versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.113 no.2 São Paulo ago. 2019 Epub 29-Jul-2019
https://doi.org/10.5935/abc.20190140
Desde os estágios iniciais da intervenção coronária percutânea (ICP), Andreas Grüentzig havia defendido que a medida direta do gradiente de pressão trans-estenótica após ICP com balão deveria ser usada como um marcador de ICP bem-sucedida.1 Desde a época de Grüentzig, a avaliação fisiológica da doença arterial coronariana (DAC) foi testada e validada.2 Atualmente, a reserva de fluxo fracionado (FFR - do inglês, fractional flow reserve) é o padrão ouro para a avaliação online da fisiologia da DAC, identificando lesões hemodinamicamente significativas em pacientes com angina estável.3,4
Embora a FFR seja um procedimento relativamente simples, com baixa taxa de complicações, ela apresenta custo e riscos intrínsecos ao procedimento. Recentemente, as modalidades de fisiologia não hiperêmicas, baseadas no índice de repouso, tornaram-se uma alternativa a FFR, mas ainda requerem avaliação invasiva. A tecnologia da fisiologia baseada na angiografia coronária foi desenvolvida para superar a necessidade da passagem de fio invasivo intracoronariano e a administração adicional de medicamentos, que eram necessários com a fisiologia invasiva.5
Com base no princípio da FFR, a tecnologia da fisiologia baseada na angiografia coronária incorpora o poder computacional combinando a reconstrução virtual (ou seja, meshing) tridimensional (3D) da artéria coronária e o uso da dinâmica de fluidos computacional (DFC) como um marcador substituto do fluxo sanguíneo anterógrado da artéria coronária.6
A base para a DFC é derivada das equações de Navier-Stokes, uma generalização matemática do fluxo de Euler da equação de fluidos incompressíveis e sem atrito.6 Em seu estado atual, a DFC agora pode compensar para a tridimensionalidade e as interações na forma cilíndrica não perfeita das artérias coronárias.6 Entretanto, devido às particularidades intrínsecas da fisiologia cardiovascular, a DFC não pode compensar o efeito pulsátil do fluxo sanguíneo; diferenças fisiológicas da velocidade do fluxo sanguíneo coronariano nos segmentos proximal vs. distal do vaso; e a perda previsível de energia sobre um vaso doente.6-10 Além disso, a DFC ainda não consegue abordar as interações de alta complexidade na geometria do vaso, que podem levar a uma formação de vórtex ou de turbulência caótica e, mais importante, a queda de pressão translesional.6,10
Existem diferenças significativas nas propriedades reológicas complexas do sangue e do fluxo sanguíneo normal ao longo dos ramos da artéria coronária que por si só, não são levadas em consideração nesses modelos. Isso inclui as propriedades Newtonianas versus Não-Newtonianas fluidas do sangue, que dependem do diâmetro do vaso, a presença de uma bifurcação e efeitos de tensão de cisalhamento do fluxo sanguíneo lento (por exemplo, a propriedade não-Newtoniana do fluido nesse contexto).6
A simulação da DFC generaliza as diferenças das propriedades Newtonianas e não-Newtonianas dos fluidos, presumindo que grandes vasos podem ser aproximados a uma propriedade Newtoniana de fluido com viscosidade constante.11,12 Portanto, esses dados fornecem uma explicação consistente de por que esses métodos não foram padronizados para avaliar estenose grave ou fluxo sanguíneo anterógrado em pequenos vasos.11
Uma das principais limitações para a adoção clínica da DFC no software online é o tempo computacional. O tempo computacional necessário para estimar o fluxo sanguíneo anterógrado no modelo em 3D utilizando DFC prolonga consideravelmente a duração do procedimento.11 Para reduzir o tempo computacional e fornecer uma avaliação online do vaso, a maioria dos desenvolvedores de software substituiu a DFC por coeficientes matemáticos.11,12 O impacto dessa substituição foi estudado por Collet et al.,13 e não demonstrou diferença significativa entre os resultados obtidos independentemente do método adotado para estimar o fluxo sanguíneo dos vasos.13
O desenvolvimento de soluções de software de fisiologia online baseado em angiografia coronária ocorreu em paralelo com diferentes iniciativas. Mais comumente, as soluções de software foram testadas e validadas contra a FFR invasiva, “incluindo a Razão de Fluxo Quantitativo (QFR, do inglês Quantitative Flow Ratio), Sistemas de Análise Angiográfica Cardiovascular - Reserva de Fluxo Fracionado de Vasos (CAAS-vFFR, do inglês Cardiovascular Angiographic Analysis Systems-Vessel Fractional Flow Reserve) e Reserva de Fluxo Fracionado Derivado de Angiografia Coronária (FFRangio, do inglês Fractional Flow Reserve Derived From Coronary Angiography).11,12,14 Cada solução de software, no entanto, utilizou métricas diferentes [por exemplo, pressão versus contagem de quadros (TIMI frame count)] e considerações anatômicas (ou seja, uni vs. multiarterial) para a reconstrução virtual do vaso em 3D e resolver os desafios da DFC de prever não-invasivamente as medidas invasivas da FFR, tornando improvável uma comparação justa entre elas.11,12,14
Em seu estado atual, o desempenho geral da fisiologia baseada na angiografia coronariana online foi avaliado em uma meta-análise Bayesiana, mostrando uma sensibilidade combinada de 0,89, especificidade de 0,90, razão de verossimilhança positiva de 9,3, razão de verossimilhança negativa de 0,13 e área sob a curva de 0,84 em comparação com a FFR invasiva.13 As características individuais das soluções de software de fisiologia baseado em angiografia coronária online serão descritas abaixo.
A QFR (QAngioXA-3D prototype, Medis Medical Imaging System, Leiden, Países Baixos) é um software de fisiologia baseado em angiografia que usa a contagem de quadros TIMI de um único vaso em duas projeções ortogonais como o marcador substituto do fluxo sanguíneo para calcular a razão do gradiente translesional (Figura 1 A a D). Em relatos recentes, o estudo Favor II China, de Xu B et al.,11 mostrou uma correlação linear (r) entre a FFR invasiva e a QFR (avaliação online) de 0,86 (p < 0,001) com uma diferença de concordância média de -0,01 ± 0,06 (p = 0,006).11 Spitaleri et al.,15 relataram que a ausência de revascularização de lesões não-culpadas em pacientes com infarto agudo do miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST (IAMCSST) com QFR ≤ 0,80 aumentou o risco de eventos clínicos nessa população (HR 2,3; IC95%, 1,2-4,5; p = 0,01).15 Mejía-Rentería et al.,16 destacaram que a disfunção microvascular coronária (DMC) afeta o desempenho diagnóstico geral da QFR.16 O sistema QFR possui certificação CE e registro da ANVISA para uso clínico. Diretrizes clínicas ainda não estabeleceram o papel apropriado da QFR na prática de rotina. Ensaios clínicos em andamento, incluindo o FAVOR III China (NCT03656848) podem, em última instância, afetar as diretrizes futuras.
Figura 1 As imagens de A a D referem-se à artéria coronária direita (ACD) e avaliação da lesão pela Razão de Fluxo Quantitativo (QFR). As imagens E a H apresentam um vaso da artéria descendente anterior esquerda (ADA) com análise de lesão utilizando o Sistema de Análise Angiográfica Cardiovascular para Fluxo Fracionado de Reserva de vasos (CASS-vFFR). Análise coronária quantitativa de duas projeções angiográficas ortogonais da ACD (A e B); Análise da QFR sobre a reconstrução tridimensional (3D) da ACD (C); Gráficos da QFR mostrando o diâmetro do vaso de referência proximal e distal da lesão e o ponto mais estreito da lesão (D). Análise do CASS-vFFR mostrando projeções angiográficas ortogonais da ADA (E e F); Análise do CASS-vFFR sobre a reconstrução em 3D da ADA (G); Gráficos de análise do CASS-vFFR apresentando todo o diâmetro do vaso, marcando o diâmetro do vaso de referência proximal e distal da lesão, seguido pelo ponto mais estreito dentro da lesão (H). “P”: proximal; “D”: distal.
O sistema CASS-vFFR (Pie Medical Imaging, Maastricht, Países Baixos) é um software de fisiologia baseado em angiografia com duas projeções ortogonais de vaso único (Figura 1 E a H). O estudo de validação do CASS-vFFR incluiu 100 pacientes com lesões intermediárias e DAC estável ou infarto agudo do miocárdio sem supradesnivelamento do segmento ST (IAMSSST). Os valores médios do CASS-vFFR e FFR foram 0,84 ± 0,07 e 0,82 ± 0,08, respectivamente.14 A correlação linear do CASS-vFFR vs. FFR foi de 0,89 (p < 0,001) e o CASS-vFFR mostrou uma alta correlação inter-observador de 0,95 (p < 0,001). Além disso, a precisão diagnóstica do CASS-vFFR para lesões com FFR ≤ 0,80 foi de 0,93 (p < 0,001).14 O CASS-vFFR foi o primeiro sistema fisiológico baseado em angiografia a receber a aprovação “USA 510 (k)” pela Food and Drug Administration (FDA) para comercialização.
Diferente da QFR e CASS-vFFR, o Fluxo Fracionário de Reserva Derivado da Angiografia Coronária (FFRangio, CathWorks Ltd., Kfar-Saba, Israel) reconstrói toda a árvore coronariana utilizando 3 projeções angiográficas de plano único (pelo menos) e a pressão aórtica média para calcular um mapeamento virtual da FFR no modelo em 3D.12,17 Fearon et al.,17 realizaram um estudo multicêntrico de validação da FFRangio com 301 pacientes (319 lesões).17 As medidas de FFRangio e FFR invasiva variaram de 0,74-0,90 (mediana de 0,83) e de 0,5-0,97 (mediana de 0,85), respectivamente. O coeficiente de correlação entre FFRangio e FFR invasiva foi de 0,80 (p < 0,001) e os limites de confiança de Bland-Altman ficaram entre -0,14 e 0,12 (95%). Para lesões com FFR ≤ 0,80 invasiva, a FFRangio (por vaso) demonstrou uma sensibilidade de 0,94, especificidade de 0,91 e a área sob a curva de 0,94. A precisão diagnóstica geral da FFRangio foi de 0,92 e 0,87 para valores de FFR invasiva entre 0,75-0,85.17 Por fim, dentre os métodos a concordância inter-observador foi de 0,96 (p < 0,001).12
Uma crítica recorrente ao uso rotineiro de avaliação fisiológica invasiva (por ex., FFR) da DAC no laboratório de cateterismo cardíaco é o custo adicional do procedimento.18,19 Para os métodos de avaliação de fisiologia não-invasivos baseados em angiografia, os dados de custo-efetividade requerem uma investigação mais aprofundada. Uma vez que, essa tecnologia envolve custos institucionais iniciais de hardware e software, em vez de um custo caso a caso específico de um fio invasivo.
Atualmente, com os stents contemporâneos, as taxas de falha da lesão alvo (TLF, do inglês target lesion failure, um desfecho composto de morte cardíaca, infarto do miocárdio do vaso-alvo ou infarto do miocárdio ou revascularização da lesão-alvo - TLR, do inglês target lesion revascularization, causada por isquemia) são semelhantes (isto é, 4,0% a 6,0% aos 12 meses) à taxa de endpoint combinado no grupo de pacientes nos quais a ICP foi adiada com base na FFR (isto é, revascularização geral não planejada de 5,0% aos 12 meses).20 Assim, a taxa de eventos compostos para o tratamento ou o adiamento da ICP é semelhante, talvez limitando a utilização apropriada da FFR para informar as decisões da ICP.20-22 Isso precisa ser investigado em um ensaio clínico contemporâneo utilizando stents farmacológicos de 2ª geração (SF-2G).
A maioria das soluções de software de fisiologia baseadas em angiografia está atualmente disponível apenas para pesquisa. Ensaios clínicos demonstrando sua viabilidade clínica e reprodutibilidade com impacto significativo nos desfechos clínicos são necessários. No entanto, estudos do mundo real também são necessários para avaliar a confiabilidade, integração e custo-efetividade dessas tecnologias em um laboratório de cateterismo clínico, uma vez que a prevalência de lesões isquêmicas na maioria dos estudos é limitada (isto é, 17% a 43%).17 As tecnologias fisiológicas baseadas na angiografia têm um grande potencial, mas ainda precisam ser observadas com alguma cautela e o impacto dessas tecnologias permanece desconhecido.