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Atendimentos de jovens vítimas de agressões em serviços públicos de urgência e emergência, 2011: diferenças entre sexos

Atendimentos de jovens vítimas de agressões em serviços públicos de urgência e emergência, 2011: diferenças entre sexos

Autores:

Alice Cristina Medeiros Melo,
Leila Posenato Garcia

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.4 Rio de Janeiro abr. 2017

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017224.10992015

Introdução

Os padrões de saúde da juventude têm sido afetados por mudanças sociais, econômicas e políticas globais ocorridas nas últimas décadas, em todo o mundo1. No Brasil, o Estatuto da Juventude (Lei n. 12.852/2013)2 foi promulgado em 2013. Este inclui, entre seus princípios e diretrizes, a promoção da vida segura e da cultura da paz, bem como a necessidade de gestão da informação e produção de conhecimento sobre jovens, com o objetivo de desenvolver políticas públicas intersetoriais, programas e ações para a juventude. A população de 15 a 29 anos de idade, contemplada pelo Estatuto da Juventude, correspondia a aproximadamente 52 milhões de jovens, ou mais de um quarto da população brasileira, em 20103.

Entre os jovens brasileiros, as causas externas são a principal causa de mortalidade. Em 2013, foram registrados 73,2 mil óbitos por estas causas, com importantes diferenças entre os sexos: 80,5% foram de jovens do sexo masculino4. Quanto aos homicídios, foi observada predominância de vítimas do sexo masculino em todas as faixas etárias no Brasil e nas Américas, no período de 1999 a 20095.

No Brasil, a elevada mortalidade relacionada à violência é atribuída aos homicídios em contextos urbanos, cujos agressores e vítimas são principalmente os homens jovens, tendo nas desigualdades sociais um de seus principais determinantes6, diferente da realidade de grande parte dos países membros da Organização Mundial de Saúde (OMS), onde os óbitos por agressões estão relacionados a conflitos civis1.

Frente a isto, alguns estudos têm discutido as diferenças quanto aos padrões de morbimortalidade as relacionando, especialmente, a modelos de masculinidade7-9. Segundo Souza et al.10, os homens se expõem mais a situações de risco, por conta de comportamentos reafirmadores da masculinidade, configurados por práticas machistas e que podem levar à morte precoce.

Por sua vez, as mulheres são as principais vítimas de violência doméstica e familiar. Os parceiros íntimos são os principais assassinos de mulheres. Estudo de revisão sistemática revelou que aproximadamente 40% de todos os homicídios de mulheres no mundo são cometidos por um parceiro íntimo11. Estudo realizado em São Paulo e Pernambuco, no ano de 2003, revelou que em aproximadamente metade dos casos de violência contra a mulher, o agressor era um parceiro íntimo (incluindo maridos, companheiros, namorados ou ex-parceiros)12.

A violência vem sendo relatada como um fenômeno sócio-histórico, que se constitui em importante problema para a saúde pública, exigindo, assim, a elaboração de políticas e práticas específicas13. Considerando-se a recente aprovação do Estatuto da Juventude e o fato de que a violência entre jovens envolve características peculiares e diferenças marcantes em relação ao sexo, justifica-se a realização de estudos sobre o tema, que possam fornecer subsídios ao enfrentamento desse problema na juventude no Brasil.

O presente estudo tem como objetivo descrever as características das agressões entre jovens vítimas de violências atendidos em serviços de urgência e emergência no Brasil, segundo sexos.

Método

Trata-se de um estudo descritivo, realizado com dados das vítimas de violências atendidas em serviços de urgência e emergência vinculados ao Sistema Único de Saúde (SUS), obtidos por meio de inquérito transversal, realizado em 2011, no âmbito do Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA).

Para o presente estudo, foram incluídas exclusivamente as vítimas jovens, na faixa etária de 15 a 29 anos, atendidas em 71 serviços de urgência e emergência situados em 24 capitais brasileiras e no Distrito Federal. As capitais dos estados do Amazonas (Manaus) e São Paulo (São Paulo) foram excluídas devido a perda de informação.

Os serviços de urgência e emergência foram selecionados a partir do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), tendo como critérios de inclusão: (1) prestar serviço de urgência e emergência e (2) ser serviço de referência para atendimento de causas externas no município.

Em cada um dos serviços participantes, os dados do VIVA inquérito foram coletados em um período de 30 dias consecutivos, divididos em 60 turnos de 12 horas, entre os meses de setembro e outubro de 2011. Para cada uma das capitais, o tamanho mínimo da amostra foi de 2.000 atendimentos, número este que foi dividido pela média por turno de atendimentos por causas externas realizados no mesmo serviço em anos anteriores, obtido por meio do Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS) e do VIVA Inquérito (para os serviços participantes da pesquisa nos anos anteriores – 2006, 2007 e 2009).

Os turnos foram selecionados por meio de amostragem probabilística. Os estabelecimentos constituíram conglomerados e os turnos corresponderam à unidade primária de amostragem. Foram incluídos na amostra do VIVA Inquérito todos os atendimentos por acidentes e violências realizados nos turnos sorteados. Foram excluídas as vítimas que procuraram atendimentos pela mesma ocorrência pela segunda ou por mais vezes, a exemplo de retornos médicos e/ou complicações da assistência. Informações adicionais podem ser obtidas em publicação específica14.

Os dados foram coletados por meio de entrevistas realizadas por entrevistadores treinados, utilizando formulário padronizado. O tipo de ocorrência que motivou o atendimento foi classificado por meio das respostas obtidas durante as entrevistas e segundo as definições constantes da 10ª revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas relacionados à Saúde (CID-10), referentes ao capítulo XX–Causas externas de morbidade e mortalidade. Para o presente estudo, foram selecionadas as ocorrências classificadas como “agressão/maus-tratos”.

As variáveis estudadas foram:

- sexo: masculino, feminino;

- idade: 15-18, 19-24, 25-29;

- cor da pele: branca/amarela/indígena, preta ou parda;

- consumo de bebida alcoólica pela vítima nas 6 horas anteriores à ocorrência, referido pelo entrevistado, ou suspeitado pelo entrevistador: não, sim;

- procura de atendimento em outro serviço pela mesma ocorrência, antes do atendimento no local da entrevista: não, sim;

- dia da semana da ocorrência: Segunda a sexta, sábado a domingo;

- período/turno da ocorrência: manhã (6:00 às 11:59 horas), tarde (12:00 às 17:59 horas), noite (18:00 às 23:59 horas) ou madrugada (24:00 às 5:59 horas);

- natureza da agressão: física, sexual, psicológica, outros;

- meio de agressão: força corporal/espancamento, arma de fogo, objeto perfurocortante, objeto contundente, outros;

- provável autor da agressão, referido pela vítima: pai/mãe/outro familiar, companheiro/ex-companheiro, amigo/conhecido, agente legal, desconhecido, outros;

- sexo do provável autor da agressão: masculino, feminino, ambos os sexos;

- local de ocorrência: domicílio, via pública, bar ou similar, outro;

- natureza da lesão: sem lesão, contusão, corte/laceração, entorse/luxação, fratura, traumatismo cranioencefálico/politraumatismo, outros;

- parte do corpo atingida: cabeça/pescoço, tronco, membros superiores e inferiores, múltiplos órgãos, outros;

- evolução na emergência nas primeiras 24 horas: alta, internação hospitalar, encaminhamento ambulatorial, encaminhamento para outro serviço, evasão/fuga, óbito).

Para investigação das diferenças entre proporções nas categorias das variáveis estudadas entre sexos, foi empregado o teste do qui-quadrado (Rao-Scott) com nível de significância de 5%. As análises foram realizadas com auxílio do programa Stata, versão 12 (StataCorp), utilizando-se o módulo survey, tendo em vista que os dados são provenientes de plano amostral complexo.

O projeto do VIVA Inquérito 2011 foi avaliado e aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), do Ministério da Saúde. A coleta de dados foi realizada após obtenção do consentimento verbal das vítimas, ou de seus responsáveis ou acompanhantes, quando estas eram menores de 18 anos ou estavam inconscientes.

Resultados

No total, 16.120 jovens foram atendidos em serviços de urgência participantes do VIVA Inquérito, em 2011 (11.461 homens e 4.659 mulheres). Deste total, 1.894 (11,7%) eram vítimas de violências, entre as quais predominaram o sexo masculino (n = 1.422; 71,5%) em relação ao feminino (n = 472; 24,9%).

A Tabela 1 descreve as características das vítimas e da ocorrência, para o total da amostra e segundo os sexos. Quase metade das vítimas jovens estava na faixa de 19 a 24 anos (45,3%), sem diferenças significativas entre os sexos (p = 0,157). Mais de dois terços (75,2%) eram de cor da pele preta ou parda, também sem diferenças entre os sexos (p = 0,150). O consumo de bebida alcoólica nas seis horas anteriores à ocorrência foi relatado em maior proporção pelas vítimas do sexo masculino (52,8%) em relação ao feminino (33,9%) (p < 0,001). A procura de atendimento em outro serviço, pela mesma ocorrência, foi registrada em 23,6% dos atendimentos, sem diferenças entre os sexos (p = 0,577).

Tabela 1 Descrição das características das vítimas de agressões entre jovens (15-29 anos) atendidos em serviços de urgência e emergência, segundo sexo. VIVA Inquérito, 2011. 

Variáveis Masculino Feminino Total p*

n % n % n %
Idade (anos) 0,157
15-18 271 18,4 114 22,8 385 19,5
19-24 645 45,2 213 45,5 858 45,3
25-29 506 36,4 145 31,7 651 35,2
Cor da pele 0,150
Branca/amarela/indígena 303 23,8 122 27,7 425 24,8
Preta/parda 1.110 76,2 347 72,3 1.457 75,2
Consumo de bebida alcoólicaa < 0,001
Não 541 47,2 257 66,1 798 51,8
Sim 641 52,8 129 33,9 770 48,2
Procura de atendimento em outro serviçob 0,577
Não 1.075 76,8 353 75,3 1.428 76,4
Sim 317 23,3 110 24,7 427 23,6
Dia da semana da ocorrência 0,080
Segunda a sexta 734 53,9 274 59,7 1.008 55,3
Sábado ou domingo 681 46,1 196 40,3 877 44,7
Período da ocorrência 0,089
Manhã 228 16,5 69 13,4 297 15,8
Tarde 304 21,8 126 27,7 430 23,3
Noite 492 34,4 169 36,0 661 34,8
Madrugada 395 27,3 107 22,9 502 26,2

*Teste do qui-quadrado (Rao-Scott). a Nas 6 horas anteriores, referido pela entrevistada, ou suspeitado pelo entrevistador. b Pela mesma ocorrência, antes do atendimento no local da entrevista.

Os episódios de violência foram mais frequentes aos sábados e domingos, que concentraram 46,1% das ocorrências entre vítimas do sexo masculino e 40,3% do feminino (Tabela 1, Figura 1).

Figura 1 Distribuição dos atendimentos das vítimas de agressões entre jovens (15-29 anos) nos serviços de urgência e emergência, segundo dia da semana de ocorrência e sexo. VIVA Inquérito, 2011. 

Quanto à hora da ocorrência, houve maior frequência à noite e de madrugada entre vítimas do sexo masculino (34,4% e 27,3%, respectivamente) e à noite e tarde entre aquelas do sexo feminino (36,0% e 27,7%, respectivamente) (Tabela 1). A Figura 2 ilustra a distribuição das ocorrências segundo sexo e hora do dia. Observa-se crescimento do volume de ocorrências a partir das 19 horas, em ambos os sexos.

Figura 2 Distribuição dos atendimentos das vítimas de agressões entre jovens (15-29 anos) em serviços de urgência e emergência, segundo hora de ocorrência e sexo, VIVA Inquérito. 2011. 

Foram observadas diferenças estatisticamente significativas entre os sexos segundo todas as características das agressões estudadas (p < 0,001) (Tabela 2). A natureza da agressão mais frequente foi violência física, nos sexos masculino (99,2%) e feminino (97,9%). Entre as vítimas do sexo feminino, as violências sexual (1,1%) e psicológica (0,6%) foram mais frequentes em relação ao masculino (0,6% e zero, respectivamente). Força corporal ou espancamento foi o principal meio de agressão, com maior frequência entre vítimas do sexo feminino (58,7%) em comparação ao masculino (35,9%). Por sua vez, a agressão por arma de fogo foi mais frequente entre vítimas do sexo masculino (23,1%) em relação ao feminino (7,4%) (Tabela 2).

Tabela 2 Descrição das características das agressões entre jovens (15-29 anos) atendidos em serviços de urgência e emergência, segundo sexos. VIVA Inquérito, 2011. 

Variáveis Masculino Feminino Total p*

n % n % n %
Natureza da agressão 0,002
Física 1403 99,2 457 97,9 1860 98,9
Sexual 3 0,2 6 1,1 9 0,4
Psicológica - - 6 0,6 6 0,2
Outros 7 0,6 1 0,3 8 0,7
Meio de agressão < 0,001
Força corporal/Espancamento 512 35,9 268 58,7 780 41,4
Arma de fogo 306 23,1 30 7,4 336 19,4
Objeto perfurocortante 429 29,1 118 21,6 547 27,3
Objeto contundente 148 11,1 36 9,3 184 10,7
Outros 14 0,8 18 2,9 32 1,3
Provável autor da agressão < 0,001
Pai/mãe/Outro familiar 115 8,0 72 15,9 187 9,9
Companheiro/Ex-companheiro 61 4,1 152 31,8 213 11,0
Amigo/conhecido 412 30,1 113 23,2 525 28,4
Agente legal 56 4,1 3 0,6 59 3,2
Desconhecido 685 52,5 115 27,1 800 46,2
Outros 18 1,2 8 1,5 26 1,3
Sexo do provável autor da agressão < 0,001
Masculino 1174 92,8 315 72,5 1489 87,6
Feminino 71 5,0 125 25,8 196 10,3
Ambos os sexos 32 2,2 6 1,7 38 2,1
Local de ocorrência < 0,001
Domicílioc 289 19,9 221 44,1 510 25,8
Via pública 757 55,4 153 34,3 910 50,3
Bar ou Similar 194 13,5 52 13,4 246 13,5
Outro 155 11,1 37 8,3 192 10,4
Natureza da lesão < 0,001
Sem lesão 11 1,1 20 3,5 31 1,6
Contusão 150 12,1 81 18,5 231 13,6
Corte/Laceração 891 60,3 245 49,8 1136 57,8
Entorse/Luxação 55 3,5 40 11,4 95 5,4
Fratura 86 6,7 24 5,2 110 6,4
Traumatismo Cranioencefálico/Politraumatismo 148 11,0 27 7,1 175 10,1
Outra 72 5,2 24 4,5 96 5,1
Parte do corpo atingida 0,022
Cabeça/pescoçod 544 37,1 190 40,3 734 37,8
Troncoe 252 17,5 50 10,7 302 15,9
Membros Superiores/Inferiores 400 28,8 141 32,6 541 29,7
Múltiplos órgãos 212 16,7 67 16,3 279 16,6
Evolução na emergência nas primeiras 24 horas < 0,001
Alta 837 60,6 348 77,2 1185 64,6
Internação hospitalarf 426 29,7 79 16,4 505 26,5
Encaminhamento ambulatorial 85 6,3 28 4,6 113 5,9
Evasão/fuga 23 1,3 8 1,7 31 1,4
Óbito 24 2,1 1 0,2 25 1,7

*Teste do qui-quadrado (Rao-Scott). c Inclui residência e habitação coletiva. d Inclui boca/dentes, outra região da cabeça/face, pescoço. e Inclui Coluna/medula, tórax/dorso, abdome/quadril e genitais/anus. f Inclui internação hospitalar e encaminhamento para outro serviço.

Entre vítimas do sexo feminino, os principais agressores foram companheiros ou ex-companheiros (31,8%), enquanto entre aquelas do sexo masculino, foram desconhecidos (27,1%). Ainda, no sexo masculino, a agressão por agente legal foi mais frequente (4,1%) em relação ao feminino (0,6%). O sexo masculino destacou-se como o principal perpetrador das agressões, tanto para vítimas do sexo masculino (92,8%), quanto do feminino (72,5%). A via pública foi o local mais frequente de agressão entre as vítimas do sexo masculino (55,4%), enquanto o domicílio foi o principal local entre aquelas do sexo feminino (44,1%) (Tabela 2).

Quanto à natureza da lesão, cortes ou lacerações foram mais frequentes entre vítimas de ambos os sexos (60,3% masculino e 49,8% feminino), seguidos por traumatismos (11,0% e 7,1%, respectivamente). Nas primeiras 24 horas após o atendimento, a maior parte das vítimas evoluiu para alta, com maior proporção no sexo feminino (77,2%) em relação ao masculino (60,6%). Entre vítimas do sexo masculino, houve maior ocorrência de óbito nas primeiras 24 horas (2,1%) em comparação àquelas do sexo feminino (0,2%) (Tabela 2).

Discussão

Foram observadas diferenças marcantes entre as características das vítimas e das agressões, entre jovens atendidos em serviços públicos de urgência e emergência. Indivíduos do sexo masculino predominaram entre as vítimas e foram os principais agressores. Entre eles, a maior parte das agressões ocorreu em via pública e foi perpetrada por desconhecido. Entre vítimas do sexo feminino, predominaram ocorrências no domicílio, perpetradas por companheiros, ex-companheiros, familiares ou conhecidos. Entre vítimas do sexo masculino, foi observada maior proporção de lesões mais graves e óbitos nas primeiras 24 horas, em comparação com aquelas do sexo feminino. Outro achado que merece destaque é o elevado consumo de álcool pelas vítimas de agressão, relatado por mais da metade das do sexo masculino e um terço das do feminino.

Os achados do presente estudo foram consistentes com os de outros realizados no Brasil e no exterior5,13,15 quanto à predominância do sexo masculino como vítima e autor de agressão. Estudo sobre a morbimortalidade de jovens brasileiros por agressões, realizado no Brasil, no período de 1996 a 2007, evidenciou uma razão de sexos masculino:feminino de 11,6 no número de óbitos, 4,5 no número de internação e 2,8 no número de atendimentos de emergência16.

Diferenças de gênero com relação aos padrões de morbimortalidade, ao uso de serviços e às necessidades de saúde como relacionados a modelos de masculinidade têm sido amplamente discutidas7. Segundo Alves et al.17, a vulnerabilidade dos homens é agravada por sua origem social e cultural, que os condiciona à posição de dominador, instituindo a violência como um atributo próprio da sua natureza, e os coloca na condição de vítimas e autores de violência.

No presente estudo, a via pública destacou-se como o local mais frequente de agressão entre as vítimas do sexo masculino, o que é compatível com o maior envolvimento dos homens na violência urbana. Estudo sobre características dos municípios e o risco de homicídios em homens, evidenciou que os de maior porte populacional e com maior urbanização apresentaram maiores taxas, reforçando a ideia do papel de características demográficas como componentes explicativos do crescimento da violência no Brasil18.

As armas de fogo foram um importante meio de agressão, envolvido em quase um quinto dos atendimentos. Entre as vítimas do sexo masculino, quase uma em cada quatro lesões teve como causa as armas de fogo. Estudo realizado na Argentina, no período 1991 a 2006, evidenciou que 48,5% das vítimas fatais de lesões por armas de fogo estavam faixa etária 15 a 29 anos de idade19. Ademais, análise dos homicídios de mulheres em idade fértil, realizado em Recife/PE, no período de 2003 a 2007, apontou que mais de 80% dos óbitos ocorreram como resultado de agressões com uso de arma de fogo20.

Apesar do sexo masculino predominar entre as vítimas de violência, o perfil dos atendimentos das vítimas do sexo feminino merece reflexão. Entre estas, prevaleceram lesões menos graves e agressões em circunstâncias consistentes com a violência doméstica e familiar, com predomínio de ocorrências no domicílio. Estudo sobre óbitos de mulheres por agressões no Brasil destacou que ocorreram por dia, em média, 13,5 vezes, no período de 2001 a 2011, e que o perfil de grande parte era consistente com situações de violência doméstica e familiar contra a mulher21.

As lesões não fatais correspondem ao efeito mais direto da violência por parceiro íntimo, que adicionalmente está relacionada a diversas consequências deletérias para a saúde da mulher. Estima-se que entre as mulheres que experimentam algum tipo de violência por parceiro íntimo, 42% tiveram lesões22, apontando para o importante fardo que isso representa para a saúde pública. A Organização Mundial da Saúde reforça a necessidade de melhorar a capacidade dos serviços de saúde em identificar vítimas de violência doméstica e, assim, tentar prevenir risco de morte por essa causa22.

Chama a atenção o fato de que aproximadamente um quarto dos jovens vítimas de violência havia procurado atendimento em outro serviço, pela mesma ocorrência, antes do atendimento no local da entrevista. Este achado indica a necessidade dos serviços de saúde estarem atentos e preparados para acolher e prestar a assistência adequada às vítimas.

A maior proporção de lesões mais graves entre os homens, corrobora com achado de edições anteriores do VIVA Inquérito. Em 2009, a pesquisa evidenciou que adolescentes de 15 a 19 anos de idade estão mais sujeitos a lesões mais graves com necessidade de internação nas primeiras 24 horas após o atendimento (18,3%) do que indivíduos com menor idade (5,6%)23.

No presente estudo, foi evidenciada elevada frequência de consumo de bebida alcoólica entre jovens vítimas de agressões. O uso do álcool aumenta o risco de envolvimento em episódios de acidentes e violência24,25. Dados da Pesquisa Nacional de Saúde, realizada no ano de 2013, revelaram que a prevalência do consumo abusivo de álcool na população brasileira foi 3,3 vezes maior entre homens do que entre as mulheres, e que as maiores foram observadas na população adulta jovem, de 18 a 29 anos de idade (18,8%)26.

Estudo conduzido com estudantes do 9º ano do ensino fundamental de escolas públicas e privadas do Brasil evidenciou uma iniciação precoce à bebida alcoólica em metade dos adolescentes (50,3%), ainda mais frequentemente entre 12 a 13 anos de idade27. É evidenciada a necessidade de medidas legislativas protetoras, bem como de maior rigor na fiscalização das vendas de bebidas para jovens, principalmente em ambientes como bares e similares que aparecem, neste estudo, como locais importantes de ocorrência de agressões.

Os achados deste estudo devem ser considerados à luz de algumas limitações. Com respeito à validade externa, é importante destacar que a população de estudo se refere a indivíduos atendidos em serviços públicos de urgência e emergência de 24 capitais e do Distrito Federal. Dessa forma, os resultados referem-se a essa população fonte. Não se dispõe de dados precisos para estimar o percentual de cobertura das unidades públicas de urgência e emergência do país, no entanto, mais da metade dos brasileiros que procuraram serviços de saúde nas duas semanas que antecederam a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2008 relataram ter recebido atendimento na rede pública de saúde28. Com respeito a erros de mensuração, o desfecho foi construído a partir de informações referidas pelas vítimas ou acompanhantes. Esse fato pode ter resultado em desconsideração de alguns casos de agressões, incorretamente classificadas como casos acidentais, bem como de erros na classificação dos autores da agressão, tendo em vista que vítimas de violência doméstica, por exemplo, podem dissimular as informações.

Em conclusão, as características das agressões entre jovens vítimas atendidas em serviços de urgência revelaram-se substancialmente diferentes segundo o sexo. O Sistema Viva detém imenso potencial para a geração de evidências e subsídios para políticas públicas voltadas ao enfrentamento da violência envolvendo jovens no Brasil. É evidenciada a necessidade da implementação de políticas públicas intersetoriais voltadas para a prevenção da violência nesta população específica, conforme previsto no Estatuto da Juventude. Para os jovens do sexo masculino, sugere-se o direcionamento das ações principalmente à prevenção da violência urbana e fatores associados como consumo de álcool e porte de armas de fogo, enquanto para as jovens, as ações devem incluir também a prevenção da violência doméstica e familiar.

REFERÊNCIAS

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