versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.25 no.3 Rio de Janeiro mar. 2020 Epub 06-Mar-2020
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232020253.16402018
A autopercepção do estado de saúde é um indicador subjetivo da percepção do indivíduo sobre a própria saúde, confiável e passível de ser aplicado de maneira eficaz, rápida e de baixo custo na avaliação da saúde de grupos populacionais1,2. Incorpora tanto componentes físicos, cognitivos e emocionais, como aspectos relacionados ao bem- estar e à satisfação com a própria vida3-5. Assim, tem sido largamente evidenciado como importante aspecto do bem-estar individual e coletivo6, sendo recomendado para análises da saúde das populações3.
A investigação da autopercepção de saúde tem sido utilizada amplamente em estudos populacionais, e o interesse sobre o assunto também tem crescido em pesquisas abrangendo os idosos1,4,6. Seja no cenário nacional1,3,6-11 ou internacional12-17, verifica-se um declínio no estado geral de saúde desse grupo, afetando a autopercepção. Assim, essa medida tem a capacidade de predizer, de maneira robusta e consistente, a morbimortalidade, o declínio da capacidade funcional, a inatividade e a depressão. Então, trata-se de um relevante construto para a análise das condições de saúde da população idosa, que deve ser reconhecido como instrumento útil, com consequente aplicação em ações de promoção da saúde desse grupo1-4,6,18.
A verificação da autopercepção da saúde entre idosos apresenta expressiva relevância mundial2,7-9,12-18. Em estudos internacionais, observa-se que tal desfecho tem relação com aspectos como: nível de educação superior17, ter emprego atual17, viuvez16, suporte social13, doença crônica12,13,16, depressão12,14,16, capacidade funcional12, atividades instrumentais de vida diária14, atividade física15,17, medo de cair16, síndrome da fragilidade16, obesidade17, satisfação com serviços de saúde12 e mortalidade12. E o binômio autopercepção de saúde-qualidade de vida é um consenso nessas pesquisas11-17.
Esse assunto também é importante no Brasil, que, nos últimos anos, apresenta acelerado processo de envelhecimento populacional, com impactos e desafios para os serviços de saúde. É plausível inferir que eventos frequentes entre idosos, como maior número de doenças crônicas não transmissíveis e incapacidade funcional, repercutam em uma percepção negativa da própria saúde. E, como se refere a uma avaliação subjetiva, a autopercepção da saúde possui caráter multidimensional, envolve estilos de vida, além de aspectos psicológicos, demográficos e socioeconômicos2,7-9,18,19. A heterogeneidade de fatores associados indica que a saúde dos idosos se vincula a determinantes que se aproximam do conceito ampliado de saúde3.
Ainda há vários aspectos da saúde subjetiva desse segmento etário dos brasileiros por investigar. O conhecimento dos aspectos envolvidos na percepção da saúde pode revelar os subgrupos mais vulneráveis de idosos, bem como ancorar os serviços de saúde nas iniciativas de promoção da saúde e de uma melhor qualidade de vida6. Em função do crescimento da população idosa e da aplicabilidade da autopercepção do estado de saúde como indicativo das condições gerais de saúde da população, pesquisas sobre essa temática são necessárias. Isso porque possibilitarão esclarecer, acompanhar e comparar resultados, a fim de orientar a tomada de decisão no tocante à formulação de políticas e intervenções de saúde mais apropriadas às especificidades dos idosos3.
As singularidades que abarcam a autopercepção de saúde justificam a condução de estudos locais e regionais, que possam subsidiar os gestores do setor saúde na elaboração de medidas para melhorar as condições de saúde da comunidade, especialmente a idosa, mais crescente nos últimos anos5,9. Desse modo, elucidar os fatores que influenciam na autopercepção de saúde dos idosos poderá contribuir para identificar quais dimensões precisam ser melhor ponderadas e reconhecidas pelos profissionais de saúde3. E, embora tal percepção constitua um importante indicador para a vigilância da saúde geral do idoso, ainda é pouco abordada na literatura brasileira10. Ressalta-se que há lacunas de evidências especialmente em regiões carentes e distantes dos grandes centros metropolitanos, devido à escassez de estudos epidemiológicos nesses locais, a exemplo do Norte do estado de Minas Gerais (MG), Brasil.
Na referida região, destaca-se o “Centro Mais Vida de Referência em Assistência à Saúde do Idoso (CRASI)”. Como o Brasil vivencia um acelerado processo de envelhecimento populacional, com crescentes demandas para o sistema de saúde19, a Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais implantou o Programa Mais Vida e a Rede de Atenção à Saúde do Idoso do Estado de Minas Gerais. O CRASI é um dos serviços dessa rede, conta com equipe multiprofissional e contrarreferência para as unidades básicas de saúde, sendo referência para os 96 municípios da região20. Entretanto, tal serviço, de indubitável potencial para a atenção à saúde da população idosa, é um ponto ainda recente da citada rede, se desconhecem pesquisas sobre o perfil e a autopercepção da saúde dos usuários assistidos nesse local. Essas singularidades demonstram a necessidade de investigações de caráter multidimensional, nesse cenário, que poderão ser utilizadas no estabelecimento de estratégias visando o envelhecimento saudável. Logo, justifica-se a realização da presente pesquisa, considerando a conjuntura abordada, a necessidade de se agregar novas informações epidemiológicas sobre a temática, o contexto socioeconômico e cultural do local investigado e o pioneirismo devido ao cenário - serviço de referência da atenção secundária.
Este estudo teve por objetivo verificar a prevalência e os fatores associados à autopercepção negativa da saúde em idosos assistidos em serviço de referência.
Trata-se de uma pesquisa transversal e analítica, com abordagem quantitativa. Foi realizada com idosos usuários do “CRASI Eny Faria de Oliveira”, o único serviço de referência específico para a clientela idosa na região, prestando atendimento multidimensional por meio de uma equipe multiprofissional composta por assistente social, enfermeiro, farmacêutico, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, médico geriatra, nutricionista, psicólogo e terapeuta ocupacional. Está situado na cidade de Montes Claros, Norte do estado de MG - Brasil. A cidade conta com uma população de 402.027 habitantes e representa o principal polo urbano regional.
A amostra foi obtida por amostragem de conveniência conforme a demanda atendida, durante o período de maio a julho de 2015. A média de atendimentos por equipe multiprofissional era de aproximadamente 1.450 por mês, durante o período de coleta dos dados. Foi adotado como critério de inclusão: ter idade igual ou superior a 65 anos, pois o instrumento aplicado para mensurar a fragilidade, Escala de Fragilidade de Edmonton (EFE), foi validado apenas para pessoas nessa faixa etária21. Por sua vez, foram excluídos idosos com incapacidade cognitiva, segundo a avaliação da família; déficit auditivo não corrigido que impedisse o entendimento das perguntas; bem como recusa à participação na pesquisa por parte do idoso ou de seus familiares. Os participantes eram residentes de Montes Claros e dos demais municípios da região coberta pelo referido serviço.
Os entrevistadores foram previamente treinados. Os dados foram coletados de forma primária por meio de contato direto e entrevistas, tendo os idosos como respondentes. O instrumento de coleta de dados utilizado teve como base trabalhos similares, de base populacional1,3,4,6,7,9,10,22, foi previamente testado em estudo piloto, sendo composto pelas variáveis apresentadas a seguir.
A variável dependente foi a autopercepção de saúde, apurada por meio da seguinte interrogação feita ao idoso: “Como o(a) Senhor(a) classificaria seu estado de saúde?” As opções de resposta eram: “Muito bom”, “Bom”, “Regular”, “Ruim” ou “Muito ruim”. Para análise, as respostas foram dicotomizadas e assumiu-se como percepção positiva da saúde as respostas “Muito bom” e “Bom”, e percepção negativa da saúde o somatório das respostas “Regular”, “Ruim” e “Muito ruim”, seguindo investigações prévias sobre o tema2,8-10,23.
As variáveis independentes foram agrupadas em sociodemográficas e relativas à saúde, conforme descrito a seguir:
-Variáveis sociodemográficas: sexo (masculino x feminino); idade (65-79 anos x ≥80 anos); cor da pele autorreferida (branca x outras); escolaridade, em anos de estudo (até quatro anos x > quatro anos); situação conjugal (casado ou união estável x sem companheiro); arranjo familiar (não reside sozinho x reside sozinho); condição de prestar cuidados a alguém (não x sim); renda própria (não x sim); renda familiar mensal (até um salário mínimo x > um salário mínimo). Todas essas variáveis foram averiguadas mediante o autorrelato dos participantes.
-Variáveis relativas à saúde: fragilidade (não frágil x frágil); presença de comorbidades crônicas - todas segundo autorrelato (hipertensão arterial, diabetes mellitus, incontinência urinária, doença osteoarticular, doença cardíaca, acidente vascular cerebral - categorizadas em não x sim); polifarmácia (não x sim) - considerado o uso de cinco ou mais medicamentos20; internação no último ano (não x sim); sintomas depressivos (não x sim); quedas (não x sim). Todas essas variáveis foram investigadas considerando o autorrelato dos participantes. A fragilidade e os sintomas depressivos foram avaliados por instrumentos específicos.
Para aferir a fragilidade, aplicou-se a EFE, adaptada culturalmente e validada para a língua portuguesa21. Trata-se de um instrumento que avalia nove domínios: cognição, estado de saúde, independência funcional, suporte social, uso de medicação, nutrição, humor, continência urinária e desempenho funcional, distribuídos em 11 itens com pontuação de 0 a 17. A pontuação da EFE pode variar entre 0-4, indica que não há presença de fragilidade; 5-6, aparentemente vulnerável para fragilidade; 7-8, fragilidade leve; 9-10, fragilidade moderada; e 11 ou mais, fragilidade severa. No presente estudo, para a análise dos dados, os resultados da variável foram dicotomizados em dois níveis: não frágil (escore final ≤ 6) e frágil (escore > 6)21,24.
Os sintomas depressivos foram determinados por meio da Escala Geriátrica de Depressão, que possui 15 questões. Tal instrumento também já foi validado nacionalmente, é composto por perguntas negativas/afirmativas. O resultado de seis ou mais pontos indica sintomatologia depressiva; dessa forma, o ponto de corte adotado neste trabalho foi 5/6 (não/sim - equivalente a não caso/caso)25.
Realizou-se análise bivariada, seguida de análise múltipla por Regressão de Poisson, com variância robusta. Em cada uma das análises, foram calculadas as Razões de Prevalência (RP) e foram considerados com os seus respectivos intervalos de confiança a 95%. Para a análise múltipla, avaliaram-se apenas as variáveis que mostraram associação até o nível de 20% (p < 0,20), na análise bivariada. No modelo final, após a análise múltipla, foram mantidas apenas as variáveis que se mostraram associadas até o nível de 5% (p < 0,05). As análises foram realizadas com uso do programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 17.0 (SPSS for Windows, Chicago, EUA).
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). Todos os participantes foram orientados sobre a pesquisa e apresentaram sua anuência, através da assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Participaram do estudo 360 idosos com idade igual ou superior a 65 anos. A faixa etária predominante foi entre 65 e 79 anos, que representou 75,3% da população em estudo. A média de idade do grupo foi de 75 anos (DP±7,6). A maioria era do sexo feminino (78,0%), não residia sozinha (83,0%), tinha cor da pele “outras” (62,5%), afirmou ter renda própria (97,5%) e possuía até quatro anos de estudo (85,8%).
O registro de internação hospitalar, com permanência superior a 24 horas, foi apontado por 21,0%. Aspectos de morbidade autorreferida investigados revelaram que 76,9% eram hipertensos, 54,4% sofreram queda no último ano, 43,9% referiram doenças osteoarticulares, 37,2% apresentaram sintomas depressivos, 21,9% possuíam doença cardíaca, 20,3% eram diabéticos e 10,6% tinham histórico de acidente vascular cerebral.
Quanto à autopercepção da saúde, 142 (39,4%) idosos apresentaram uma percepção positiva de sua própria saúde (“muito boa” ou “boa”); 143 (39,7%) descreveram sua saúde como “regular”; enquanto 75 (20,8%) referiram-se à própria saúde como “ruim” ou “muito ruim”. Considerando como percepção negativa as categorias “regular”, “ruim” e “muito ruim”, a prevalência de autopercepção negativa da saúde neste estudo foi de 60,5%. Porém, ao se incluir somente as categorias “ruim” e “muito ruim”, essa prevalência foi de 20,8%.
As análises bivariadas entre autopercepção de saúde negativa e demais variáveis são demonstradas nas Tabelas 1 e 2.
Tabela 1 Resultado da análise bivariada entre autopercepção negativa da saúde e variáveis sociodemográficas em idosos assistidos no Centro Mais Vida de Referência em Assistência à Saúde do Idoso, Montes Claros, Minas Gerais, Brasil, 2015 (n = 360).
Variáveis Independentes | Autopercepção Negativa da Saúde | RP | IC 95% | P | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Sim | Não | ||||||
Sexo | |||||||
Masculino | 45 | 57,0 | 34 | 43,0 | 1 | ||
Feminino | 173 | 61,6 | 108 | 38,4 | 1,08 | 0,87-1,33 | 0,45 |
Faixa etária | |||||||
65-79 anos | 170 | 62,7 | 101 | 37,3 | 1 | ||
≥ 80 anos | 48 | 53,9 | 41 | 46,1 | 0,86 | 0,69-1,06 | 0,14 |
Cor da pele autorreferida | |||||||
Branca | 92 | 68,1 | 43 | 31,9 | 1 | ||
Outras | 126 | 56,0 | 99 | 44,0 | 0,82 | 0,69-0,86 | 0,02 |
Escolaridade em anos de estudo | |||||||
Até 4 anos | 190 | 61,5 | 119 | 38,5 | 1 | ||
> 4 anos | 28 | 54,9 | 23 | 45,1 | 1,12 | 0,86-1,45 | 0,37 |
Situação conjugal | |||||||
Com companheiro | 87 | 59,6 | 59 | 40,4 | 1 | ||
Sem companheiro | 131 | 61,2 | 83 | 38,8 | 1,02 | 0,86-1,21 | 0,75 |
Arranjo familiar | |||||||
Não reside sozinho | 177 | 59,2 | 122 | 40,8 | 1 | ||
Reside sozinho | 41 | 67,2 | 20 | 32,8 | 1,13 | 0,93-1,38 | 0,24 |
Presta cuidados a alguém | |||||||
Não | 178 | 67,2 | 87 | 32,8 | 1 | ||
Sim | 40 | 42,1 | 55 | 57,9 | 0,62 | 0,48-0,80 | 0,00 |
Renda própria | |||||||
Não | 5 | 55,6 | 4 | 44,4 | 1 | ||
Sim | 213 | 60,7 | 138 | 39,3 | 0,91 | 050-1,65 | 0,75 |
Renda familiar mensal | |||||||
Até 1 salário mínimo | 74 | 64,3 | 41 | 35,7 | 1 | ||
> 1 salário mínimo | 144 | 58,8 | 101 | 41,2 | 1,09 | 0,92-1,30 | 0,31 |
Tabela 2 Resultado da análise bivariada entre autopercepção negativa da saúde e variáveis relativas à saúde em idosos assistidos no Centro Mais Vida de Referência em Assistência à Saúde do Idoso, Montes Claros, Minas Gerais, Brasil, 2015 (n = 360).
Variáveis Independentes | Autopercepção Negativa da Saúde | RP | IC 95% | P | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Sim | Não | ||||||
Fragilidade | |||||||
Não Frágil | 95 | 50,0 | 95 | 50,0 | 1 | ||
Frágil | 123 | 72,4 | 47 | 27,6 | 1,44 | 1,22-1,75 | 0,00 |
Incontinência urinária | |||||||
Não | 152 | 55,7 | 121 | 44,3 | 1 | ||
Sim | 66 | 75,9 | 21 | 24,1 | 1,36 | 1,16-1,59 | 0,00 |
Hipertensão Arterial | |||||||
Não | 56 | 61,5 | 35 | 38,5 | 1 | ||
Sim | 162 | 60,2 | 107 | 39,8 | 0,97 | 0,81-1,18 | 0,82 |
Diabetes Mellitus | |||||||
Não | 177 | 61,7 | 110 | 38,3 | 1 | ||
Sim | 41 | 56,2 | 32 | 43,8 | 0,91 | 0,72-1,13 | 0,39 |
Doença Cardíaca | |||||||
Não | 168 | 59,8 | 113 | 40,2 | 1 | ||
Sim | 50 | 63,3 | 29 | 36,7 | 1,05 | 0,87-1,28 | 0,57 |
Doença Osteoarticular | |||||||
Não | 114 | 56,4 | 88 | 43,6 | 1 | ||
Sim | 104 | 65,8 | 54 | 34,2 | 1,16 | 0,98-1,37 | 0,07 |
Acidente Vascular Cerebral | |||||||
Não | 189 | 58,7 | 133 | 41,3 | 1 | ||
Sim | 29 | 76,3 | 9 | 23,7 | 1,30 | 1,06-1,58 | 0,03 |
Polifarmácia | |||||||
Não | 138 | 57,5 | 102 | 42,5 | 1 | ||
Sim | 80 | 66,7 | 40 | 33,3 | 1,15 | 0,98-1,37 | 0,09 |
Internação no último ano | |||||||
Não | 180 | 63,4 | 104 | 36,6 | 1 | ||
Sim | 38 | 50,0 | 38 | 50,0 | 0,78 | 0,62-1,00 | 0,05 |
Sintomas depressivos | |||||||
Não | 112 | 49,6 | 114 | 50,4 | 1 | ||
Sim | 106 | 79,1 | 28 | 20,9 | 1,59 | 1,36-1,86 | 0,00 |
Quedas | |||||||
Não | 112 | 68,3 | 52 | 31,7 | 1 | ||
Sim | 106 | 54,1 | 90 | 45,9 | 0,79 | 0,67-0,93 | 0,00 |
No modelo final, os fatores associados à autopercepção negativa da saúde foram: idade na faixa de 65 a 79 anos (RP = 1; IC95% = 0,648-0,974; p = 0,027); fragilidade (RP = 1,28; IC95% = 1,07-1,54; p = 0,007); sintomas depressivos (RP = 1,40; IC95% = 1,19-1,67; p = < 0,001); e prestar cuidados a alguém (RP = 1,49; IC95% = 1,18-1,88; p = 0,001) (Tabela 3).
Tabela 3 Fatores associados à autopercepção negativa da saúde em idosos assistidos no Centro Mais Vida de Referência em Assistência à Saúde do Idoso, Montes Claros, Minas Gerais, Brasil, 2015 (n = 360).
Variáveis independentes | RP ajustada | IC95% | p valor |
---|---|---|---|
Faixa etária | |||
65-79 anos | 1 | ||
≥ 80 anos | 0,79 | 0,648-0,974 | 0,027 |
Fragilidade | |||
Não Frágil | 1 | ||
Frágil | 1,28 | 1,07-1,54 | 0,007 |
Sintomas depressivos | |||
Não | 1 | ||
Sim | 1,40 | 1,19-1,67 | <0,001 |
Presta cuidados a alguém | |||
Não | 1 | ||
Sim | 1,49 | 1,18-1,88 | 0,001 |
O presente estudo, ao considerar as categorias “regular”, “ruim” e “muito ruim”, evidenciou elevada prevalência do desfecho autopercepção negativa do estado de saúde em idosos assistidos pelo CRASI, e permitiu conhecer os fatores associados.
Os valores de prevalências desse desfecho oscilam na literatura, registrando-se os achados: variou de 12,6 a 51,9% em revisão sistemática sobre a autopercepção da saúde em idosos brasileiros3; 57,5% em município de grande porte de MG9; 51,2% em Florianópolis-SC10; 49,6% em pesquisa realizada em três cidades brasileiras7; 10,9% em Campinas-SP6. Em um centro de referência de Belo Horizonte-MG a prevalência foi superior: 70,1%26. Em outros países, igualmente se observam diversos achados: na Alemanha 62,5% dos idosos relataram autopercepção negativa do estado de saúde14; em Xangai, China, houve o valor de 56,8%12; enquanto em Santiago de Cali, Colômbia, a prevalência foi de 40,1%16.
Observa-se que a prevalência de autopercepção negativa de saúde difere de forma considerável entre os trabalhos, o que exige cautela na comparação dos resultados. Embora as perguntas sobre essa variável, assim como as opções de resposta, sejam similares entre as investigações, os achados não são unânimes. Tem-se como provável explicação o fato de que a forma de categorização não é consensual entre as pesquisas. Essas discrepâncias também podem ser devido a flutuações de curto prazo na saúde ou doença, ocasionadas por variações cíclicas relacionadas ao bem-estar. Ademais, a autopercepção de saúde tem relação com várias dimensões essenciais da saúde do idoso. E podem existir diferenças entre as regiões estudadas, quanto aos aspectos socioeconômicos, demográficos e relativos ao sistema local de saúde, os quais podem interferir no estado de saúde da população idosa e na prevalência do desfecho analisado10.
Convém comentar que essas diferenças também podem ter implicações inclusive no cenário desta investigação, que atende usuários de diversos municípios, com realidades e perfis assistenciais bem distintos entre si. Entretanto, tais divergências não significam uma menos valia do indicador, que representa uma medida bastante útil em estudos epidemiológicos, e que reflete vários aspectos do perfil de saúde, dos cuidados e da utilização dos serviços de saúde2,9.
Apesar de tais discrepâncias, os resultados relativos à autopercepção da saúde pelos idosos participantes deste estudo não foram satisfatórios. É esperado que, com o avançar da idade e as consequentes alterações fisiológicas e sociais na vida do indivíduo, ocorra uma piora no estado de saúde e, por conseguinte, na autoavaliação desse estado. Contudo, essa situação não deve ser vista como algo natural e não pode ser negligenciada. A alta prevalência de autopercepção negativa da saúde em idosos requer atenção especial, principalmente por parte dos profissionais da Atenção Primária à Saúde (APS) e dos serviços de referência, devido ao seu impacto direto e indireto na piora da saúde27.
Logo, são necessários esforços, no sentido de garantir o acesso a uma atenção à saúde de qualidade, com acompanhamento criterioso dos profissionais de saúde, atividades de lazer e promoção da saúde, bem como maior integração social. Isso também aumentaria a disposição desse segmento populacional em aderir aos protocolos terapêuticos e comportamentos de saúde que minimizem os riscos de uma evolução negativa do processo de envelhecimento8, recomendações estas também indicadas na literatura internacional12,15,17,28,29.
No que concerne aos fatores associados, este estudo evidenciou maior prevalência de autopercepção negativa da saúde entre idosos entre 65 a 79 anos, ao passo que, entre os indivíduos em idade mais avançada, essa percepção foi melhor, achado este também identificado em pesquisas realizadas na Espanha30 e em Belo Horizonte-MG23. Esses resultados sugerem um processo de adaptação ou aceitação dos idosos longevos em relação às condições de saúde consideradas próprias do envelhecimento, bem como de comorbidades, incapacidades e hospitalizações que podem lhes afetar30, conforme corrobora uma pesquisa realizada na República da Letônia, Europa28. Há uma redução nas expectativas com relação à saúde de indivíduos nas últimas fases da vida, pois o fato de terem sobrevivido até aquele estágio já representa um estado de saúde positivo. Também é possível que tal resultado tenha sofrido o efeito da sobrevivência seletiva, que decorre de apenas os indivíduos mais sadios terem sobrevivido até as faixas etárias mais avançadas e, por isso, possuírem melhores percepções sobre sua saúde4,30.
Todavia, outras investigações, no Brasil4,31, em Xangai12 e em municípios espanhóis13 indicaram que o aumento da idade esteve associado à autoavaliação ruim do estado de saúde. Sabe-se que, quanto mais a idade atinge faixas etárias longevas, mais o estado geral de saúde tende a deteriorar. Em adição, a maioria das doenças crônicas é mais comum em idades mais avançadas, prejudicando substancialmente o desfecho em questão4,30.
Os resultados desta pesquisa mostraram associação entre autopercepção negativa da saúde e o fato de possuir fragilidade, o que também foi constatado em pesquisa realizada em município de grande porte do estado de MG9 e em outra na cidade de Santiago de Cali, Colômbia16. A fragilidade é definida como um estado clinicamente reconhecível de aumento da vulnerabilidade, resultante do declínio na reserva e na função em múltiplos sistemas fisiológicos associado ao envelhecimento, comprometendo a capacidade de lidar com condições estressoras. É determinada pelo efeito combinado do envelhecimento biológico com condições crônicas, aumenta a susceptibilidade às doenças e influencia a capacidade funcional, além de prejudicar a dependência, mobilidade, estabilidade postural e lucidez do idoso32-34. Portanto, é esperado que qualquer grau de fragilidade esteja associado a uma percepção negativa da saúde9,22.
A princípio, esperava-se maior frequência da fragilidade no cenário desta investigação, já que o idoso frágil tem indicação absoluta para uma avaliação especializada, multidimensional e multidisciplinar, conforme os critérios de referenciamento para o CRASI20. Ressalta-se que a associação identificada demonstra o impacto negativo da condição de fragilidade na vida do indivíduo, o que requer maior zelo dos profissionais de saúde e intervenções para a prevenção de quadros como esse9,22,29.
O atual trabalho evidenciou outro importante achado: associação da variável desfecho com sintomas depressivos, resultado também registrado na literatura nacional1,3,8,26,27,35,36, bem como nos citados estudos realizados em Xangai12, na Alemanha14, em Santiago de Cali16 e na República da Letônia28. Salienta-se que a própria avaliação ruim sobre a própria saúde pode ser vista como um sintoma depressivo36. As condições associadas ao surgimento de sintomas depressivos podem, concomitantemente, influenciar a autopercepção negativa da saúde pelo idoso. Tais sintomas representam impacto negativo em todos os aspectos na vida do idoso, afetando também a sua vida em família e na comunidade. Ademais, estão associados a desfechos adversos, como comprometimento da saúde física e maior utilização de serviços27,35,36.
A associação constatada é um resultado consistente: os sintomas em questão constituem um dos problemas mais frequentes no campo da geriatria. Apesar da subjetividade desse aspecto, a forma como o indivíduo se vê em relação ao seu estado geral se vincula intimamente com os quadros depressivos. A pior saúde orgânica também aumenta a exposição a esses quadros, sendo que esse aumento é diretamente relacionado ao número de doenças crônicas, que foi elevado nesta pesquisa. Sendo assim, configura-se uma situação que demanda cuidados redobrados por parte da família, dos cuidadores e profissionais de saúde, devido à sua repercussão na piora da saúde do idoso. Recomenda-se a identificação precoce de casos e melhor abordagem nos serviços de APS e de referência, a fim de proporcionar diagnósticos e intervenções oportunas e precisas, além de diminuir os custos para o sistema de saúde27.
A necessidade de maior suporte aos idosos se faz pertinente, ponderando que os participantes desta pesquisa que prestam cuidados a outra pessoa também apresentaram pior autopercepção do seu estado de saúde. Atualmente, com o aumento da longevidade, há tendência de aumento no número de cuidadores idosos, então é crescente o número de idosos sendo cuidados por outros idosos. Sendo que os idosos mais jovens apresentam mais energia para cuidar dos indivíduos mais velhos37.
Possivelmente, essa também é uma realidade entre os participantes desta investigação. Todavia, a tarefa de cuidar é complexa, por isso as atividades realizadas diariamente pelo cuidador idoso a algum indivíduo dependente pode gerar sobrecarga, bem como desgaste da saúde física e mental38,39. Logo, acredita-se que privilegiar a avaliação da sobrecarga dos idosos cuidadores, e incluí-los em planos de cuidados com ações específicas de apoio, pode auxiliar tanto o cuidador como quem é cuidado por este38.
Por fim, informa-se que o presente trabalho apresenta limitações. Ele é derivado de um estudo transversal, não sendo possível concluir a existência de associação causal entre a autopercepção negativa da saúde e os fatores associados, o que seria factível em desenhos longitudinais. As variáveis foram aferidas por informação do próprio idoso, e, embora esse seja um procedimento válido e utilizado em diversos estudos, pode ter sido comprometido pela memória e pela baixa escolaridade. Além disso, tratou-se de amostra de conveniência, circunscrita a um centro de referência, em que a validade externa fica limitada e os resultados podem ser extrapolados apenas para população e cenário semelhantes.
A despeito dessas limitações, esta pesquisa teve amostra suficiente para o ajuste dos modelos de regressão aos principais fatores de confusão de interesse. Possui caráter inédito, posto que o cenário foi um centro de referência, enquanto os demais trabalhos são em sua maioria de base populacional; os resultados e as associações registradas foram corroborados pela literatura. E, à luz do conhecimento gerado neste trabalho, profissionais e gestores podem planejar medidas promotoras de melhorias na atenção à saúde do idoso, mais apropriadas ao contexto de vida e saúde desse grupo.
Este estudo evidenciou elevada prevalência de autopercepção negativa do estado de saúde entre os idosos assistidos em um centro de referência. Identificou-se que estar na faixa de 65 a 79 anos, apresentar fragilidade, possuir sintomas depressivos e prestar cuidados a alguém se mantiveram como fatores associados a essa prevalência. Esses achados sinalizam a necessidade de ações efetivas de promoção da saúde e cuidados mais específicos, direcionados principalmente às necessidades daqueles idosos que autoavaliaram negativamente o seu estado de saúde e se enquadraram nos referidos fatores.