versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.38 no.4 São Paulo out./dez. 2016
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20160069
A nefropatia por IgA (NIgA) é uma doença renal primária, ou parte da síndrome de Purpura de Henoch-Schoenlein, ou secundária a uma série de condições extrarrenais, por exemplo doenças hepáticas e gastrointestinais. Foi reconhecida pela primeira vez em 1968, quando Berger e Hinglais relataram associação de hematúria, proteinúria e infecções do trato respiratório superior.1 As amostras de biópsia renal de pacientes afetados apresentaram alterações variáveis à microscopia óptica, além da glomerulonefrite proliferativa e exsudativa.
Contudo, os achados de microscopia com imunofluorescência foram consistentes: depósitos intensos de IgA mesangial, com depósitos menos intensos de IgG e C3. Tais observações são aparentemente coincidentes com os relatos anteriores de Volhard e Fahr, em 1914, e de Bates, Jennings e Earle, em 1957, que descreveram uma glomerulonefrite aguda focal, coincidente com condições infecciosas, mas raramente seguida de síndrome nefrítica evidente.2
Hoje, a NIgA é considerada a doença glomerular mais comum no mundo.2-4 A sua progressão lenta, mas inexorável, faz com que 30 a 40% dos pacientes progridam para doença renal em fase terminal (DRT) em 20-30 anos. Assim, em conjunto com a nefropatia diabética, a NIgA surge como um importante problema de saúde na Nefrologia.5 Entretanto, em contraste à nefropatia diabética, a NIgA tende a afetar indivíduos mais jovens, que ficam, assim, sobrecarregados por uma doença crônica progressiva ao longo de suas vidas.6 Nessa revisão pretendemos destacar as principais e mais recentes características referentes à patogênese e patologia da NIgA.
O diagnóstico de NIgA depende amplamente das políticas de triagem e da indicação de biópsia.3,4,7 No Brasil, uma série de 9.617 biópsias renais obtidas em todo o país revelou que a NIgA representa 9,6% de todas e 20,1% das doenças glomerulares primárias.8 Sua apresentação clínica é variável: proteinúria - geralmente não nefrótica - associada a hematúria macroscópica ou microscópica e hipertensão.3
Nos EUA, 50% dos pacientes com NIgA com mais de 30 anos de idade têm doença renal crônica nos estágios 3 ao estágio 5 quando do diagnóstico. Nas coortes norte-americanas e europeias, a razão entre homens e mulheres nos indivíduos afetados é de 2: 1, com picos de incidência na segunda e terceira décadas de vida.3,4 Uma série recente com 600 casos brasileiros de NIgA mostrou um discreto predomínio masculino (1,24:1), com uma média de 33 anos de idade no momento do diagnóstico. A hematúria foi a principal característica de apresentação (72% dos pacientes), seguida de proteinúria (57% dos pacientes), que foi nefrótica em 28% dos pacientes.9
A NIgA é hoje considerada uma doença de progressão lenta, com ocorrência familiar e esporádica. Ela pode ser herdada em um padrão autossômico dominante, com penetração reduzida. A análise do Exoma detectou até agora vários genes candidatos envolvidos na patogênese da NIgA, que estão implicados em: a) processamento de antígeno, produção de citocinas e apresentação de antígeno pelo complexo de maior compatibilidade de classe I (MHC-I); B) imunidade da mucosa; C) regulação alternativa da via do complemento. Os loci aparentemente envolvidos nestas vias são 6q22-q23, 3p24-p23, 2q36, 4q26-q31 e 17q12-q22.5
A IgA humana é produzida principalmente em membranas mucosas; uma pequena fração pode ser encontrada na circulação. IgA polimérica e monomérica humanas existes como IgA1 e IgA2. Os polímeros de IgA são compostos por subunidades agregadas por uma cadeia J. O transporte transepitelial de IgA para a superfície luminal é feito pelo receptor polimérico de imunoglobulina (pIgR), que exibe afinidade para com a cadeia J. Após secreção luminal, parte do pIgR fica retido dentro da molécula de IgA polimérica - o chamado componente secretor.
A cadeia J é, portanto, essencial para o transporte transepitelial de IgA; Assim, todas as IgAs produzidas nas membranas mucosas são poliméricas.10 São conhecidos cinco receptores de IgA nos seres humanos: CFR (receptor de fração constante); ASGR (receptor de asialoglicoproteína); pIgR, receptor de transferrina e receptor Fc a/µ. Apenas os dois últimos foram encontrados no tecido renal, exclusivamente em células mesangiais.11
A IgA1 apresenta características moleculares peculiares que a diferenciam de IgA2, IgM e IgG. Um local de ligação com dois a seis O-glicanos está localizado na região hinge, que fica entre a primeira e a segunda regiões do domínio constante da cadeia pesada de IgA1. A síntese do O-glicano tem os seguintes passos: 1- adição de N-acetilgalactosamina a resíduos de serina ou treonina; 2- ligação de uma molécula de galactose à conformação β1,3; 3- ligação do ácido siálico à galactose ou N-acetilgalactosamina - um passo que impede alterações conformacionais adicionais.10,11
A NIgA é o produto de um processo multihit. O defeito primordial reside na produção de moléculas de IgA1 aberrantes, que são deficientes em galactose nos resíduos de O-glicano da região hinge (Gd-IgA1). A Gd-IgA1 têm assim os seus resíduos expostos na região hinge N-acetilgalactosamina. Um passo adicional necessário na patogênese da NIgA é a produção de anticorpos - IgA ou IgG - contra resíduos de açúcar deficientes em galactose em Gd-IgA1.
Este passo é assistido por receptores tipo toll (TLRs), que estão envolvidos na resposta à exposição a componentes da parede bacteriana e do envelope viral, e na ativação policlonal de linfócitos B e produção de imunoglobulinas, independentemente da ativação prévia de linfócitos T.10,11 A formação de complexos imunes IgG-Gd-IgA1 é facilitada por pela maior afinidade da Gd-IgA1 por IgG. A ligação de Gd-IgA1 a anticorpos anti-glicanos não é susceptível à ligação a receptores de asialoglicoproteína em hepatócitos, o que facilita a sua fuga do metabolismo hepático e sua persistência na circulação.
Além disso, quanto mais sialilada a molécula IgA1, mais negativamente carregada ela está, e maior sua afinidade para com as células mesangiais e sua resistência à remoção hepática.3,4,11 Em suma, os eventos determinantes na patogênese da NIgA são: a geração de imunocomplexos Gd-IgA1; sua afinidade com mesângios e a depuração deficiente da circulação e dos mesângios, e as respostas de tecido renal.
Nos mesângios, os complexos imunes de Gd-IgA1 podem ligar-se a fibronectina, colágeno tipo IV, CD71 ou a integrinas das células mesangiais.
As células mesangiais ativadas secretam componentes da matriz extracelular; têm a via de transdução de sinal de NF-kB ativada e a expressão de óxido nítrico sintase aumentada; secretam mediadores de lesão renal como a angiotensina II (AT-II), citocinas (interleucina-6 [IL-6], fator de crescimento transformante-β [TGF-β], proteína quimiotáctica macrofágica-1 [MCP-1], TNF-α e fatores pró-fibróticos.
A TNF-α desencadeia um estado pro-apoptótico no epitélio visceral, uma vez que os receptores podocíticos TNF-α 1 e 2 (TFR1 e TNFR2) estão aumentados na N IgA.5,11 O estímulo inflamatório sustentado causa hipercelularidade mesangial, apoptose, estresse oxidativo e expansão da matriz mesangial.4
Do ponto de vista do patologista, o diagnóstico da NIgA é relativamente simples: é definido pela identificação por microscopia por imunofluorescência (IF) ou por imunoperoxidase (IP) de depósitos granulares a globulares de IgA co-dominantes em áreas mesangiais e, menos frequentemente (24-54% dos casos), nas alças capilares glomerulares.2 Vale ressaltar que 3-16% dos indivíduos saudáveis apresentam depósitos de IgA glomerulares de significância indeterminada.3
A microscopia eletrônica (ME) não é obrigatória para o diagnóstico de NIgA. Não obstante, é utilizada para confirmar a presença de depósitos mesangiais eletrondensos. Depósitos subendoteliais podem estar presentes, respectivamente, em 50% e 55% dos casos.12,13 Os depósitos subendoteliais podem estar associados à interposição mesangial e à duplicação da membrana basal.12,13 Os depósitos subepiteliais são altamente atípicos e devem ser interpretados como uma doença mediada por imunocomplexos superpostos, não relacionada à NIgA.14
No entanto, a nível microscópico, a NIgA é tão variável quanto sua apresentação clínica e seu prognóstico.15 O trabalho seminal de Berger descreveu glomerulonefrite focal na maioria das biópsias; 10% dos casos não apresentaram alterações à microscopia óptica. As observações subsequentes levaram à demonstração de uma gama mais ampla de aspectos histopatológicos, que incluíram lesões esclerosantes segmentares e lesões proliferativas endocapilares e extracapilares (Figura 1).16,17
Os esquemas de classificação de um único grau foram propostos por Lee e Haas.2 Os esquemas de classificação de Lee e Hass envolvem cinco classes, às quais se referem os achados histopatológicos dos compartimentos glomerular e tubulointersticial, com ênfase nesses primeiros (Tabela 1).
Subclasses de Haas | Graus de Lee | |
---|---|---|
Hipercelularidade ausente a mínima. | Hipercelularidade ausente a mínima. Ausência de atrofia ou inflamação túbulo-intersticial. | |
II | Padrão semelhante a glomérulo-esclerose segmentar focal. | Hipercelularidade mesangial focal e segmentar. Crescênticas esparsos. Ausência de inflamação ou atrofia túbulo-intersticial. |
III | Glomerulonefrite proliferativa focal (< 50%) com ou sem crescênticos. | Hipercelularidade mesangial difusa. Crescênticas e sinéquias ocasionais. Inflamação e edema túbulo-intersticial focal. |
IV | Glomerulonefrite proliferativa difusa (> 50%) com ou sem crescênticos. | Hipercelularidade mesangial difusa e expansão da matriz. Esclerose segmentar frequente. Crescênticas em até 45% dos glomérulos. Inflamação túbulo-intersticial. |
V | ≥ 40% de glomérulos escleróticos globais ou fibrose intersticial/atrofia tubular, com ou sem lesões glomerulares ativas. | Semelhante ao IV; > 45% dos glomérulos com crescênticas. Atrofia tubular grave e fibrose intersticial. |
Para esses esquemas, Alamartine adicionou, em 1990, um esquema de classificação semi-quantitativa, que produziu um escore óptico global.18 Enquanto este sistema tenha conseguido relativa e razoável correlação clínico-patológica, os sistemas de pontuação semi-quantitativos são bastante exigentes e têm reprodutibilidade limitada. A simplicidade e semelhança com a classificação da OMS de nefrite lúpica tornaram os esquemas de grau único generalizados e aceitos entre os patologistas.
Na tentativa de prever o curso clínico, orientar a seleção do tratamento, estratificar os pacientes para os ensaios clínicos e prever o desfecho, os membros da Sociedade de Patologia Renal (RPS) e da Rede Internacional de Nefropatia IgA (IIGANN) se reuniram para propor uma base histopatológica consensual e baseada em evidências para a classificação da NIgA.
Os esforços foram concentrados em: 1- identificar e definir quais lesões são características de NIgA; 2- determinar quais foram as lesões menos propensas às limitações de amostragem e reprodutibilidade; 3- fazer correlação de lesões e desfecho clínico. Após a análise de 265 amostras de biópsia renal de pacientes com NIgA seguidos por 5 anos, a hipercelularidade mesangial (M), esclerose segmentar/aderências/sinéquias (S), hipercelularidade endocapilar (E) e atrofia tubular/fibrose intersticial (T) emergiram como os parâmetros mais reprodutíveis, com correlação forte e independente para com o desfecho clínico.19,20
De acordo com a Classificação de Oxford de NIgA, M, E e S são variáveis binárias (0 - ausente, 1 - presente). A atrofia tubular e a fibrose intersticial são classificadas como T0, T1 e T2 (respectivamente, 0-25%, 26-50% ou > 50% do tecido cortical afetado). Idealmente, o relatório anatomopatológico de uma biópsia de NIgA deve incluir uma descrição microscópica detalhada, incluindo alterações quantitativas inflamatórias e cicatriciais: número total de glomérulos e número de glomérulos afetados por necrose, proliferação endocapilar, crescênticas celulares e/ou fibrosas, esclerose segmentar e/ou disseminada e extensão da atrofia tubular e fibrose intersticial (Tabela 2). A linha de diagnóstico do laudo deve mencionar os escores M, E, S e T.19,20
Parâmetro Histológico | Escore | |
---|---|---|
M | Proliferação mesangial | M0 (ausente)/M1 (presente em > 50% dos glomérulos) |
E | Hipercelularidade endocapilar | E0 (ausente)/E1 (presente) |
S | Sinéquia/Esclerose segmentar | S0 (ausente)/S1 (presente) |
T | Fibrose intersticial/ atrofia tubular | T0 (0-25%*)/T1 (26-50%*)/T2 (> 50%*) |
*Em relação à extensão cortical. O laudo anátomo-patológico deverá, idealmente, incluir: % de glomérulos escleróticos globais, % de crescênticas, % de glomérulos com necrose, % de glomérulos com hipercelularidade endocapilar.
Embora as crescênticas tenham sido uma variável altamente reprodutível, não foram originalmente incluídas na classificação original. Apesar de 45% dos casos da série original apresentarem crescênticas, a porcentagem média de glomérulos com proliferação extracapilar nos casos afetados foi de 9%; Em nenhum dos casos esta percentagem foi superior a 55%.
Na coorte da Classificação de Oxford, a presença de crescêntica não foi associada independentemente à progressão para DRT ou a um declínio da taxa de filtração glomerular estimada superior a 50% durante o seguimento (evento combinado).19 Estudos posteriores sobre a NIgA crescêntica indicam que a creatinina sérica representa um forte preditor independente de risco para DRT: um valor de 6,8 mg/dL é considerado o limite superior para indicação de imunossupressão.21,22
No entanto observações mais recentes em coortes maiores enfatizam o papel das crescênticas como preditores de um maior risco de um evento combinado. A presença de crescênticas em > 25% dos glomérulos parece estar associada independentemente a um evento combinado, na presença ou ausência de tratamento imunossupressivo. Estes dados recentes corroboram a incorporação de um escore de NIgA crescêntica à classificação original (Haas et al., Comunicação pessoal).
Apesar de suas deficiências, a classificação de Oxford de NIgA foi validada por diversos estudos pertencentes a diversos grupos étnicos, sendo o mais extenso o estudo VALIGA.15,23-28 Esse estudo destacou a importância das lesões túbulo-intersticiais crônicas, esclerose segmentar e hipercelularidade mesangial como preditores da taxa de perda da função renal.28
Tanto o estudo VALIGA quanto a Classificação Original de Oxford não conseguiram demonstrar que a proliferação endocapilar seria um preditor independente da taxa de deterioração da função renal.4,9 A proliferação endocapilar - estreitamento e oclusão do anel capilar por inchaço das células endoteliais, infiltração de macrófagos e neutrófilos e proliferação mesangial - foi observada em aproximadamente um terço dos casos de NIgA e tem, principalmente, distribuição focal.15
Evidências mais recentes apontam que os únicos preditores de tempo para a DRT são a estimativa basal da depuração da creatinina, a proteinúria basal, a hipercelularidade endocapilar (odds ratio = 3,41 para E1 em relação à E0) e a atrofia tubular/fibrose intersticial.29
O baixo valor preditivo de E1 em estudos anteriores pode resultar da interação entre as lesões e a terapia imunossupressora: no estudo VALIGA, 39% dos pacientes receberam bloqueadores dos receptores de angiotensina e 10% receberam esteroides antes da biópsia.27,29 Estes dados sugerem que pacientes com hipercelularidade endocapilar com NIgA podem se beneficiar da imunossupressão.
Na primeira conferência de Oxford sobre a nefropatia por IgA, em junho de 2014, um exame minucioso dos dados do estudo VALIGA revelou baixa reprodutibilidade interobservador para as variáveis M e E (coeficiente de correlação interobservador [ICC] = 0,49 e 0,34, Roberts, comunicação pessoal). Dada a baixa reprodutibilidade das lesões prognosticamente valiosas, estudos de rotulagem celular já estão em andamento e espera-se que proporcionem uma medida menos subjetiva da hipercelularidade endocapilar.
Além disso, o desenvolvimento de ferramentas de e-learning para treinamento contínuo e avaliação regular de patologistas envolvidos no diagnóstico de NIgA foi proposto em 2014 e deverá ser lançado em 2016 (Soares et al., Comunicação pessoal).
A NIgA emerge como um importante problema de saúde em todo o mundo. Do ponto de vista patogenético, ela compartilha semelhanças com transtornos alérgicos e autoimunes. A falta de modelos animais confiáveis dificulta estudos experimentais sobre a doença.
No entanto, uma compreensão mais profunda das interações no eixo mucosa-rim, do papel do complemento e dos fatores de crescimento pode pavimentar o caminho para se compreender quais mecanismos são responsáveis pelas suas características clínicas e patológicas.
O desenvolvimento da Classificação de Oxford para NIgA e seus constantes esforços de melhoria devem aprimorar a comunicação de achados relevantes entre patologistas e clínicos, e fortalecer as correlações clínico-patológicas.