5%) e a violência física (37,7%) se evidenciam. Vale ressaltar que 6,9% dos atendimentos de crianças e adolescentes do sexo feminino foram decorrentes de violência sexual e 0,7% de psicológica contra praticamente nenhum do sexo masculino em ambos tipos de violência (p = 0,001). O uso de álcool foi relatado por 4,4% das vítimas atendidas nessa faixa etária e 33,4% afirmaram que a violência foi intencional. O pai ou a mãe foram os principais agressores da violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes (59,9%), com destaque os do sexo feminino (p = 0,026). O domicílio foi o local de maior ocorrência da violência entre os membros da família (84,8%), 57,5% dos casos ocorreram de segunda a quinta e 51,3% ocorreram no período da noite/madrugada.

Tabela 1 Caracterização de crianças e adolescentes vítimas de violência intrafamiliar e atendidos em serviços de urgência e emergência em capitais brasileiras participantes do VIVA Inquérito segundo o sexo, 2014 (N = 413*). 

Variável SEXO Total p-valor

Masculino Feminino

% % %
Raça/cor da pele
Branca 41,0 45,8 43,4 0,430
Preta/parda 56,0 52,9 54,5
Amarela/indígena 3,0 1,3 2,2
Deficiência
Sim 2,3 - 1,2 0,055
Não 97,7 100,0 98,8
Vulnerabilidades
Sim 0,3 2,0 1,2 0,102
Não 99,7 98,0 98,8
Escolaridade
0 a 4 70,9 52,6 61,2 0,010
5 a 8 24,2 31,1 27,9
9 a 11 3,6 16,1 10,2
12 e mais 1,2 0,2 0,7
Trabalho
Sim 4,2 5,9 5,0 0,508
Não 95,8 94,1 95,0
Tipo de violência
Física 35,7 39,8 37,7 0,001
Sexual 0,1 6,9 3,5
Psicológica - 0,7 0,3
Negligência/abandono 64,2 52,6 58,5
Uso de Álcool
Sim 2,7 6,2 4,4 0,137
Não 97,3 93,8 95,6
Percepção da violência
Intencional 29,2 37,6 33,4 0,236
Não intencional 68,4 57,6 63,0
Não sabe 2,4 4,8 3,6
Sexo do agressor
Masculino 25,7 41,9 33,7 0,026
Feminino 58,5 47,5 53,1
Ambos 15,8 10,6 13,2
Meio utilizado
Força corporal/espancamento 15,6 33,5 24,4 0,004
Arma de fogo 0,9 0,1 0,5
Envenenamento 0,4 1,0 0,7
Objeto perfurocortante 10,4 6,8 8,6
Objeto contundente 8,0 3,1 5,6
Ameaça - 2,6 1,3
Substância/objeto quente 1,6 2,9 2,3
Outro 63,0 50,0 56,6
Local de ocorrência
Domicílio 85,3 84,2 84,8 0,897
Escola 0,1 - 0,1
Área de recreação 1,0 0,9 0,9
Via pública 11,5 13,5 12,5
Outros 2,1 1,4 1,7
Dia da ocorrência
Segunda a quinta 56,5 58,5 57,5 0,743
Sexta a domingo 43,5 41,5 42,5
Faixa de horário
Manhã 14,5 20,2 17,3 0,141
Tarde 36,4 26,1 31,4
Noite/madrugada 49,0 53,6 51,3
Tipo de lesão
Sem lesão 17,1 15,8 16,4 0,842
Contusão/Entorse e luxação 20,7 23,5 22,1
Corte e laceração 33,3 29,5 31,4
Fratura/Amputação/Traumas 18,7 17,3 18,0
Intoxicação/queimadura/outro 10,3 13,9 12,1
Parte do corpo atingida
Cabeça/pescoço 58,5 44,4 51,5 0,107
Coluna/tórax/Abdome 2,3 5,4 3,8
Genitais/Ânus 1,5 3,2 2,3
Membros (S e I) 30,2 33,4 31,8
Múltiplos órgãos/regiões 7,5 13,5 10,5
Evolução
Alta 78,1 80,6 79,4 0,283
Internação hospitalar 17,0 11,6 14,3
Encaminhamento ambulatorial 3,5 3,6 3,6
Outros 1,5 4,1 2,8

* tamanho da amostra sem expansão.

O espancamento e a força corporal foram os meios utilizados por 24,4% dos agressores. Chama atenção o fato de que 33,5% das crianças e adolescentes do sexo feminino terem sido vítimas de espancamento contra 15,6% daqueles do sexo masculino (p = 0,004). Entre os meninos, sobressai a vitimização por objetos perfuro cortantes (10,4%) e contundentes (8,0%), contra 6,8% e 3,1% respectivamente entre as meninas. Também ressalta-se que para 2,6% dos indivíduos do sexo feminino o meio empregado foi a ameaça (nenhum no sexo masculino).

Os cortes e as lacerações ocorreram em 31,4% das vítimas e a cabeça/pescoço foram atingidos em 51,5% dos casos. A evolução dos casos mostra que 79,4% tiveram alta após o atendimento no serviço de urgência e emergência.

Na Tabela 2 podem ser observadas as características dos 725 adultos atendidos nos serviços de emergência em função da violência intrafamiliar. Verifica-se que 57,7% eram do sexo feminino, 73,0% eram de cor preta/parda, 39,1% tinham entre nove e 11 anos de escolaridade e cerca de 60% trabalhavam. Na comparação segundo o sexo, há predomínio de homens de cor de pele preta/parda, de pessoas com menos anos de estudo e que trabalham (p < 0,001, p = 0,009 e p < 0,001 respectivamente).

Tabela 2 Caracterização dos adultos vítimas de violência intrafamiliar e atendidos em serviços de urgência e emergência em capitais brasileiras participantes do VIVA Inquérito segundo o sexo, 2014 (N = 725*). 

Variável SEXO Total p-valor

Masculino Feminino

% % %
Raça/cor da pele 0,000
Branca 17,5 32,3 26,0
Preta/parda 80,8 67,2 73,0
Amarela/indígena 1,7 0,4 0,9
Deficiência
Sim 2,6 2,0 2,2 0,649
Não 97,4 98,0 97,8
Vulnerabilidades
Sim 99,4 98,6 98,9 0,335
Não 0,6 1,4 1,1
Escolaridade
0 a 4 32,4 28,2 29,9 0,009
5 a 8 30,4 21,0 24,9
9 a 11 34,2 42,5 39,1
12 e mais 3,0 8,3 6,1
Trabalho
Sim 76,5 49,8 60,8 0,000
Não 23,5 50,2 39,2
Tipo de violência
Física 98,1 97,4 97,7 0,176
Sexual - 0,9 0,5
Psicológica 0,4 1,6 1,1
Negligência/abandono 1,4 - 0,6
Outro 0,1 - 0,0
Uso de Álcool
Sim 55,2 23,8 37,1 0,000
Não 44,8 76,2 62,9
Percepção da violência
Intencional 87,4 88,1 87,8 0,128
Não intencional 12,2 9,7 10,8
Não sabe 0,4 2,2 1,4
Sexo do agressor
Masculino 51,5 89,4 73,3 0,000
Feminino 46,7 8,8 24,8
Ambos 1,8 1,9 1,9
Meio utilizado
Força corporal/espancamento 37,6 73,1 58,1 0,000
Arma de fogo 2,3 1,1 1,6
Envenenamento - - -
Objeto perfurocortante 40,5 11,3 23,6
Objeto contundente 14,9 10,2 12,2
Ameaça 0,3 1,6 1,0
Substância/objeto quente 0,8 0,4 0,6
Outro 3,7 2,3 2,9
Local de ocorrência
Domicílio 76,1 76,6 76,4 0,977
Escola
Área de recreação 0,3 0,4 0,4
Via pública 17,6 17,4 17,5
Outros 6,1 5,5 5,7
Dia da ocorrência
Segunda a quinta 36,4 42,2 39,8 0,224
Sexta a domingo 63,6 57,8 60,2
Faixa de horário
Manhã 19,7 19,0 19,3 0,358
Tarde 25,2 31,7 28,9
Noite/madrugada 55,1 49,3 51,8
Tipo de lesão
Sem lesão 3,8 6,5 5,4 0,000
Contusão/Entorse e luxação 16,5 32,6 25,9
Corte e laceração 65,4 34,8 47,7
Fratura/Amputação/Traumas 11,3 21,0 16,9
Intoxicação/queimadura/outro 2,9 5,1 4,2
Parte do corpo atingida
Cabeça/pescoço 38,1 38,4 38,3 0,000
Coluna/tórax/Abdome 15,7 6,0 10,2
Genitais/Ânus 0,8 1,1 1,0
Membros (S e I) 31,8 26,9 29,0
Múltiplos órgãos/regiões 13,6 27,6 21,5
Evolução
Alta 69,4 83,4 77,5 0,005
Internação hospitalar 21,3 11,8 15,8
Encaminhamento ambulatorial 5,7 3,5 4,4
Outros 3,6 1,3 2,3

* tamanho da amostra sem expansão.

A violência física ocorreu em 97,7% dos casos e 37,1% dos indivíduos relataram que haviam consumido álcool, sendo este percentual bem superior entre os homens (55,2% contra 23,8% das mulheres) (p < 0,001). Para 87,8% o evento foi intencional, em 61,4%o agressor foi o/a companheiro/a e em 73,3% o agressor foi homem. No caso das vítimas mulheres, em 89,4% dos agressores foram do sexo masculino (p < 0,001). O espancamento e a força física foram utilizados em 58,1% dos casos, com destaque para a violência que atinge as mulheres (73,1% contra 37,6% dos homens); ao passo que entre os homens a utilização de objeto perfuro cortante se sobressai (40,5% contra 11,3% entre as mulheres) (p < 0,001). O domicílio foi o local de ocorrência de 76,4% dos eventos. De forma diferente ao que se observou entre as crianças e os adolescentes, as violências ocorreram de sexta a domingo em 60,2% dos atendimentos e 51,8%, nos horários da noite e madrugada. Assim como entre a faixa mais jovem, também para os adultos notou-se grande frequência de corte e lacerações (47,7%) e cabeça e pescoço sendo atingidos (38,3%). As mulheres são mais lesionadas por contusões/entorses e luxação, fraturas/amputações e traumas, e intoxicação/queimadura; enquanto os homens mais por cortes e lacerações (p < 0,001). As partes do corpo atingidas também diferem segundo sexo, com primazia da coluna/tórax/abdome entre os homens e múltiplos órgãos entre as mulheres (p < 0,001). Interessante observar que a alta após o atendimento no serviço de emergência é mais frequente entre as mulheres (83,4% contra 69,4% dos homens); enquanto que as internações são mais presentes entre os homens (21,3% contra 11,8% das mulheres) (p = 0,005).

A caracterização dos 36 idosos vítimas de violência intrafamiliar pode ser observada na Tabela 3: 57,4% eram do sexo feminino, 55,8% eram pardos ou negros e 26,2% possuíam alguma deficiência. É muito maior o número de idosas em situação de violência intrafamiliar (41,4%) do que de idosos (7,3%) (p = 0,03). A violência física e a negligência se destacam nesta faixa etária, com a presença de intencionalidade do ato em 70,7% dos casos. Meios como espancamento, envenenamento e uso de objeto contundente se ressaltam. O domicílio foi o local de 94,5% das ocorrências e nota-se que os homens foram majoritariamente vitimizados no período da tarde (77,5%) e as mulheres no período da manhã (44,1%) (p = 0,001). Nota-se ainda que 41,9% dos homens sofreram cortes e lacerações e 51,6% das mulheres, fraturas, traumas e amputações. Entre os idosos, as lesões afetaram com mais frequência múltiplos órgãos (42,6%). Já para as mulheres, membros superiores e inferiores se destacam (47,7%) (p = 0,049). Em relação à evolução do caso, 64,2% teve alta após o atendimento no serviço, sem distinção entre os sexos.

Tabela 3 Caracterização de idosos vítimas de violência intrafamiliar e atendidos em serviços de urgência e emergência em capitais brasileiras participantes do VIVA Inquérito segundo o sexo, 2014 (N = 36*). 

Variável SEXO Total p-valor

Masculino Feminino

% % %
Raça/cor da pele
Branca 47,0 40,6 43,3 0,768
Preta/parda 53,0 57,9 55,8
Amarela/indígena - 1,5 0,9
Deficiência
Sim 7,3 41,4 26,2 0,030
Não 92,7 58,6 73,8
Vulnerabilidades
Sim - - -
Não 100,0 100,0 100,0
Escolaridade
0 a 4 55,9 86,2 72,4 0,235
5 a 8 13,1 8,0 10,3
9 a 11 31,0 5,8 17,2
12 e mais
Trabalho
Sim 31,6 5,9 17,4 0,037
Não 68,4 94,1 82,6
Tipo de violência
Física 60,9 44,3 51,4 0,556
Sexual - - -
Psicológica
Negligência/abandono 39,1 54,1 47,7
Outro - 1,6 0,9
Uso de Álcool
Sim 18,2 8,4 13,0 0,419
Não 81,8 91,6 87,0
Percepção da violência
Intencional 91,3 55,5 70,7 0,222
Não intencional 8,7 28,2 19,9
Não sabe - 16,3 9,4
Sexo do agressor
Masculino 32,5 50,8 43,2 0,153
Feminino 33,1 44,7 39,9
Ambos 34,3 4,4 16,9
Meio utilizado
Força corporal/espancamento 21,6 34,0 28,6 0,093
Arma de fogo 2,0 - 0,9
Envenenamento 24,0 - 10,5
Objeto perfurocortante 10,6 - 4,6
Objeto contundente 25,5 12,7 18,3
Ameaça
Substância/objeto quente - 2,2 1,2
Outro 16,3 51,1 35,9
Local de ocorrência
Domicílio 97,9 92,1 94,5 0,587
Escola - - -
Área de recreação - - -
Via pública - 4,0 2,3
Outros 2,1 3,9 3,2
Dia da ocorrência
Segunda a quinta 62,9 71,8 68,5 0,595
Sexta a domingo 37,1 28,2 31,5
Faixa de horário
Manhã 2,1 44,1 26,6 0,001
Tarde 71,5 24,7 44,2
Noite/madrugada 26,4 31,2 29,2
Tipo de lesão
Sem lesão 11,0 - 4,7 0,103
Contusão/Entorse e luxação 13,0 22,5 18,5
Corte e laceração 41,9 18,3 28,4
Fratura/Amputação/Traumas 10,1 51,6 33,9
Intoxicação/queimadura/outro 24,0 7,5 14,5
Parte do corpo atingida
Cabeça/pescoço 35,7 43,3 40,3 0,049
Coluna/tórax/Abdome 4,5 5,4 5,1
Genitais/Ânus
Membros (S e I) 17,2 47,7 35,5
Múltiplos órgãos/regiões 42,6 3,6 19,1
Evolução
Alta 58,7 68,4 64,2 0,860
Internação hospitalar 31,2 25,7 28,0
Encaminhamento ambulatorial 10,1 5,9 7,7
Outros - - -

* tamanho da amostra sem expansão.

A Tabela 4 apresenta os resultados da análise bivariada segundo os casos atendidos por violência intrafamiliar e os decorrentes de violências praticadas por outras pessoas não pertencentes à família da vítima. Verifica-se que houve diferença estatisticamente significativa para todas as variáveis, exceto: dia da ocorrência (p = 0,952), deficiência (p = 0,078) e faixa de horário (p = 0,078). Apesar disso, as duas últimas foram inseridas no modelo de regressão logística visto que apresentaram p-valor inferior ao ponto de corte definido (0,2).

Tabela 4 Caracterização das vítimas de violência atendidos em serviços de urgência e emergência em capitais brasileiras participantes do VIVA Inquérito, 2014 (N = 4.893*). 

Características Violência cometida por não familiares Violência intrafamiliar Total p-valor

% % %
Sexo
Masculino 76,1 45,6 68,0 0,000
Feminino 23,9 54,4 32,0
Faixa etária
0 a 19 anos 25,0 40,0 29,0 0,000
20 a 59 anos 72,1 57,2 68,1
60 ou mais 2,8 2,8 2,8
Raça/cor da pele
Branca 28,4 33,3 29,7 0,035
Preta/parda 69,4 65,3 68,3
Amarela/indígena 2,1 1,4 2,0
Deficiência
Sim 3,9 2,5 3,5 0,078
Não 96,1 97,5 96,5
Vulnerabilidades
Sim 3,8 1,1 3,1 0,000
Não 96,2 98,9 96,9
Escolaridade
0 a 4 29,7 40,2 32,3 0,000
5 a 8 29,3 25,3 28,3
9 a 11 34,4 30,1 33,4
12 e mais 6,5 4,4 6,0
Trabalho
Sim 52,3 36,5 48,0 0,000
Não 47,7 63,5 52,0
Tipo de violência
Física 96,6 72,5 89,5 0,000
Sexual 1,5 1,7 1,5
Psicológica 0,7 0,8 0,7
Negligência/abandono 1,0 25 8,1
Outra 0,3 0,0 0,2
Uso de Álcool
Sim 36,9 23,2 33,2 0,000
Não 63,1 76,8 66,8
Percepção da violência
Intencional 83,1 66,2 78,6 0,000
Não intencional 13,4 31,3 18,2
Não sabe 3,5 2,5 3,3
Agressor
Pai/mãe - 25,9 7,9 0,000
Companheiro/a - 39,5 12,1
Outro familiar - 34,6 10,6
Amigo conhecido 32,1 - 22,3
Agente legal público 4,8 - 3,3
Desconhecido 60,3 - 41,8
Outro 2,8 - 1,9
Sexo do agressor
Masculino 87,2 57,0 77,4 0,000
Feminino 8,4 36,3 17,4
Ambos 4,4 6,7 5,2
Meio utilizado
Força corporal/espancamento 46,9 43,8 46 0,000
Arma de fogo 20,3 1,2 14,7
Envenenamento 0,1 0,6 0,2
Objeto perfuro cortante 18,6 17,3 18,2
Objeto contundente 10,6 9,7 10,3
Ameaça 0,6 1,1 0,8
Substância/objeto quente 0,1 1,2 0,5
Outro 2,7 25,1 9,3
Local de ocorrência
Domicílio 23,4 80,1 38,6 0,000
Escola 5,0 0,0 3,7
Área de recreação 2,9 0,6 2,3
Via pública 50,3 15,2 40,9
Outros 18,3 4,1 14,5
Dia da ocorrência
Segunda a quinta 47,6 47,5 47,6 0,952
Sexta a domingo 52,4 52,5 52,4
Faixa de horário
Manhã 18,3 18,8 18,4 0,078
Tarde 26,2 30,3 27,3
Noite/madrugada 55,6 50,9 54,3
Tipo de lesão
Sem lesão 5,7 9,8 6,8 0,000
Contusão/Entorse e luxação 18,2 24,1 19,7
Corte e laceração 48,6 40,5 46,4
Fratura/Amputação/Traumas 17,1 17,8 17,3
Intoxicação/queimadura/outro 10,5 7,8 9,7
Parte do corpo atingida
Cabeça/pescoço 32,4 43,1 35,2 0,000
Coluna/tórax/Abdome 14 7,7 12,3
Genitais/Ânus 0,9 1,4 1,1
Membros (S e I) 30,5 30,3 30,5
Múltiplos órgãos/regiões 22,2 17,4 20,9
Evolução
Alta 61,6 77,6 65,9 0,000
Internação hospitalar 29,2 15,6 25,6
Encaminhamento ambulatorial 5,3 4,4 5,0
Outros 3,9 2,4 3,5

* tamanho da amostra sem expansão.

Ainda da Tabela 4 pode-se visualizar as características daqueles que sofreram violência cometida por não familiares, se aproximando de um perfil de violência comunitária: 76,1% são homens, 72,1% têm de 20 a 59 anos, 69,4% são pardos ou negros, cerca de 41% possuem nove ou mais anos de estudo e 52,3% estavam trabalhando no momento. Quanto ao tipo de violência, a física se mostrou mais prevalente (96,6%), o consumo de álcool foi relatado por 36,9% dos indivíduos e 83,1% a consideraram como intencional. Em 60,3% dos casos o agressor foi um desconhecido e em 87,2%, um homem. Entre os meios empregados destacam-se o uso da força física/espancamento (46,9%), as armas de fogo (20,3%) e o uso de objetos perfuro cortantes (18,6%). Observa-se também que em 50,3% dos casos a via pública foi o local da ocorrência e que em 55,6% o evento ocorreu de noite ou de madrugada. Cortes e lacerações ocorreram em 48,6% das vítimas dessa forma de violência. Cabeça e pescoço (32,4%) e membros superiores e inferiores (30,5%) destacam-se entre as partes do corpo atingidas e 61,6% evoluíram para alta após atendimento no serviço de emergência. No perfil dos que sofrem violência intrafamiliar (todas as idades) predomina: mulher, adulto, cor da pele preta ou parda, com ensino fundamental, fora do mercado de trabalho, vítima de violência física e agressor do sexo masculino.

Os resultados dos ajustes de modelos segundo faixa etária (Tabela 5) mostram as seguintes variáveis como significativas e que permaneceram no modelo final para o grupo das crianças e adolescentes: sexo (menino), sexo do agressor (feminino) e escolaridade (mais baixa). Em relação aos que sofreram violência praticada por membros de fora da família, ser do sexo masculino representou uma proteção ou risco reduzido de sofrer violência intrafamiliar se comparado ao feminino. Já para a escolaridade, verifica-se que um menor número de anos de estudo aumentou a chance de sofrer violência intrafamiliar (p = 0,001). E, há menor chance de que os agressores que praticam violência intrafamiliar sejam homens, quando se compara com a categoria “ambos” e a violência não intrafamiliar.

Tabela 5 Razões de chance ajustadas com respectivos intervalos de confiança para as variáveis associadas ao desfecho violência intrafamiliar segundo grupos etários, Brasil, 2014. 

Característica OR ajustado IC 95%
Todos os grupos etários

Sexo
Masculino 0,23 0,18-0,29
Feminino referência
Escolaridade
0 a 4 1,65 1,31 - 2,08
5 ou mais referência
Sexo do agressor
Masculino 0,79 0,43 - 1,47
Feminino 3,24 1,65 - 6,38
Ambos referência

Crianças e adolescentes

Sexo
Masculino 0,34 0,21 - 0,57
Feminino referência
Escolaridade
0 a 4 2,28 1,41 - 3,69
5 ou mais referência
Sexo do agressor
Masculino 0,26 0,11 - 0,61
Feminino 1,48 0,57 - 3,9
Ambos referência

Adultos

Sexo
Masculino 0,19 0,14 - 0,25
Feminino referência
Raça/cor da pele
Branca 1,75 0,74 - 4,1
Preta/parda 2,37 1,03 - 5,46
Amarela/indígena referência
Sexo do agressor
Masculino 2,48 1,04 - 5,91
Feminino 9,69 3,69 - 25,45
Ambos referência

Idosos

Sexo
Masculino 0,27 0,09 - 0,75
Feminino referência

Já para a faixa adulta, sexo, cor da pele e sexo do agressor se mostraram significativas. Novamente, quando se compara com a violência cometida por não familiares, observa-se que adultos do sexo masculino têm menos chance que mulheres de sofrer violência praticada por familiares (OR = 0,19; IC95% = 0,14 – 0,25). Nota-se ainda que pessoas pardas ou negras têm maior chance (OR = 2,37; IC95% = 1,03 – 5,46) de violência intrafamiliar se comparados a pessoas com cor da pele amarela/indígena, quando se comparam as violências cometidas por familiares e não familiares. Em relação ao sexo do agressor, observa-se que há uma chance de 9,69 deste ser uma mulher se comparado com ser agredido por pessoas de ambos os sexos e de 2,48 para homens em relações a ambos os sexos.

Para os idosos, apenas a variável sexo permaneceu no modelo final e, assim como para os outros grupos etários, verificou-se proteção para sofrer violência cometida por familiares no sexo masculino (OR = 0,27; IC95% = 0,09 – 0,75).

O modelo ajustado para todas as faixas conjuntamente mostra que sexo, escolaridade da vítima e sexo do agressor permaneceram no modelo final, mostrando-se fatores chave na ocorrência de violência intrafamiliar. Homens possuem menor chance de sofrer violência intrafamiliar (OR = 0,23; IC95% = 0,18 – 0,29), pessoas com menos anos de estudo têm risco aumentado (OR = 1,65; IC95% = 1,31 – 2,08) e mulheres têm maior chance de cometerem violência intrafamiliar se comparado com a categoria “ambos os sexos” (OR = 3,24; IC95% = 1,65 – 6,38) (Tabela 5).

Discussão

A demanda de atendimento em serviços médicos de urgência/emergência por violências, especialmente a intrafamiliar, é um campo ainda desconhecido, subexplorado e subutilizado, apesar de se configurar como importante problema de saúde pública no Brasil e no mundo e de alcançar elevados patamares na morbimortalidade no país17,18. Assim, este estudo traz uma abordagem rica e inédita no estudo da violência intrafamiliar, ao investigar separadamente as etapas do ciclo de vida afetadas pelo fenômeno e que chegam aos serviços de urgência e emergência de várias capitais brasileiras. Os achados possibilitam identificar fatores chave na caracterização de casos de violência intrafamiliar, que ocasionaram lesões e por isso estão na emergência. Aliás, vale ressaltar que a investigação do fenômeno no contexto dos serviços de urgência e emergência é original no país. O maior conhecimento da violência intrafamiliar, especialmente comparada com casos de violência comunitária, possibilita o planejamento estratégico e favorece pistas para uma atuação que atenue os efeitos dessa situação e promova acesso a outros serviços.

Dentre as violências, a intrafamiliar tem particularidades que merecem atenção cuidadosa por parte dos profissionais de saúde, já que está imbuída de valores, crenças, comportamentos e formas de comunicação distorcidas entre familiares. Entender o contexto da violência, a maneira com que as pessoas da família se relacionam, a presença de episódios violentos anteriores, o receio em dar informações, o pacto de sigilo familiar em torno da situação e os aspectos relacionados a questões sociais, culturais e comunitárias têm um impacto profundo na forma com que se dá o acolhimento, o cuidado, o encaminhamento e a resolutividade da situação nos diversos níveis de atendimento em saúde.

Dentre os achados do estudo, chama atenção o fato de que um quarto das violências que chegam nesses serviços sejam ocasionadas por agressões de familiares, sendo especialmente a mãe a principal agressora na infância e adolescência; o parceiro íntimo na vida adulta, e os filhos na velhice. Destaca-se a alta prevalência de atendimento às mulheres vítimas da violência pelo parceiro íntimo, coadunando com o achado de Stark e Flitcraft19, que apontam a violência conjugal como a maior causa de lesão corporal nos serviços de emergência, alertando que as dimensões que acompanham esse sofrimento não são consideradas nas condutas médicas na medida em que um mesmo diagnóstico e procedimento são prescritos tanto à mulher que sofreu uma fratura por queda quanto àquela que apresentou uma por espancamento do companheiro. A situação é estarrecedora quando se estima que no Brasil ocorreram, entre 2009 a 2011, 16.993 feminicídios, o que equivale a uma taxa anual de mortalidade de 5,82 óbitos por 100.000 mulheres20. Nos Estados Unidos estima-se que a cada ano mais de meio milhão de lesões que requerem cuidados médicos resultam dessa forma de violência e mais de 145.000 exigem hospitalizações. Praticamente uma em cada três pacientes mulheres são vítimas de violência pelo parceiro íntimo21.

Outro achado relevante é a constatação de que ser do sexo feminino é um fator importante para a vitimização da violência intrafamiliar em praticamente todo o período da vida, o que remete à questões culturais de gênero fortemente presentes nas relações familiares, nas quais ser menina, mulher e idosa impõe um lugar de inferioridade e desigualdade entre os membros da família, podendo gerar tapas, murros, humilhações e até morte22. A menor escolaridade é outro dado que merece atenção5, apontando que a educação incrementa uma cultura de tolerância e respeito aos direitos humanos.

Pela própria característica pontual e esporádica do atendimento oferecido em serviço de urgência e emergência, a violência física é a principal causa de atenção em todas as etapas do ciclo da vida. Contudo, vale destacar a frequência da violência sexual entre meninas na infância/adolescência e a negligência entre idosos. Quanto à violência sexual, apesar de sua subnotificação, dados da Secretaria Especial dos Direitos Humanos23 mostram que no período de maio de 2003 a maio de 2004, aproximadamente 5 mil denúncias eram referentes a essa violência e cerca de 4 mil referiam-se à exploração sexual. Entre os idosos, a negligência e o abandono familiar são as violências mais presentes nessa fase da vida, muito ocasionada pelo estresse e desgaste emocional dos cuidadores e a dependência das vítimas24,25.

No que diz respeito ao contexto do atendimento em urgência e emergência, alguns fatores criam barreiras para um cuidado mais aprofundado dos casos que envolvem violência intrafamiliar, entre os quais estão: ênfase no fluxo, na intervenção rápida e nos aspectos tecnológicos de cuidado; sobrecarga de trabalho dos profissionais; desarticulação com serviços de referência; frustração dos profissionais pela incapacidade de resolver o problema ou ajudar; desamparo e isolamento das equipes de urgência e emergência e falta de preparo dos profissionais para lidar com a questão da violência, especialmente a intrafamiliar26-29.

Quanto às limitações do estudo, primeiramente ressalta-se o viés de seleção, uma vez que nem todos os casos de violência intrafamiliar chegam aos serviços de emergência, principalmente os de menor gravidade. Outros aspectos se referem à: amostra de conveniência, o que impossibilita generalizações; análise pontual da realidade, que revela apenas dados sobre vítimas não fatais atendidas em unidades de urgência e emergência por um curto período de tempo; qualidade do preenchimento do inquérito; dificuldade de comparar com achados semelhantes no contexto da emergência.

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