versão impressa ISSN 2595-0118versão On-line ISSN 2595-3192
BrJP vol.2 no.3 São Paulo jul./set. 2019 Epub 23-Set-2019
http://dx.doi.org/10.5935/2595-0118.20190053
Segundo a Academia Americana de Dor Orofacial (AAOP), a disfunção temporomandibular (DTM) é definida como um conjunto de sinais clínicos que envolvem os músculos da mastigação, articulação temporomandibular (ATM) e estruturas associadas1. Os sintomas mais frequentes são: cansaço muscular, dores na face, na ATM, dores de cabeça e ouvidos, limitação e desvio de movimentos mandibulares, podendo em muitos casos também apresentar sintomas em região cervical2.
A estreita relação entre as dores orofaciais e cervicais tem sido objeto de estudo de muitos pesquisadores2-4, e vários trabalhos têm demonstrado a convergência de diferentes tipos de aferentes nociceptivos ao subnúcleo caudal, podendo agir juntos, como uma unidade funcional, para processar informações nociceptivas dos tecidos craniofaciais e cervicais, incluindo os dos tecidos craniofaciais profundos, explicando a íntima relação entre os sintomas dolorosos em região facial e cervical4.
A literatura aponta que uma hiperexcitabilidade no sistema nociceptivo central pode favorecer o surgimento ou manutenção da dor crônica nos casos de DTM. Também é possível identificar que a sensibilidade aumentada dos músculos mastigatórios e cervicais pode estar relacionada com os sintomas de dor cervical5.
Além da relação com as dores cervicais, as dores orofaciais estão intimamente ligadas com aspectos psicoemocionais, que podem atuar como fatores predisponentes (que aumenta o risco de DTM) e/ou perpetuantes (que interfere no controle da doença)6,7. Essa relação entre fatores psicológicos e DTM é tão relevante que o Critério Diagnóstico para Disfunção Temporomandibular (DC/TMD) aborda 2 eixos de avaliação, um para os fatores físicos denominado eixo 1, e o que avalia a intensidade e gravidade da dor crônica e os níveis de sintomas psicológicos com uma abordagem biopsicossocial denominado eixo 2. A confiabilidade do DC/TMD já foi testada e considerada satisfatória em populações adultas8.
Quando a mente adoece, o corpo adoece, e as influências dessa relação mente e corpo são muito bem avaliadas pela medicina tradicional chinesa (MTC), no mundo ocidental, muitas vezes, a saúde é reconhecida como a ausência de doença. Na MTC observa-se o equilíbrio da combinação corpo, mente e espírito. Qualquer desequilíbrio dessa unidade integral causa doença, portanto, a pessoa deve manter uma relação harmoniosa dentro de si e de tudo ao seu redor9.
A MTC avalia os fatores patogênicos internos e externos usando a linguagem metafórica por causa de origem histórica e cultural, e não pode ser confundida com a fisiopatológica da medicina contemporânea. As emoções como medo, pânico, raiva, preocupação, alegria (excitação excessiva), tristeza e melancolia, cada uma delas são capazes de gerar problemas fisiológicos10. Por exemplo, as emoções como a raiva e o medo atingem o fígado e o rim respectivamente.
Sabendo-se dessa relação íntima ente as diversas áreas e a possível comorbidade entre todos os sintomas, há necessidade de uma abordagem interdisciplinar para o tratamento da DTM e todas as variáveis envolvidas11. Diante da atualidade e relevância do tema, o presente trabalho teve como objetivo descrever uma abordagem interdisciplinar relacionando as áreas da odontologia, otorrinolaringologia, fisioterapia, psicologia, acupuntura e nutrição no tratamento da dor orofacial e demais sintomas concomitantes como cervicalgia, labirintite, zumbido, ansiedade, estresse e baixa autoestima.
Paciente do sexo feminino, 48 anos, buscou avaliação na área de DTM e Dor Orofacial com sintomas de cansaço facial, dor durante movimento mandibular, zumbido bilateral com maior intensidade do lado esquerdo, acompanhado de dor cervical e labirintite. A paciente apresentava histórico prévio de tratamento para cada uma dessas queixas de forma individualizada, com resultados limitados ou de curto prazo. O tratamento com fármacos para labirintite, proposto pela área da otorrinolaringologia e usado durante os últimos 30 meses, não estava controlando os sintomas e a labirintite era diária com momentos de piora no decorrer do dia.
A paciente foi submetida à avaliação clínica de acordo com o seguinte instrumento e protocolo:
1. Preenchimento da ficha clínica para detalhar a queixa principal, as características da dor da DTM (local, intensidade, qualidade, duração, fatores de melhora e de piora), presença de outras condições dolorosas na região cervical, dores de cabeça ou outras dores, bem como a história médica;
2. Aplicação da AAOP foi usada para o diagnóstico diferencial com outras condições que podem assemelhar-se à DTM;
3. Uso do questionário sobre DTM (DC/TMD) para diagnóstico de mialgia com limitação de abertura bucal. Foram avaliados os músculos masseter (ventre superficial e profundo) e temporal e as dores referidas para região facial quando palpados os músculos esternocleidomastoideo, suboccipital e trapézio;
4. Avaliação do fisioterapeuta com foco na terapia manual. Foi diagnosticada a presença de dor aos movimentos ativos e a amplitude de movimento (ADM), dor à palpação dos músculos cervicais e alteração postural (ombros e cabeça anteriorizados) e restrição na mobilidade das fáscias cervicais e torácicas;
5. Avaliação psicológica após preenchimento do eixo 2 do DC que tenha demonstrado a influência negativa do quadro doloroso, do zumbido e da labirintite em suas atividades diárias e relacionamento social bem como quadro de ansiedade e preocupação com sua saúde;
6. Avaliação nutricional com foco nas questões do zumbido, dor, excesso de peso, baixa autoestima, diagnóstico anterior de colite ulcerativa e fissura anal. Ao diagnóstico nutricional foram identificados: obesidade 1 (OMS), apresentando peso - 81,5kg, altura - 1,64m, índice de massa corporal - 30,3kg/m2, desequilíbrio no consumo nutricional, com consumo exacerbado de carboidratos simples;
7. Avaliação diagnóstica pela MTC em pacientes com quadro de labirintite e climatério. A MTC associa essas queixas a uma deficiência de rim;
8. Preenchimento do diário de dor e escala numérica verbal desde a primeira avaliação para acompanhar a progressão ou diminuição do quadro doloroso e demais sintomas.
A equipe interdisciplinar realizou reunião prévia ao início do atendimento para compartilhar o diagnóstico de cada área e apresentar o plano de tratamento proposto. Ficou assim definido: consultas na área da odontologia e nutrição - uma consulta por mês, consultas de fisioterapia, acupuntura e psicologia - duas vezes ao mês. Reuniões clínicas quinzenais para acompanhamento da evolução de cada área e troca de informações, caso necessário, sob acordo com a paciente.
Foi orientado o preenchimento de diário de dor contendo informações sobre a frequência e intensidade do zumbido, dor facial, dor cervical e labirintite bem como fatores estressores e qualidade do sono.
Foi iniciado um protocolo terapêutico de DTM muscular com inativação de ponto-gatilho miofascial (IPG) de músculo masseter, temporal e esternocleidomastoideo durante os 4 primeiros meses, bem como orientação sobre alimentação, exercícios musculares e termoterapia.
Concomitante ao trabalho da odontologia foram iniciadas sessões de fisioterapia com terapia manual de liberação miofascial e relaxamento das estruturas envolvidas no complexo de compensação e dor.
O tratamento realizado através da terapia manual teve como abordagem a inibição dos espasmos musculares, manipulação do tecido conectivo, liberação miofascial e mobilização articular cervical.
A labirintite foi avaliada por otorrinolaringologista que diagnosticou perda auditiva crônica. O fármaco para controle da labirintite já estava sendo utilizada há 1 ano sem resultado satisfatório. Foi, então, introduzida a acupuntura para auxiliar nesse sintoma. Nas primeiras sessões, a paciente já percebeu uma diferença no quadro de labirintite e melhora na qualidade do sono e da ansiedade. Por volta da quinta sessão, o sintoma de labirintite deixou de ser constante e havia relato de dias sem a queixa.
As sessões de psicologia ocorreram a cada 15 dias durante todo o tratamento. Em 2 momentos houve piora dos sintomas, relacionados diretamente com situações estressoras que desequilibraram emocionalmente a paciente, como estressores no trabalho, decisões pessoais e autopercepção de vida. Essas situações foram abordadas pela terapia e sob assentimento da paciente, foi informada aos demais profissionais nas reuniões clínicas quinzenais realizadas pela equipe, para melhor condução do caso.
A melhora dos sintomas foi gradativa sendo acompanhada a cada consulta pela escala numérica verbal e relato da paciente.
O diário de dor apontou diminuição de 100% da labirintite, dores na face e tensão na região de face e cervical após 9 meses de tratamento. O zumbido não teve uma melhora no sentido da diminuição do volume, mas reduziu a percepção da paciente quanto ao incômodo que que provocava às atividades sociais da paciente ou à permanência em ambientes com barulho ou música.
Na área da nutrição foi prescrito cardápio com adequações nutricionais ao perfil e particularidades apresentadas pela paciente.
Figura 1 Acompanhamento da frequência de dias de labirintite desde o mês de outubro de 2017 a outubro de 2018
Figura 2 Sintoma de disfunção temporomandibular, dores na face, articulação, limitação de abertura. Melhora nos 4 primeiros meses e 2 picos de recidiva relacionado a fatores emocionais
Nos 8 meses de acompanhamento nutricional, apresentou 100% de melhora da dor, no perfil metabólico, na escolha e ingesta alimentar. Houve redução de 7,7kg de peso o que proporcionou melhora da autoestima, maior motivação e disposição da paciente, com acréscimo de mais atividades físicas e sociais no dia a dia. O zumbido apresentou redução do volume em apenas um momento do tratamento nutricional, quando iniciada a suplementação específica. Entretanto houve retorno ao estado anterior. Por outro lado, a percepção auditiva não lhe incomoda atualmente como antes do tratamento interdisciplinar.
A presença de dor é um dos motivos mais comuns para a busca por profissionais da área da saúde, e dentre essas dores encontra-se a DTM, que tem demonstrado um relacionamento íntimo com várias outras comorbidades como dor cervical e dores de cabeça. Todas essas disfunções poderão tornar-se crônicas se não gerenciadas desde o início, causando fenômenos fisiopatológicos como sensibilização central e diminuição da ação do sistema inibitório de dor2. Pesquisas atuais demonstraram que o relacionamento do sintoma doloroso nessas diversas regiões, quando acontece de forma concomitante, pode ser explicado pelo mecanismo fisiológico de convergência neuronal2.
Ficou evidente nessa paciente a influência dos fatores emocionais na piora do quadro durante o acompanhamento de 9 meses. Outros autores também constataram o fator psicológico influenciando nos quadros de dor6,7, principalmente nas dores musculares. No estudo de Paiva Bertoli et al.6, a relação entre ansiedade e DTM foi significante, tanto em DTM muscular quanto articular, no deslocamento de disco com redução, cerca de 70% da amostra apresentou ansiedade moderada e cerca de 12% apresentaram alta ansiedade. Uma possível explicação para a relação entre dor e ansiedade na DTM pode dar-se ao fato de que a ansiedade exacerba a tensão do músculo mastigatório por apertamento. O estudo de Alkhudhairy et al.11 demonstrou através de questionários que os hábitos e a emoção apresentavam relação estatisticamente significante como: “dor ou rigidez na mandíbula ao acordar, ou hábito de apertar os dentes” e “com que frequência você ficou chateado por causa de algo que aconteceu inesperadamente”, ou então “você já teve dor em sua mandíbula, têmpora, orelha, ou na frente da orelha” e “quantas vezes você se sentiu chateado por causa de algo que aconteceu inesperadamente”. Essa avaliação biopsicosocial no tratamento da DTM é tão importante que o DC-TMD a inclui no eixo II de avaliação dos aspectos psicoemocionais. O estudo de Dworkin et al.8 demonstrou que os níveis severos de somatização podem potencialmente confundir a interpretação do exame clínico do eixo I, influenciando no diagnóstico e controle da DTM.
Neste relato, a DTM foi controlada a partir do quarto mês de tratamento, com remissão total dos sintomas no quinto mês. Porém, houve 2 episódios de piora do quadro após estabilização das dores e dos sintomas de tensão facial e limitação de abertura bucal, claramente relacionados a fatores de estresse emocional. Novas sessões de IPG foram realizadas e o emocional controlado e os sintomas cessaram.
Segundo a MTC, a fisiologia do rim também está relacionada com a força de vontade ou desejo de realizar alguma coisa. O tratamento contribuiu muito para a paciente desenvolver mudança de hábitos, pois a cada etapa promoveu autopercepção corporal, controle emocional e determinavam o equilíbrio físico.
Como apresentado no trabalho de Tai9 a cura não pode ser isolada por um método físico específico. Em vez disso, qualquer doença deve ser entendida e tratada de forma holística e equilibrada como propõe a MTC13.
Dentre os fatores associados ao zumbido, as alterações metabólicas podem prejudicar o funcionamento da orelha interna. Isso porque lesões das células ciliadas decorrentes da resistência periférica à insulina, das alterações do metabolismo glicose, da hiperinsulinemia, da dieta hiperlipídica, da disponibilidade de ATP, dos níveis de oxigênio, podem modificar a homeostase coclear12.
O acompanhamento nutricional, o ajuste metabólico e a perda de peso contribuíram para a melhora da qualidade de vida e da autoestima, no funcionamento da orelha interna, auxiliando no controle da labirintite. Bem como os pontos-gatilhos inativados durante as sessões de DTM muscular puderam realizar um relaxamento dos músculos do ouvido e dos músculos da mastigação contribuindo para a melhora dos sintomas do zumbido.
Este é apenas um relato de caso, com variáveis não controladas, mas o interessante de se destacar neste estudo é o fato de a paciente ter buscado anteriormente vários tratamentos por vários anos, de áreas isoladas, não simultâneos, que trazia resultado muito pequeno ou quase inexistente, tanto que as dores retornavam em pouco tempo. Quando a terapia passou a ser interdisciplinar e concomitante entre todas as áreas, o controle foi atingido e a paciente conseguiu atingir um equilíbrio psicoemocional relevante e um autoconhecimento corporal importante que a mantém saudável e com boa qualidade de vida.
O trabalho interdisciplinar promoveu uma abordagem global dos sintomas da paciente.