versão impressa ISSN 1808-8694versão On-line ISSN 1808-8686
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.82 no.3 São Paulo mai./jun. 2016
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2015.05.007
Mucopolissacaridose (MPS) é uma doença hereditária de depósito lisossômico, decorrente da deficiência de enzimas que atuam no metabolismo dos glicosaminoglicanos (GAGs). O acúmulo progressivo de GAGs provoca retardo importante no crescimento, deformidades esqueléticas, perda auditiva, mobilidade articular deficiente e dismorfismo facial. De acordo com a deficiência das 11 enzimas conhecidas, MPS possui sete subtipos (MPS I, MPS II, MPS III, MPS IV, MPS VI, MPS VII, MPS IX). Embora a incidência de MPS varie quando se considera seus subtipos, estima-se que sua incidência global seja de 1/25.000 habitantes.1-3
Em pacientes com MPS, observa-se perda auditiva por diversas razões. A perda auditiva condutiva (PAC) pode ocorrer devido a infecções do trato respiratório superior e por otite média, ou por alguma deformidade da cadeia ossicular. Acredita-se que a perda auditiva sensorioneural (PAS) seja decorrente do acúmulo de GAGs na cóclea, no nervo auditivo e no tronco cerebral. Em muitos pacientes, também é possível observar perda auditiva do tipo misto, em que coexistem sintomas de perda auditiva condutiva e sensorioneural. Em casos de PAC relacionada à efusão da orelha média, frequentemente, o tratamento consiste na colocação de um tubo de ventilação, mas em pacientes com PAS é aconselhável o uso de próteses auditivas.4-7 O diagnóstico precoce das perdas auditivas tem grande importância em termos de intervenções imediatas em pacientes com MPS, bem como nos demais pacientes com tais afecções.8,9
A finalidade de nosso estudo foi determinar o tipo e o grau da perda auditiva e os achados timpanométricos de pacientes com MPS encaminhados à nossa clínica com suspeita de perda auditiva.
Foram incluídos no estudo 9 pacientes em acompanhamento clínico por MPS, encaminhados ao nosso departamento com suspeita de perda auditiva, (aprovação da Comissão de Ética nº GÜKAEK-461). O exame otológico foi realizado por um otorrinolaringologista. Foram compiladas informações relacionadas às queixas otorrinolaringológicas de cada paciente e a seu tratamento, sobre infecções da orelha média, otorréia, zumbido, tontura, problemas de tímpano, adenoidectomia, inserção de tubo de ventilação e uso de prótese auditiva. Em seguida ao exame otorrinolaringológico, foram realizados avaliações imitanciométricas, e testes audiométricos apropriados para a idade de cada paciente, eficiência física e mental, determinando-se os limiares de condução aérea e óssea em 250, 500, 1.000, 2.000, 4.000, 6.000 e 8.000 Hertz (Hz).
Os níveis de perda auditiva foram determinados pela obtenção da média dos limiares tonais por via aérea em 0,5; 1; 2; e 4 kHz, de acordo com os intervalos fornecidos na tabela 1.
Tabela 1 Grau de perda auditiva (dB HL)
Grau de perda auditiva | Faixa de perda auditiva (dB NA) |
Normal | -10-15 |
Muito leve | 16-25 |
Leve | 26-40 |
Moderado | 41-55 |
Moderadamente grave | 56-70 |
Grave | 71-90 |
Profundo | 90+ |
A perda auditiva (PA) foi classificada em três grupos: condutiva, sensorioneural e mista. Nos casos de PAC, quando os limiares de condução óssea fossem < 20 dB, foi requerida uma diferença média entre os limiares de condução aérea e óssea (gap aéreo-ósseo) > 15 dB em 0,5; 1 e 2 kHz; nas perdas auditivas do tipo misto, aceitamos limiares de condução óssea ≥ 20 dB, e gap aéreo-ósseo médio > 15 dB em 0,5; 1, e 2 kHZ; e na perda auditiva sensorioneural (PAS), aceitamos um gap aéreo-ósseo médio < 15 dB em 0,5; 1, e 2 kHz.
Na avaliação timpanométrica, foram utilizados tons de sonda de 225 Hz. Os tipos de timpanograma foram avaliados de acordo com os valores que se encontram na tabela 2.
Tabela 2 Tipos de timpanograma (daPa)
Tipo de timpanograma | Intervalos de pressão (daPa) |
Tipo A | +50-(-150) |
Tipo B | -400 |
Tipo C | -150-(-399) |
Na análise estatística, utilizamos o programa SPSS versão 16.0 (SPSS Inc., Chicago, IL, EUA). Para cálculo das médias e desvios padrão (DP) da idade, empregamos estatística descritiva.
Em um total de nove pacientes com MPS, quatro eram meninas (44,44%) e cinco eram meninos (55,55%); a média de idade foi de 5,66 ± 2,73. Três pacientes foram diagnosticados com MPS VI (33,33%), três com MPS I (33,33%), um com MPS III (11,11%) e dois com MPS IV (22,22%). Os pacientes MÖ e EÖ eram irmãos; İK e İK 2 eram gêmeos. Os cinco demais pacientes não tinham relação de parentesco. A tabela 3 lista o grau e o tipo de perda auditiva e os achados timpanométricos. Seis orelhas apresentavam perda auditiva condutiva (33,33%) (PA muito leve - uma orelha; PA leve - uma orelha; PA moderada - duas orelhas; e PA moderadamente grave - duas orelhas); 12 orelhas exibiam perda auditiva mista (66,66%) (PA leve - duas orelhas; PA moderada - quatro orelhas; PA grave - cinco orelhas; e PA profunda - uma orelha). Além disso, 14 orelhas exibiam timpanograma do tipo B (77,77%); três orelhas, tipo C (16,66%); e uma orelha, tipo A (5,55%). E.Ç., B.E.B. e M.S.E. tiveram inserção bilateral de tubos de ventilação (TV). Embora os demais pacientes tenham sido aconselhados à colocação de TV, esse procedimento não foi realizado por falta de consentimento familiar. Com exceção de M.Ö. e de B.E.B., as famílias também não adotaram o uso de próteses auditivas (embora todos os pacientes tenham sido orientados à sua utilização) e nem retornaram regularmente para acompanhamento.
Tabela 3 Achados audiométricos em pacientes com MPS
Paciente | Idadea | Diagnóstico | Achados timpanométricos | Tipo de perda auditiva | Grau de perda auditiva | ||||||
Orelha direita | Orelha esquerda | Direita | Esquerda | Direita | Esquerda | ||||||
MÖ | 9 | MPS VI | Tipo C | Tipo A | Condutivo | Condutivo | Insignificante | Leve | |||
EÖ | 4 | MPS VI | Tipo C | Tipo C | Misto | Misto | Moderado | Moderado | |||
İK | 3 | MPS I | Tipo B | Tipo B | Misto | Misto | Grave | Grave | |||
İK2 | 3 | MPS I | Tipo B | Tipo B | Misto | Misto | Grave | Grave | |||
EÇ | 9 | MPS VI | Tipo B | Tipo B | Condutivo | Condutivo | Moderado | Moderadamente grave | |||
SD | 8 | MPS IV | Tipo B | Tipo B | Misto | Misto | Moderado | Leve | |||
BEB | 6 | MPS I | Tipo B | Tipo B | Condutivo | Condutivo | Moderado | Moderadamente grave | |||
MSE | 7 | MPS IV | Tipo B | Tipo B | Misto | Misto | Moderado | Moderado | |||
YCE | 2 | MPS III | Tipo B | Tipo B | Misto | Misto | Severo | Profundo |
a Idade em anos.
Em pacientes com MPS (tabela 4), o início do tratamento nos seus estágios iniciais é extremamente importante, em termos de prognóstico da doença. No entanto, devido ao surgimento tardio dos sintomas, é possível que o diagnóstico definitivo seja estabelecido por volta dos 3-4 anos de idade. No acompanhamento dos estágios de tratamento de pacientes com MPS, otorrinolaringologistas e audiologistas desempenham papel significativo no funcionamento das equipes multidisciplinares. Otite média serosa recorrente e perda auditiva nesse grupo de doenças são as razões da necessidade de seguimentos melhores e mais prolongados. Em geral, a perda auditiva pode ser notada em diversos tipos e graus em pacientes com MPS.10-13 Geralmente, em pacientes com MPS as perdas auditivas condutivas (PAC) ocorrem mais frequentemente devido à ocorrência de efusão crônica e de disfunção da trompa de Eustáquio; entretanto, a incidência e causa de PAS ainda não está claramente determinada.10
Tabela 4 Limiar de condução aérea e óssea de pacientes com MPS (dB NA)
Limiar médio de condução aérea (500-4.000 Hz) | Limiar médio de condução óssea (500-4.000 Hz) | |||
Paciente | Orelha direita | Orelha esquerda | Orelha direita | Orelha esquerda |
MÖ | 22,5 | 26,25 | 6,25 | 6,25 |
EÖ | 65 | 57,5 | 30 | 30 |
İK | 70a | 35b | ||
İK2 | 70a | 45b | ||
EÇ | 46,25 | 60 | 12,5 | 12,5 |
SD | 47,5 | 38,75 | 18,75 | 22,5 |
BEB | 51,25 | 56,25 | 15 | 15 |
MSE | 43,75 | 45 | 18,75 | 18,75 |
YCE | 81,25 | 90 | 22,5 | 22,5 |
aOs limiares de condução aérea foram determinados em campo livre.
bOs limiares de condução óssea foram determinados de acordo com os limiares de reconhecimento de fala.
Embora tenham sido observadas perdas auditivas condutivas e de tipo misto nos casos em estudo, não foi detectada PAS, em concordância com a literatura. Nos estudos da literatura os autores têm observado que a incidência de perda auditiva mista é maior, e que tem relação com a idade. Além disso, embora a perda auditiva condutiva seja mais frequente em idades mais jovens e em pacientes diagnosticados mais precocemente, é possível encontrar perda auditivas mistas, sendo que o percentual atinge entre 33-71% com o aumento da idade. Em nossa casuística, determinamos o grau de perda auditiva com gradações desde "muito leve" até "grave". Considera-se que essa diferença ocorra devido ao acúmulo excessivo de GAG nos dutos cocleares, estria vascular e nervo coclear, o que impediria um funcionamento eficiente dessas estruturas.14 Ainda em relação aos nossos pacientes, e levando em conta a literatura, a incidência de timpanogramas dos tipos B e C foi considerada alta. Segundo Yu Lin et al., esse percentual pode alcançar 70%; em nosso estudo, as incidências de timpanograma dos tipos B e C ficaram em 77,77% e 16,66%, respectivamente. Também é aconselhável a colocação de um TV em casos com achados clínicos como os que ocorreram em nosso estudo. Infelizmente, a maioria dos nossos pacientes negligenciou seu tratamento, porque as famílias rejeitaram o procedimento cirúrgico. Naqueles casos em que foi aconselhado o uso de próteses auditivas, a inadequação socioeconômica das famílias gerou dificuldades no comparecimento às consultas de seguimento e na obtenção dos mesmos; e, além disso, o fato de que vários pacientes viviam em cidades diferentes foi fator impeditivo para o seguimento adequado das crianças.
Considerando a alta incidência de perda auditiva em pacientes com MPS, o diagnóstico deve ser realizado em seus estágios iniciais. Uma vez diagnosticada, o tratamento necessário da perda auditiva deve ser imediatamente iniciado; uma vez que com isso, a qualidade de vida desses pacientes tenderá a melhorar. No entanto, devemos considerar que isso apenas será possível se forem implementados seguimentos periódicos e sistemáticos, com intervenções multidisciplinares.