versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.20 no.12 Rio de Janeiro dez. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320152012.20492014
O processo de envelhecimento populacional em curso no Brasil faz-se acompanhar pelo aumento da prevalência de doenças crônicas, do consumo de medicamentos e de hospitalizações na população idosa1. Tais ocorrências são agravadas pela incapacidade funcional, que se caracteriza como inabilidade ou dificuldade de realizar tarefas que fazem parte do cotidiano, e que são indispensáveis para uma vida independente na comunidade2. Incapacidade, doenças crônicas, quedas, hospitalizações e morte são apontados como riscos associados à síndrome clínica de fragilidade, indicada por fadiga, perda de peso não intencional, inatividade física, baixa força de preensão e lentidão da marcha, descritos por Fried et al.3.
Baixa escolaridade e pobreza ao longo da vida atuam de forma deletéria e acumulativa sobre a saúde, os hábitos nutricionais, o autocuidado e a adesão a tratamentos de saúde. A continuidade dessas condições na velhice desfavorece de forma particular a qualidade de vida em saúde dos idosos4. Pobreza e acesso deficitário a serviços de saúde têm sido descritos como variáveis associadas com fragilidade3,5.
A autoavaliação subjetiva do estado de saúde tem se mostrado como um indicador associado ao declínio da autonomia funcional6, incapacidade e doenças crônicas7 entre idosos. A autoavaliação da saúde tem uma natureza avaliativa global e valorativa, indicada por uma resposta que se caracteriza como um julgamento pessoal sobre a qualidade da saúde física e mental, com base em critérios individuais e sociais8. Pelo fato de afetar o senso global de bem-estar, o autocuidado em saúde e a adesão a tratamentos de saúde9 a autoavaliação de saúde é recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como importante indicador de saúde das populações.
A autoavaliação da saúde foi empregada no Brasil como variável de desfecho, pela primeira vez, no Projeto Bambuí10. Os resultados obtidos nesse estudo pioneiro mostraram uma estrutura multidimensional da autoavaliação da saúde em idosos, a qual compreende a situação socioeconômica, suporte social, condições de saúde física, sintomas depressivos e acesso e uso de serviços de saúde.
Dados de inquéritos realizados no Brasil e no exterior sugerem que a idade, o sexo, o bem-estar material e grau de instrução são dimensões relevantes da autoavaliação do estado de saúde11-13. A autopercepção negativa de saúde nos idosos associa-se a doenças crônicas, à incapacidade funcional, a déficits de visão e audição, à incapacidade para sair sozinho e fazer exercício físico e a fatores psicossociais6,14,15. As avaliações negativas de saúde não advêm apenas das sensações físicas de dor e desconforto, mas também das consequências sociais e psicológicas das enfermidades16.
Não há dados brasileiros sobre autoavaliação de saúde em idosos residentes em cidades com diferentes níveis socioeconômicos, considerando outros indicadores de saúde e variáveis sociodemográficas. O conhecimento sobre os correlatos da autoavaliação de saúde pode orientar políticas e programas de atenção à saúde dos idosos.
Os objetivos estabelecidos para este trabalho foram: a) comparar o perfil de idosos, de 65 anos ou mais, residentes em Belém (PA) e em Campinas (SP), considerando-se a autoavaliação de saúde, variáveis sociodemográficas e outros indicadores de saúde, entre eles o acesso e o uso de serviços de saúde b) em cada cidade, analisar as associações entre autoavaliação negativa de saúde, as variáveis sociodemograficas e as demais variáveis de saúde.
A investigação foi baseada nos dados do banco eletrônico do Estudo sobre Fragilidade em Idosos Brasileiros (Estudo Fibra Unicamp, 2008-2009), de natureza multicêntrica e de corte transversal, que teve como finalidade investigar indicadores de fragilidade3 e variáveis sociodemograficas, biológicas e psicossociais associadas, em idosos urbanos com 65 anos e mais. O Fibra envolveu amostras de idosos de sete localidades brasileiras escolhidas por conveniência, em cada uma das quais foi feita amostragem aleatória simples de setores censitários urbanos (93 em Belém e 90 em Campinas), em número correspondente à razão entre o número de idosos pretendidos e o universo de setores censitários urbanos17. As cidades tinham mais de um milhão de habitantes, por ocasião do recrutamento e da coleta de dados. A primeira tinha um Produto Interno Bruto (PIB) per capitade R$ 9.793,00 e a segunda, um PIB per capita de R$ 29.731,0018, dados usados como base para afirmar que são cidades cujas populações desfrutam de diferentes condições de desenvolvimento econômico. Os critérios de elegibilidade utilizados por ocasião do recrutamento, feito em domicilio por pessoal treinado, que seguiu rotas pré-estabelecidas em cada setor censitário sorteado, foram as seguintes: ter idade igual ou superior a 65 anos, ter residência permanente no domicílio e no setor censitário, ausência de comprometimentos graves de cognição, comunicação, sensoriais e mobilidade. Os critérios de exclusão adotados no recrutamento foram os mesmos adotados por Fried et al.3: a) problemas de memória, atenção, orientação espacial e temporal e comunicação sugestivos de demências, ou então a menção desse diagnóstico feito por medico, apresentada por um familiar; b) estar transitória ou permanentemente acamado; c) ter sequelas de acidente vascular encefálico, como perda localizada de força ou afasia; d) Doença de Parkinson com comprometimento grave da motricidade, da fala ou da afetividade; e) graves déficits de visão ou audição, dificultando a comunicação; f) estar em estágio terminal.
Os dados foram coletados em sessão única com duração entre 40 e 120 minutos, realizada em centro comunitário, em endereço, horário e dia acordados com os idosos por ocasião do recrutamento. A sessão de coleta de dados foi dividia em dois blocos. O primeiro incluiu medidas de variáveis sociodemográficas, antropométricas, clínicas, de fragilidade e de rastreio de demências. Neste caso, foi adotado oMini Exame do Estado Mental (MEEM), com as notas de corte sugeridas por Brucki et al.19 e recomendadas pela Academia Brasileira de Neurologia, menos um desvio-padrão (17 para os analfabetos, 22 para os idosos com 1 e 4 anos de escolaridade, 24 para os com 5 a 8 anos e 26 para os com 9 ou mais anos de escolaridade). Das amostras de 721 idosos em Belém e 900 em Campinas foram excluídos os que pontuaram abaixo da nota de corte. Os idosos incluídos pela pontuação no MEEM (571 em Belém e 689 em Campinas) participaram do segundo bloco de medidas (todas de autorrelato) sobre condições de saúde física, funcionalidade, sintomas depressivos e satisfação com a vida, de interesse para o estudo ora relatado. Todos os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido que integrou o projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Para este estudo foi aprovado adendo ao projeto principal.
1. Autoavaliação da saúde. Assumida como variável dependente, foi investigada por meio da pergunta: “De um modo geral, como o/a senhor/a avalia a sua saúde no momento atual?”, com as seguintes opções de resposta: muito boa (5), boa (4), regular (3),ruim (2) e muito ruim (1). Na análise de dados, as categorias muito boa e boa foram reunidas na classe avaliação positiva e as categorias regular, ruim e muito ruim foram reunidas na classe autoavaliação negativa de saúde.
2. Sociodemográficas. Foram avaliadas: a) sexo (masculino ou feminino); b) idade em anos completos, que foram reunidos em quatro faixas (65-69, 70-74, 75-79, e > 80 anos e mais); c) renda familiar [(relativa a salários, pensões, aposentadorias, benefícios sociais, aluguéis e juros recebidos mensalmente pelos membros da família em valores brutos, os quais foram convertidos em valores correspondentes ao número de salários mínimos à época da coleta de dados (≤ 1; 1,1 a 3; 3,1 a 5; > 5 SM.)]; d) chefia familiar (sim ou não) e; e) escolaridade (perguntou-se “Até que ano de escola o/a senhor/ estudou?”, o valor foi anotado e posteriormente foram estabelecida a categoria nunca foi à escola e as faixas 1 a 4 anos; 5 a 8 anos e ≥ 9 anos de escolaridade), correspondentes aos níveis da educação formal brasileira. g) Ainda dentro das variáveis sociodemográficas perguntou-se se o idoso exercia algum trabalho remunerado (resposta sim ou não).
3. Acesso e uso de serviços de saúde. O acesso a serviços de saúde foi investigado por item em que se perguntava: Quando tem necessidade de atendimento médico, que tipo de serviço de saúde procura com maior frequência? Rede pública de saúde ou SUS (centros de saúde, ambulatórios); clínicas, consultórios e hospitais ligados a convênios ou planos privados de saúde; clínicas, consultórios e hospitais particulares pagos diretamente pelo paciente? A primeira alternativa foi considerada como uso preponderante de serviços públicos e as outras duas como serviços privados. O uso de serviços de saúde teve dois indicadores: a) Maior número de noites de internação em hospital no ano anterior à pesquisa, sendo as respostas atribuídas às faixas nenhuma, 1 e 2 ou mais; b) número de consultas médicas no último ano, reunidas nas faixas nenhuma, 1, 2 e 3 ou mais.
4. Saúde física. Foi avaliada por meio de itens de autorrelato sobre: a) Número de doenças crônicas diagnosticadas por médico no último ano, apontadas pelos idosos entre doença do coração, hipertensão, AVC/isquemia/derrame; diabetes mellitus, câncer, artrite ou reumatismo, doenças dos pulmões, depressão e osteoporose, que geravam respostas sim ou não. Foram criadas as faixas nenhuma, 1 ou 2 e 3 ou mais; b) Sinais e sintomas nos 12 meses anteriores à entrevista, os quais incluíram incontinência urinária, incontinência fecal, problemas de memória, perda de peso não intencional, quedas, fraturas, problemas para mastigar e engolir e problemas de sono, avaliados por perguntas do tipo sim ou não. As respostas afirmativas foram contadas e atribuídas às faixas nenhuma, 1 ou 2 e 3 ou mais; c) Foram avaliados os indicadores visão (enxerga bem, enxerga mal e usa óculos, e enxerga mal e não usa óculos) e audição (ouve bem, ouve mal e usa aparelho, e ouve mal e não usa aparelho), todos com perguntas tipo sim ou não; d) Para a medida destatus nutricional foi considerado o Índice de Massa Corporal (IMC), expresso em kg/m2 e obtido a partir da fórmula: IMC = peso (kg) ÷ altura (m)2. Os dados resultantes foram classificados conforme a recomendação estabelecida pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS): IMC abaixo de 23 = baixo peso; IMC entre 23 e 27,99 = peso normal; IMC entre 28 e 29,99 = sobrepeso; e IMC acima de 30 = obesidade20; e) Para a medida de risco cardiovascular foi considerada a Relação Cintura/Quadril (RCQ). Conforme protocolos clássicos, a medida da circunferência da cintura é feita no ponto médio entre a borda inferior da última costela e a crista ilíaca. A circunferência de quadril é medida considerando-se o local de maior volume dos glúteos do idoso21. As medidas foram realizadas com fita métrica inelástica, milimetrada, com 150 cm de extensão. Os critérios utilizados para a classificação da RCQ foram os propostos por Lohman et al.22. Para as mulheres, RCQ = 0,80-0,85 (risco baixo); RCQ = 0,86-0,90 (risco moderado) e RCQ > 0,90 (risco alto). Para os homens, RCQ = 0,90-0,95 (risco baixo); RCQ = 0,96-1,0 (risco moderado) e RCQ > 1,0 (risco alto).
5. Fragilidade. Foi operacionalizada pelo modelo de cinco critérios construído por Fried et al.3: a) Perda de peso não intencional foi indicada por menção à perda de 4,5kg ou 5% do peso corporal no último ano; b) Fadiga foi indicada por respostassempre ou quase sempre a qualquer um de dois itens extraídos da CES-D23, a respeito da percepção de falta de energia para iniciar ou dar conta das atividades diárias; c) Inatividade física foi indicada por uma taxa de gasto calórico semanal em exercícios físicos e em atividades domésticas inferior ao valor do 1º quintil da distribuição. Os tipos, a frequência semanal e a duração diária dos exercícios físicos e das atividades domésticas de fraca, moderada e forte intensidade, que os idosos realizavam, foram avaliados por meio de versão brasileira adaptada do Minesota Leisure Activities Questionnaire24. Os resultados foram interpretados segundo os parâmetros estabelecidos por Ainsworth et al.25; d) A medida de força de preensão palmar correspondeu à média dos valores em quilogramas-força obtidos por meio de dinamômetro hidráulico, modeloJamar (Lafayette Instruments®, Lafayette, Indiana, Estados Unidos), colocado na mão dominante, em três tentativas consecutivas, intercaladas por um minuto de repouso. Foram considerados indicadores de baixa força de preensão os valores inferiores ao 1º quintil da amostra de cada cidade, com ajustamento por sexo e índice de massa corporal3; e) Em lentidão de marcha foi considerada a média de três medidas consecutivas do tempo gasto para percorrer 4,6 m no plano, em linha reta e em velocidade usual, permitindo-se o uso de bengala ou andador. Em cada amostra, foram considerados como indicadores de tempo de marcha os valores do tempo em segundos superiores ao percentil 80, ajustados por sexo e altura3,26. De acordo com Fried et al.3, devem ser considerados como frágeis os idosos que pontuam para quaisquer três dos cinco indicadores; como pré-frágeis os que pontuam para 1 ou 2, e como não-frágeis ou robustos, os que não pontuam para nenhum.
6. Independência para o desempenho de atividades instrumentais de vida diária (AIVD). Perguntava-se sobre quanta ajuda (total, parcial ou nenhuma) o idoso precisava para desempenhar as AIVD telefonar, usar transportes, compras, cozinhar, fazer serviços domésticos, uso de medicação e manejo de dinheiro27. As categorias ajuda parcial ou total foram reunidas em uma só, chamada de dependência. “Nenhuma” ajuda passou a ser chamada de independência. Foram contadas as respostas em cada item, dadas a cada uma das três possibilidades. As respostas ‘ajuda parcial’ e ‘total’ foram reunidas na categoria dependente.
7. Sintomas depressivos. Foram avaliados pela Escala de Depressão Geriátrica, com 15 itens dicotômicos (EDG-15)28 e nota de corte> 6, um instrumento de rastreio de depressão para idosos que avalia estados emocionais.
Na análise estatística foi utilizado o programa computacional The SAS Systen for Windows (Statistical Analysis System), versão 9.2, SAS Institute Inc., 2002-2008, Cary, NC, USA. As amostras das duas cidades foram comparadas com relação à frequência de idosos que avaliaram a própria saúde de forma positiva (saúde avaliada como boa e muito boa) ou negativa (saúde avaliada como regular, ruim e muito ruim), levando-se em conta os indicadores sociodemográficos e de saúde. O teste usado para fazer comparações entre as distribuições das variáveis ordinais das duas cidades foi o teste de Mann Whitney. Para comparar as frequências das variáveis categóricas observadas nas duas cidades, foi adotado o teste qui-quadrado. A escolha de testes não-paramétricos foi determinada pela natureza das distribuições, que não tenderam à normalidade. Análises de regressão logística univariada e multivariada, com critério stepwise forward de seleção de variáveis, foram usadas para estimar a magnitude das associações entre as variáveis independentes e a autoavaliação negativa de saúde em Belém e em Campinas. O nível de significância adotado para todos os testes estatísticos foi de 5% ou p ≤ 0.05.
Em Campinas foi observada frequência percentual significativamente maior de idosos que avaliaram a própria saúde de forma positiva do que em Belém, onde foi encontrada maior frequência de avaliações negativas. Nas duas cidades, indistintamente, sessenta e nove por cento da amostra foi constituída por mulheres e 69% dos participantes tinha de 65 a 74 anos. Em Belém, foi observado um percentual significantemente maior de idosos com renda familiar de ≤ 1 a 3 SM do que em Campinas, onde a frequência de participantes com renda familiar entre 3,1 e > 5,0 SM foi significantemente maior do que em Belém. Campinas superou Belém quanto ao percentual de idosos com 1 a 4 anos de escolaridade, mas Belém superou Campinas na faixa de 5 a 8 anos de escolaridade.
Em comparação com Campinas, Belém apresentou um percentual significantemente mais alto de idosos que utilizavam mais frequentemente os serviços do sistema público de saúde, ao passo que em Campinas foi observada uma frequência mais alta de idosos que utilizavam preponderantemente os do sistema privado. Os idosos de Belém fizeram significantemente mais consultas médicas nos 12 meses que precederam a entrevista do que os de Campinas. Mas não foram observadas diferenças estatisticamente significantes entre as duas cidades, com relação à frequência de idosos conforme o número de noites passadas em hospital, o número de doenças crônicas diagnosticadas por médico e o número de sinais sintomas no ano que precedeu a entrevista.
Em Belém, o percentual de participantes com baixo peso e com baixo risco cardiovascular superou o de Campinas, onde houve um percentual significantemente mais alto de idosos com sobrepeso e obesidade e com alto risco para doenças cardiovasculares do que em Belém. Mais idosos de Belém do que de Campinas relataram ouvir bem, mas mais idosos de Campinas do que de Belém relataram enxergar bem. Mais idosos de Belém relataram enxergar mal e não usar óculos do que em Campinas, mas houve mais idosos desta cidade do que de Belém que relataram ouvir mal e não usar aparelho. Comparada com Campinas, Belém teve um percentual significantemente maior de idosos que relataram necessitar de ajuda para o desempenho de AIVD.
Em Campinas foi observado um percentual significantemente mais alto de idosos que se descreveram como totalmente independentes. As amostras das duas cidades não se diferenciaram estatisticamente quanto à frequência de idosos que pontuaram para fragilidade nos critérios de Fried et al.3, exceção feita à inatividade física, variável em que os idosos de Belém sobrepujaram os de Campinas. Percentuais comparáveis de participantes das duas cidades (em torno de 21,5%) pontuaram acima da nota de corte em sintomas depressivos (Tabela 1).
Tabela 1 Comparação entre as frequências dos idosos de Belém e de Campinas, nas variáveis sociodemográficas e as de saúde. Estudo Fibra Unicamp, 2008-2009.
* Teste qui-quadrado.
Em Belém foram observados percentuais estatisticamente mais altos de idosos que avaliaram negativamente a própria saúde entre os que ganhavam entre≤ 1 e 3 SM, os com 1 a 8 anos de escolaridade, os que não trabalhavam, os que utilizavam serviços públicos de saúde e os que tinham ido a 3 ou mais consultas médicas no ano anterior; os que tinham 3 ou mais doenças e 3 ou mais sinais e sintomas; os que enxergavam mal e usavam óculos, os que enxergavam mal e não usavam óculos e os que ouviam mal e não usavam aparelho auditivo; os que se queixaram de fadiga, pontuaram para baixa força de preensão, para lentidão da marcha, para inatividade física e acima da nota de corte na EDG. Ainda em Belém, entre os que avaliaram a própria saúde de forma positiva havia mais idosos com renda superior a 5 SM, com 9 ou mais anos de escolaridade, que trabalhavam, que usavam serviços privados de saúde, que haviam comparecido a apenas uma consulta médica no ano anterior; tinham menor número de doenças crônicas e menor número de sinais e sintomas (nenhum a 2); disseram enxergar bem e ouvir bem sem instrumentos de apoio; eram fisicamente ativos e pontuaram acima da nota de corte em sintomas depressivos.
Em Campinas, entre os que avaliaram negativamente a saúde, havia significantemente mais idosos que ganhavam entre 1,1 e 3 SM, tinham baixa escolaridade, utilizavam serviços públicos de saúde, haviam se consultado mais de 3 vezes com médico no ano anterior, tinham 3 ou mais doenças e 3 ou mais sinais e sintomas, relataram enxergar mal e usar óculos, necessitavam de ajuda para o desempenho de AIVD, queixaram-se de fadiga, apresentaram lentidão de marcha, pontuaram para inatividade física e tiveram escore ≥ 6 na EDG (Tabela 2). Na cidade de Belém foi possível observar que os idosos com avaliação negativa de saúde tinham renda familiar mais baixa, mais consultas médicas no ano anterior, mais noites de internação hospitalar, mais doenças crônicas, mais sinais e sintomas e mais sintomas depressivos do que os que apresentaram avaliação positiva de saúde. Exceção feita ao IMC, variável em que os idosos de Campinas, com avaliações positivas de saúde, pontuaram significantemente mais alto do que os com avaliações negativas. Nas demais variáveis, os resultados foram similares aos dos idosos de Belém (Tabela 3).
Tabela 2 Distribuição das frequências dos idosos de Belém e de Campinas com autoavaliações positiva e negativa de saúde, segundo as variáveis sociodemográficas e as demais variáveis de saúde. Estudo Fibra Unicamp, 2008-2009.
# Nos 12 meses anteriores à entrevista. * Teste qui-quadrado.
Tabela 3 Idosos de Belém e de Campinas conforme valores das distribuições das variáveis ordinais em autoavaliação de saúde. Estudo Fibra Unicamp, 2008-2009.
* Regular/ruim/muito ruim. ** Boa/Muito boa.*** Teste de Mann Whitney para comparação entre duas amostras independentes.
A análise de regressão logística univariada, que investigou associações entre autoavaliação negativa de saúde e as variáveis independentes consideradas, revelou que, em Belém, as associações mais robustas foram com internação hospitalar por uma noite, ter 3 ou mais sinais e sintomas, enxergar mal e não usar óculos, pontuar ≥ 6 na EDG, enxergar mal e usar óculos, fadiga e ouvir mal e não usar aparelho. Em Campinas, associaram-se mais fortemente: 3 ou mais doenças crônicas, 3 ou mais sinais e sintomas, pontuar ≥ 6 na EDG, ter renda familiar inferior a 1,0 SM, 5 a 8 anos de escolaridade, 1 ou 2 doenças crônicas, baixa força de preensão e ter 1 ou 2 doenças crônicas (Tabela 4).
Tabela 4 Resultados da análise univariada das associações entre a autoavaliação negativa de saúde, as variáveis sociodemográficas e as demais variáveis de saúde, em Belém e em Campinas. Estudo Fibra Unicamp, 2008-2009.
* Belém: OR (Odds Ratio) = Razão de chance para autoavaliação negativa; (n = 238 positiva e n = 333 negativa). IC 95% = Intervalo de 95% de confiança. Ref.: nível de referência.** Campinas: OR (Odds Ratio) = Razão de chance para autoavaliação negativa; (n=398 positiva e n=278 negativa). IC95% = Intervalo de 95% de confiança. Ref.: nível de referência.
Na análise multivariada aplicada aos dados de Belém foram encontradas associações entre autoavaliação negativa de saúde e fadiga, ausência de compensação para déficits visuais, 3 ou mais sinais e sintomas, 1 ou 2 doenças, enxergar mal e usar óculos, ter 5 a 8 anos de escolaridade e uso de serviços públicos de saúde. Em Campinas foram observadas associações múltiplas entre autoavaliação negativa de saúde e maior número de doenças, sintomas depressivos ≥ 6, enxergar mal e usar óculos e ter menos anos de escolaridade (Tabela 5).
Tabela 5 Resultados da análise multivariada para a associação entre autoavaliação negativa de saúde, as variáveis sociodemográficas e as demais variáveis de saúde em Belém* e em Campinas**. Estudo Fibra Unicamp, 2008-2009.
*Belém: OR (Odds Ratio) = Razão de chance para autoavaliação negativa; (n = 163 positiva e n = 211 negativa). IC 95% = Intervalo de 95% de confiança. Ref.: nível de referência.** Campinas: OR (Odds Ratio) = Razão de chance para autoavaliação negativa; (n=300 positiva e n=217 negativa). IC95% = Intervalo de 95% de confiança. Ref.: nível de referência.
Os percentuais equivalentes de mulheres e homens idosos observados nas duas cidades atenderam a um dos requisitos do delineamento. Em Belém e em Campinas, as cotas de mulheres de todas as faixas de idade coincidiram com as cotas estimadas pelo planejamento amostral, assim como as cotas de homens das quatro faixas de idade obtidas em Campinas. Em Belém, a quantidade de homens examinados foi ligeiramente inferior às cotas estimadas para as faixas de 65 a 69 e de 80 anos e mais, ao mesmo tempo em que a cota de 70 a 74 anos obtida foi ligeiramente superior à estimada18. O predomínio de mulheres nas amostras de pesquisas com idosos é ocorrência bem conhecida, tributada não só à sua maior longevidade, como à sua maior disponibilidade para participar de pesquisas, em função de fatores de gênero. A explicação mais comum para a menor participação dos homens, igualmente associada ao fator gênero, menciona principalmente a falta de motivação e de valorização de informações sobre saúde, em paralelo à menor disponibilidade física em virtude do trabalho ou de atividades de lazer realizadas nos períodos em que normalmente as coletas de dados são realizadas29.
A maior parte dos idosos deste estudo relatou viver com renda familiar de menos que um a três salários mínimos. O rendimento familiar per capita é um indicador de capital social que se associa ao acesso a bens essenciais, especialmente em situação de ausência ou de insuficiência de políticas sociais que garantam moradia, transporte e atendimento à saúde adequado e de qualidade30. Além disso, os idosos de menor renda procuram menos os serviços de saúde, têm menor adesão aos tratamentos e têm menos acesso aos medicamentos do que os que desfrutam de melhor condição social.
Os dados sobre os percentuais de idosos chefes de família e de idosos que trabalhavam acompanham as tendências nacionais31, indicando que os idosos têm participação importante na economia das respectivas famílias e comunidades32.
A composição da amostra de cada uma das duas cidades mostra-se diferente, quando é considerado o nível de renda: em Belém, a renda familiar de 65,5% dos idosos variava entre menos que um e três salários mínimos mensais, contra 45,8% dos idosos de Campinas. Nesta cidade, 54,2% dos idosos tinham renda familiar superior a três salários mínimos, ante 34,4 % em Belém. Esses dados refletem-se na renda média mais elevada na amostra de Campinas, permitindo supor que as condições estruturais oferecidas pela sociedade contribuem fortemente para o estabelecimento do padrão de vida de seus cidadãos. Assim, os idosos de Campinas têm mais acesso ao sistema cooperativo de assistência médica (convênios) do que os de Belém, que relataram fazer uso predominante dos serviços públicos, principalmente do Sistema Único de Saúde (SUS). É provável que essas diferenças sejam devidas a condições de emprego vigentes durante a vida dos idosos das duas cidades. A distribuição da clientela de planos privados de saúde é geograficamente bastante desigual e reflete a distribuição e a expansão nas regiões mais desenvolvidas do ponto de vista econômico33.
Cidade industrializada e com relações de trabalho mais consolidadas, Campinas oferece mais condições de acesso dos seus trabalhadores e aposentados idosos aos sistemas cooperado e privado do que Belém, onde as relações de trabalho informal dos trabalhadores e aposentados idosos são mais frequentes. A demanda por serviços de saúde é bastante desigual entre pessoas de diferentes níveis de renda, com vantagens para as camadas mais privilegiadas34. Essas desigualdades serão minimizadas na dependência da disponibilidade e organização dos serviços, recursos humanos e equipamentos no âmbito do setor público em cada região33.
Quando se trata do percentual de idosos com 1 a 4 anos de escolaridade, os dados das duas cidades seguem o esquema esperado. De fato, era esperado que a frequência fosse maior em Campinas, em virtude de esta cidade desfrutar de melhores condições de desenvolvimento. Pela mesma lógica, era de se esperar que em Belém houvessem mais idosos sem escolaridade formal do que em Campinas. Esta segunda previsão não se confirma, e mais, em Belém há percentuais mais altos de idosos com mais de 5 anos de escolaridade do que em Campinas. Esse dado pode ser devido a falhas de procedimento, mas também pode indicar que, na velhice, a sobreposição entre nível de renda e nível de escolaridade é menos provável do que entre adultos. Além disso, não apenas a condição socioeconômica do indivíduo afeta o seu estado de saúde, mas também as condições macroeconômicas do contexto em que está inserido. Em sociedades pouco igualitárias, observa-se menor provisão pública de recursos importantes para o bem-estar social, e consequentemente para o nível de saúde33.
Os idosos de Belém tiveram desempenho pior do que os de Campinas em número de doenças, número de sinais e sintomas, independência para AIVD e sintomas depressivos. No entanto, em Campinas havia mais idosos com sobrepeso e obesos e mais idosos com alto risco para doenças cardiovasculares do que em Belém. Quando se olha para as consultas médicas e as internações hospitalares de ambas as amostras, percebe-se que os idosos de Belém relataram ter ido mais vezes ao médico do que os de Campinas, e que as amostras não diferiram segundo o número de internações hospitalares no ano anterior.
A literatura reconhece a relação entre hospitalizações, consultas, doenças crônicas e autoavaliação negativa de saúde7,14,34,35. Porém, é difícil engendrar uma explicação plausível para os resultados observados nesta pesquisa, a não ser especulando sobre os dados das associações múltiplas entre autoavaliação negativa de saúde, número de doenças crônicas, fadiga, sintomas depressivos e tipo de serviço de saúde mais utilizado. O que se pode observar em relação a eles é que as doenças e os sintomas depressivos pesam mais na opinião dos idosos de Campinas do que na dos idosos de Belém. Entre estes, a fadiga pesa mais do que os sintomas depressivos entre os idosos de Campinas. Além disso, os dois tipos de serviços utilizados covariaram com autoavaliação negativa de saúde entre os idosos de Belém, mas não entre os de Campinas. Será que os idosos de Belém dispõem de serviços de saúde piores do que os de Campinas? Se assim for, essa realidade não se reflete nas opiniões dos idosos de Belém sobre o próprio estado de saúde, considerando-se o nível de escolaridade. Nesta cidade, somente ter de 5 a 8 anos de escolaridade (em comparação com ter 9 ou mais) associou-se com autoavaliação negativa de saúde. São detalhes dos dados a serem confrontados com dados de estudos nacionais e internacionais que mostraram que a autoavaliação da saúde é fortemente influenciada pelo nível de escolaridade dos idosos11-13. Mais que isso, admite-se que o nível de instrução é a principal causa das desigualdades sociais em saúde porque reflete o capital humano das pessoas (i.e., as habilidades cognitivas e não cognitivas que podem controlar ou direcionar a vida de um indivíduo, provendo-lhe os recursos necessários, que excedem os limites dos financeiros)36.
Sofrer os efeitos da deficiência visual não compensada é uma ocorrência mais típica de contextos socioeconômicos e de saúde menos favorecidos do que nos mais desenvolvidos. Nesta pesquisa, esta ocorrência afetou a autoavaliação negativa de saúde dos idosos das duas cidades, mas mais intensamente a dos idosos de Belém. Assim, pode ser considerada como uma sentinela a chamar a atenção para as deficiências do sistema de proteção social e de atenção à saúde da população idosa. No modelo multivariado, o presente estudo não encontrou associação entre autoavaliação negativa de saúde e deficiência auditiva, apesar de a literatura apontar relações entre essas duas condições37. Talvez seja importante chamar a atenção para o fato de essa associação ter aparecido na análise univariada, na cidade de Belém, reforçando a ideia de que possa ser um sinal de alerta para os sistemas de saúde.
Os resultados encontrados reforçam a noção de que a autopercepção de saúde tem uma estrutura multidimensional e que reflete, de forma global, a opinião do idoso sobre si mesmo e sobre questões que envolvem aspectos biológicos, psicológicos e sócio-históricos de sua experiência. Reflete julgamentos não apenas do momento em que são realizados, mas de toda a trajetória de vida. Envolve mecanismos de comparação social, motivos e expectativas. O presente trabalho dele se ocupou como variável dependente, mas não deve ser esquecido o papel mediador da variável autoavaliação de saúde, que se coloca entre a influência de variáveis econômicas, de saúde, de funcionalidade, de autocuidado, de crenças de capacidade e de bem-estar subjetivo. A avaliação de saúde no envelhecimento não se referencia apenas ao domínio do individual e do privado, mas também ao âmbito dos recursos e das oportunidades sociais, motivo pelo qual merece ser colocado na esfera da política e das políticas sociais38.
O delineamento de corte transversal limita a possibilidade de extrair conclusões que sugiram a presença de riscos para desfechos determinados, ou mesmo de relações de causa e efeito. Partes dos dados são pouco encontrados na literatura e podem servir de referência para futuros estudos. Porém, como estudo que retrata um momento de medida, este trabalho produziu uma maioria de dados que replicam os de outros autores brasileiros e estrangeiros. Outros carecem de aprofundamento e refinamento das medidas, das amostras e do delineamento. De todo modo, significa uma tentativa de comparar amostras ancoradas em regiões do País com condições estruturais diversas, se bem que cada uma delas reproduza as condições de pobreza e de desigualdade social que são a marca distintiva da nossa velhice. Os resultados apontam para a necessidade de se oferecer maior atenção aos segmentos socioeconômicos menos favorecidos, entre eles os idosos, e reforçam a necessidade de estratégias e ações de saúde a serem desenvolvidas na perspectiva de atingir maior grau de equidade em saúde.