versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.40 no.1 São Paulo jan./mar. 2018 Epub 07-Maio-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-3807
A esclerose sistêmica (ES), ou esclerodermia, é uma doença heterogênea autoimune envolvendo múltiplos sistemas e classicamente dividida nas formas Limitada, Difusa e sobrepostas.1 Três distintos mecanismos fisiopatológicos continuam a dominar o processo da doença. Estes incluem: 1) lesão vascular levando à liberação de mediadores vasoconstritores e hipóxia tecidual, 2) imunogenicidade culminando na produção de anticorpos e 3) disfunção de fibroblastos, resultando em deposição aumentada de matriz extracelular.2-16 Algumas características e manifestações da ES são espessamento da pele, fenômeno de Raynaud, úlceras digitais, hipertensão arterial pulmonar (HAP), doença pulmonar intersticial (DPI) e doença renal. Enquanto HAP e DPI são causas importantes de morte em pacientes com ES, relatos recentes enfatizam o desenvolvimento de microangiopatia trombótica (MAT) com a mortalidade resultante da mesma (Tabela 1).4,11
Tabela 1 Pacientes em crise renal por esclerodermia com microangiopatia trombótica
Referência nº | Idade/gênero | Plasmaterapia | Eculizumab | DRT | Óbito | Diagnóstico |
---|---|---|---|---|---|---|
49 | 48 F | Sim | Não | Sim | Não | SHU/PTT |
58 | 35 F | Sim | Não | Não | Não | PTT |
52 | 73 M | Não | Não | Sim | Não | SHU |
53 | 48 F | Não | Não | Sim | Sim | SHU |
59 | 31 F | Sim | Não | Sim | Sim | PTT |
47 | 61 F | Não | Não | Sim | Não | SHU |
61 | 32 F | Sim | Não | Sim | Sim | PTT |
55 | 58 M | Sim | Não | Sim | Sim | SHU |
41 | 46 F | Sim | Sim | Não | Não | SHUa |
40 | 28 F | Não | Sim | Sim | Sim | SHUa |
As MAT representam um grupo de distúrbios caracterizados por trombose microvascular generalizada, trombocitopenia e anemia hemolítica microangiopática (AHM).17 As MAT são tradicionalmente classificadas em púrpura trombocitopênica trombótica (PTT), síndrome hemolítico-urêmica atípica (SHUa) e SHU associada à toxina de Shiga.
Em geral, a SHU associada à toxina de Shiga ocorre secundário à infecção com sorotipos de Escherichia coli 0157: H7, 0111: H8, 0103: H2, 0123, 026 ou outros que produzem toxina do tipo Shiga. Esta forma de MAT não está associada à ES e está além do escopo deste artigo. No entanto, tanto a SHUa como a TTP foram relatadas com ES.4,11,18-21 A TTP é causada pela deficiência de ADAMTS13 enquanto o SHUa resulta de uma ativação descontrolada da via alternativa do sistema do complemento.22,23 Histologicamente, na biópsia renal, a SHUa é indistinguível da SHU causada por bactérias produtoras de toxinas ou PTT. Em casos agudos, os trombos são identificados dentro dos capilares glomerulares, arteríolas e artérias, e são acompanhados de inchaço ou desnudamento das células endoteliais. Ao longo do tempo, há espessamento de paredes capilares glomerulares (duplo contorno), afrouxamento da arquitetura mesangial (mesangiólise) causada pelo acúmulo de fibrina e fibrinogênio de proteínas plasmáticas e pelo surgimento do padrão de lesão membranoproliferativa.24
A desregulação da via alternativa do sistema do complemento, que leva à sua ativação descontrolada, resulta em SHUa.22-27 O sistema do complemento é uma das primeiras defesas do sistema imunológico a ser mobilizado contra um patógeno. As proteínas do complemento são produzidas no fígado e estão presentes no sangue, linfa e fluidos extracelulares. As três vias do sistema do complemento (clássico, lecitina e alternativa) produzem complexos de protease denominados convertases C3 e C5 que se clivam C3 e C5, respectivamente, levando ao complexo ataque de membrana.23 A hidrólise de C3 no plasma inicia a via alternativa, levando à deposição de C3b em praticamente todas as superfícies expostas ao plasma.23 A ativação do complemento é controlada por vários reguladores de membrana e de fase fluida.28 Os fatores B, D e C3 participam da geração da C3 convertase da via alternativa (C3bBb), que é estabilizada pelo fator P (properdina). A clivagem da C3 por convertase C3 e subsequente clivagem de C5 pela C5 convertase resulta na formação de C5a e C5b. O último participa na montagem do complexo de ataque de membrana (MAC; C5b-9, terminal solúvel do complexo do complemento (TSCC). O MAC medeia a ativação, lesão ou lise das células-alvo de forma dose-dependente. A via alternativa do sistema do complemento é constitutivamente ativa e sua atividade é mantida sob controle por vários reguladores do complemento, solúveis e ligados à membrana.24 As proteínas comuns e solúveis reguladoras do complemento incluem fator I, fator H e proteína de ligação C4.22-24 Da mesma forma, os reguladores do complemento também existem na superfície das células, e incluem a proteína do cofator de membrana (PCM), o fator de aceleração da decomposição (FAD) e o regulador do complemento 1 (RC1) etc.24 Mutações nestas proteínas reguladoras levam a uma ativação descontrolada do sistema do complemento, causando lesão endotelial e resultando em SHUa. De fato, as anormalidades genéticas nas proteínas do sistema do complemento foram documentadas tanto nas formas familiares e esporádicas da SHUa.25 Mutações múltiplas em fatores que regulam a via alternativa do complemento são encontradas em 40-60% dos pacientes com SHUa.26,27
Em termos simples, são necessários três elementos para se ter um alto índice de suspeita de SHUa. Estes incluem: trombocitopenia, anemia hemolítica microangiopática e lesão de órgão alvo.22 A trombocitopenia com contagem de plaquetas < 150,000/µL ou uma redução de 25% a partir do valor basal, hemoglobina abaixo de 10 g/dL, hemólise intravascular com LDH elevado e redução da haptoglobina e esquistócitos no esfregaço periférico, todos ajudam no diagnóstico. O nível de complemento C3 pode ser reduzido com concentrações normais de C4, bem como complexo C5a e C5b-9 elevados.24 Estudos recentes demonstraram que os níveis de depósitos complexos C5b-9 ligados à membrana em células endoteliais microvasculares humanas estão aumentados em pacientes com SHUa e podem ser utilizados como marcador para a ativação de processos biológicos.29,30 No entanto, esses achados não são nem sensíveis nem específicos para o diagnóstico, e têm valor prognóstico limitado, com níveis reduzidos de C3 encontrados apenas em 30-50% dos pacientes com determinadas mutações no complemento.25 O dano ao órgão final (rim, cérebro, coração, trato gastrointestinal) também aumenta a probabilidade do diagnóstico. Finalmente, a ADAMTS13 ajuda a excluir o diagnóstico de PTT. Embora importante, no momento, o teste genético para estabelecer o diagnóstico de SHUa não é obrigatório, já que apenas 50 a 60% das mutações genéticas são atualmente conhecidas.25-27
Poderia o sistema do complemento estar envolvido na patogênese do ES? As proteínas do complemento têm sido estudadas em relação à ES há mais de 30 anos.31-37 Estudos apontaram a ativação da via clássica do sistema do complemento em pacientes com ES difusa.31-34 Estudos recentes demonstraram hipocomplementemia em pacientes com o tipo sobreposto da ES.35-37 Um estudo genético de pacientes com ARN + polimerase III (ARA +) que desenvolveram crise renal de esclerodermia (CRE) mostrou uma forte associação com o sistema do complemento.15 Batal et al. demonstrou claramente os depósitos de C4d (um produto clássico de degradação da via do complemento) em pacientes com CRE, especialmente naqueles com piores resultados (morte ou necessidade de diálise ou transplante).38 Muito recentemente, um estudo sueco demonstrou que os pacientes com CRE apresentaram níveis mais baixos de C3, secundário do fator B para a sobreativação da via alternativa.39 No entanto, os níveis séricos de CCTs foram menores em indivíduos com CRE.39 Este é um achado confundente, pois se esperaria encontrar níveis aumentados durante os estágios iniciais da fase aguda da crise renal. Um dos motivos para a discrepância pode ser o momento real e o estágio da fase aguda em relação ao tempo da coleta da amostra. Além disso, os pesquisadores não mediram a quantidade de deposição de MAC na superfície das células. Uma possível explicação para baixo CCTs também pode ser sua remoção rápida da circulação e deposição imediata a nível tecidual. No entanto, um relato de caso de um paciente com CRE demonstrou um nível sérico elevado de CCTs (juntamente com níveis diminuídos de C3 e C4).40 Este paciente foi tratado com eculizumab, atingindo remissão hematológica. Infelizmente, o paciente morreu 8 semanas depois, devido a uma nova insuficiência cardíaca.40 Outro paciente com síndrome de esclerodermia de sobreposição (positivo para anticorpos PM-Scl) apresentou insuficiência renal aguda, trombocitopenia e anemia hemolítica microangiopática.41 Ela foi inicialmente tratada com plasmaferese, com um diagnóstico presumido de PTT. Por causa de uma completa falta de melhora, foi considerado o diagnóstico de SHUa. A plasmaferese foi interrompida e a paciente foi tratada com eculizumab com resolução completa da trombocitopenia e anemia hemolítica microangiopática, e recuperação significativa da função renal.41
Vale a pena explorar a indução de trombose/microtrombose envolvendo células endoteliais, moléculas de adesão, bem como a protrombinase. C5a é um potente gatilho de inflamação, responsável pela expressão do fator tecidual (FT) em células endoteliais, monócitos e neutrófilos. O FT, por sua vez, permite a formação do complexo de protrombinase. A ativação adicional do fator de coagulação II (protrombina) gera pequena quantidade de trombina (IIa). A trombina induz a ativação, adesão e agregação de plaquetas. As plaquetas estão envolvidas na ativação do complemento ao cortar C3 em seus componentes (C3a e C3Bb). O bloqueio da clivagem de C5 em C5a e C5b pelo eculizumab impede a formação do MAC e interrompe o circuito de amplificação.42
As células endoteliais parecem ser a plataforma comum tanto para a SHUa como para a esclerodermia. Essas células são continuamente expostas às ações de produtos biologicamente ativos do sistema do complemento.43 Se é a ativação descontrolada da via alternativa (devido a mutações das proteínas reguladoras) ou a ativação da via clássica (devido a auto-anticorpos na esclerodermia), a geração do complexo terminal C5b-C9 depositado em células endoteliais participa diretamente da ativação da célula endotelial microvascular 1 humana (HMEC-1) através do aumento da expressão da molécula solúvel de adesão de células vasculares 1 (sVCAM-1) e do fator tecidual (TF).22-24,31-34,40,41 A lesão de HMEC-1 é demonstrada pela liberação de trombomodulina das células danificadas.44 Além disso, induz a secreção de multímeros do fator de von Willebrand e estimula a protrombinase. A ativação direta das plaquetas também é desencadeada pela retração celular e matriz protrombótica subjacente exposta, resultando em microtrombose.45 Esses processos patológicos levam a lesão de órgão alvo (Tabela 1).46-62
As abundantes semelhanças na apresentação, bem como o curso clínico da crise renal da esclerodermia e a SHUa levantam uma necessidade de saber se existe uma patogênese comum. As vias do complemento parecem ser o link unificador. A ativação e lesão do endotélio devido à estimulação persistente pelo sistema do complemento cria um laço patológico responsável pela microangiopatia trombótica e injúria do órgão alvo. Vários relatórios mostraram que o eculizumab foi eficaz no bloqueio de CCTs em pacientes com crise renal por esclerodermia que apresentaram sintomas parecidos com a SHUa. Estudos futuros envolvendo pacientes com SHUa são necessários para elucidar a patogênese da esclerodermia com microangiopatia trombótica.