versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.113 no.5 São Paulo nov. 2019 Epub 02-Dez-2019
https://doi.org/10.36660/abc.20190701
De acordo com as diretrizes do American College of Cardiology (ACC)/American Heart Association (AHA) de 2017, sobre a prevenção, detecção, avaliação e conduta na hipertensão arterial (HA) em adultos, 46% dos adultos americanos são hipertensos.1 No Brasil, como os níveis de pressão arterial (PA) sistólica e diastólica que definem a hipertensão2 diferem da Diretriz ACC/AHA, este percentual é de cerca de 25%, de acordo com o VIGITEL.3
A hipertensão é importante questão de saúde pública e o principal fator de risco para doenças cardiovasculares, acidente vascular cerebral e doença renal crônica. As doenças cardíacas e o acidente vascular cerebral estão entre os problemas de saúde mais prevalentes e onerosos do mundo, sendo que o controle da PA é a intervenção mais eficaz para salvar vidas, prevenindo comorbidades deletérias, mas apenas aproximadamente metade dos indivíduos apresentam controle pressórico mesmo nos países em desenvolvimento.1,2,4
A PA é um dos parâmetros de monitorização mais importantes na clínica médica. A medida adequada da PA é ponto crucial no diagnóstico e na conduta da hipertensão arterial na prática clínica, em consultórios ou fora deles.5 A monitorização residencial da PA com dispositivos automáticos validados torna-se uma alternativa à monitorização ambulatorial da pressão arterial (MAPA), recomendada como o método preferencial de medida da PA fora do consultório na maioria das diretrizes1,2,5,6 devido à sua maior precisão, capacidade ímpar de medir a PA noturna, identificando hipertensos non-dippers e risers (reverse dipping), detecta a variabilidade circadiana e parece correlacionar-se melhor com prognóstico. Em contraste com a MAPA, a monitorização residencial da pressão arterial (MRPA) é bem tolerada, mais facilmente disponível, de menor custo, apresentando também uma associação mais forte com o risco renal e cardiovascular, em comparação com a pressão medida no consultório. Além disso, a MRPA pode conferir maior autonomia ao paciente, além de um papel mais ativo no tratamento de sua doença crônica, sendo útil para monitorar a eficácia do tratamento anti-hipertensivo, melhorando assim o controle da PA, diminuindo a inércia terapêutica. No entanto, as evidências científicas atuais demonstraram que a MRPA, embora seja custo efetiva e se constitua em boa abordagem, é subutilizada nos Estados Unidos e em outros países,7 estando disponíveis alguns poucos ensaios clínicos bem elaborados.
O estudo TASMINH4,8 realizado pelo National Institute for Health Research do Reino Unido, recentemente publicado na Lancet, constatou que a automonitorização, com ou sem telemonitorização, quando utilizada por médicos clínicos na atenção básica para prescrever medicamentos anti-hipertensivos para indivíduos com PA não controlada, encontrou níveis de PA sistólica significativamente menores no grupo de intervenção em comparação com a prescrição pautada por medidas feitas no consultório. Os resultados mostraram que a automonitorização com ou sem telemonitorização auxilia a conduta da hipertensão na atenção básica.
O Telescot9 é um ensaio clínico escocês que incluiu sete estudos sobre a implementação da telemonitorização no contexto da atenção primária para a conduta de longo prazo da hipertensão, diabetes e outras doenças crônicas. Os resultados mostraram alto índice de aprovação por parte dos pacientes, que consideraram a utilidade desta nova estratégia em conferir-lhes autonomia. Os médicos também consideraram a telemonitorização algo encorajador; no entanto, alguns expressaram críticas às características do software, o que pode denotar obstáculos à ampla implementação da telemonitorização na rotina de cuidados diários.
No estudo “Prevalence of Masked and White-Coat Hypertension in Pre-Hypertensive and Stage 1 Hypertensive Patients with the Use of TeleMRPA” [Prevalência de Hipertensão Mascarada e do Avental Branco em Pré-Hipertensos e Hipertensos Estágio 1 com o uso da TeleMRPA] desta edição, Barroso WKS et al.10 utilizaram a estratégia da MRPA associada à telemedicina (plataforma TeleMRPA). A amostra foi composta por 1.273 participantes, dos quais 58,1% eram mulheres, com idade média de 52,4 ± 14,9 anos, índice de massa corporal médio de 28,4 ± 5,1 kg/m2. A PA casual medida no consultório foi maior que a MRPA (+7,6 mmHg para pressão sistólica e +5,2 mmHg para pressão diastólica (p < 0,001). Os autores encontraram 558 (43,8%) indivíduos normotensos; 291 (22,9%) com hipertensão sustentada; 145 (11,4%) com hipertensão mascarada (HM) e 279 (21,9%) com hipertensão do avental branco (HAB), com erro diagnóstico por PA casual na amostra total em 424 (33,3%) pacientes. Em hipertensos estágio 1, a prevalência de HAB foi de 48,9%; em pacientes pré-hipertensos, a prevalência de HM foi de 20,6%. Concluiu-se que a HM e a HAB têm alta prevalência na população adulta, particularmente em pacientes pré-hipertensos e hipertensos estágio 1, recomendando-se a obtenção da medida da PA fora do consultório nesses pacientes, para evitar erros de diagnóstico. De fato, trata-se de um resultado importante, pois a pré-hipertensão é um sinal de alerta para o desenvolvimento de hipertensão de longo prazo seja neste estágio, e mais ainda na hipertensão estágio 1, estando ambas associadas alesões de órgãos-alvo, aumentando o risco de doença cardiovascular e doença renal.11
Como descrito acima, a telemonitorização vem sendo usada com sucesso na atenção básica em todo o mundo, e temos que considerar essa estratégia como uma possibilidade de realizar nossa tarefa no Brasil em termos de diagnóstico e conduta da hipertensão. A MRPA com ou sem a telemonitorização pode ser usada sistematicamente na prática diária, assim como a MAPA na identificação de pacientes com hipertensão do avental branco; hipertensão mascarada; hipertensão sustentada controlada, não controlada, resistente ou refratária, conforme encontrado pelos autores no artigo analisado.1,2,5,6
No entanto, é importante considerar algumas limitações. Trata-se de um estudo retrospectivo não cego, capaz de identificar um problema de viabilidade, mas não especificamente projetado para extrair dados. A maioria dos registros foi proveniente de pacientes residentes no Nordeste do Brasil, sendo este possível viés admitido pelos autores. Não sabemos como os pacientes mediram a pressão arterial nos quase 30 centros diferentes de nove estados das regiões geográficas brasileiras. É um esforço enorme treinar todos os pacientes e manter os dispositivos bem calibrados e verificados quanto à precisão periodicamente, usando um método padrão, com manguitos de tamanho adequado e corretamente posicionados. Outra barreira associada ao paciente é que a MRPA exige certo nível de letramento para que os indivíduos sejam capazes de aplicar uma medida padrão da PA utilizando os mesmos dispositivos oscilométricos automáticos calibrados. É obrigatório o treinamento dos profissionais de saúde e dos pacientes em todos os centros, o que certamente dispende muito tempo.5 Por fim, temos outras variáveis a considerar, como a presença de sinais de artefato causados por movimentos ou arritmia cardíaca.
Espera-se que, no futuro, com o aumento do uso da medicina digital, teremos novas tecnologias, como dispositivos de monitorização de PA de última geração, incluindo smartphones e telemonitorização habilitada para Bluetooth, usando sistemas de monitorização contínua da PA, sem o uso de manguitos, que serão capazes de fornecer novas soluções com precisão e validação para o contexto clínico, melhorando os desfechos de pacientes hipertensos.12,13 Talvez, no futuro, até mesmo a MAPA será algo do passado.
Um exemplo dessa nova tecnologia é o protótipo experimental do tipo relógio proposto por Woo et al.,14 composto por um dispositivo do tipo wearable com um sensor de pressão próximo à artéria radial, possibilitando a medida contínua e precisa da PA em smartphones de uso pessoal.
Por outro lado, os dados transmitidos a partir desses equipamentos domésticos e dispositivos pessoais criarão expectativas de tomada de decisão terapêutica, se necessário. Outro ponto a se considerar é que são essenciais melhores níveis de privacidade e segurança física, integridade e segurança técnica de dados sensíveis, pois podem ocorrer falhas no compartilhamento de dados entre pacientes e os profissionais de saúde. Em muitos países, como no Brasil, não temos normas regulatórias técnicas, legais e éticas claras para intervenções eletrônicas em saúde, sendo que essas ferramentas são importantes para orientar médicos em seus contextos clínicos em uma era de crescente uso da inteligência artificial.
O estudo de Barroso et al.,10 nos traz como resultado que a monitorização da PA fora do consultório na prática profissional brasileira é um complemento importante das medidas de triagem da hipertensão no consultório e espera-se que um processo mais rigoroso de telemonitorização possa romper algumas barreiras.
Concluindo, a telemonitorização da MRPA parece ser uma abordagem promissora para a conduta de pacientes, particularmente aqueles de alto risco, produzindo dados precisos e confiáveis, mas necessitando de outros ensaios clínicos randomizados prospectivos controlados de automonitorização da PA com e sem telemonitorização, em comparação com os cuidados usuais e com a MAPA, com maior tamanho de amostra e maior tempo de seguimento para confirmar os resultados da literatura sobre os efeitos clínicos no diagnóstico, controle e impacto na morbimortalidade dos pacientes hipertensos. A relação custo-benefício de cada estratégia em comparação com a outra, os impactos na utilização dos serviços, a aceitação por parte dos profissionais e por parte dos pacientes também são essenciais para permitir recomendações científicas sobre o emprego dessas novas ferramentas no cuidado diário para o diagnóstico e a conduta da hipertensão.