versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.112 no.3 São Paulo mar. 2019 Epub 07-Jan-2019
https://doi.org/10.5935/abc.20190007
Nas últimas duas décadas, um novo perfil epidemiológico da Doença de Chagas (DC) foi registrado na Amazônia brasileira, onde a transmissão oral foi indicada como responsável pelo aumento dos casos agudos. No estado do Amazonas, foram registrados cinco surtos da doença desde 2004. As manifestações cardíacas nesses casos podem ser caracterizadas por miocardite difusa, com alteração nos resultados eletrocardiograma (ECG) e ecocardiografia transtorácica (ETT).
avaliar parâmetros cardíacos em pacientes autóctones com DC na fase aguda e em um ano ou mais após tratamento, e avaliar as variáveis demográficas associadas com a presença de alterações cardíacas.
Avaliamos os pacientes diagnosticados com DC aguda por método direto parasitológico e exame sorológico (IgM) entre 2007 e 2015. Os pacientes foram tratados com benzonidazol e submetidos à ECG e ETT antes e após tratamento. Assumimos um intervalo de confiança de 95% (p < 0,05) para todas as variáveis analisadas.
Observamos 63 casos de DC aguda em que a transmissão oral ocorreu em 75% dos casos. Alterações cardíacas foram encontradas em 33% dos casos, com maior frequência de repolarização ventricular (13%), seguida de derrame pericárdico (10%), e bloqueio do ramo direito e bloqueio fascicular anterior esquerdo (2%). O acompanhamento foi realizado com 48 pacientes com ECG e 25 com ETT por um período médio de 15,5±4,1 meses após o tratamento. Desses pacientes, observou-se normalização das alterações eletrocardiográficas em 8% dos pacientes, e 62,5% continuaram com os parâmetros normais. Todos os pacientes apresentaram resultados da ETT normais no período pós-tratamento. Quanto às variáveis demográficas, os casos isolados apresentaram mais alterações cardíacas em comparação aos casos de surtos (p=0,044) e os casos identificados na mesorregião do Amazonas Central (p = 0,020).
Apesar de as alterações cardíacas não terem sido frequentes na maioria da população do estudo, é necessária uma avaliação contínua da dinâmica clínica-epidemiológica da doença na região para se estabelecer medidas preventivas.
Palavras-chave: Doença de Chagas/epidemiologia; Ecosistema Amazônico; Trypanosoma cruzi; Cardiomiopatia Chagásica/fisiopatologia
In the past two decades, a new epidemiological profile of Chagas’ disease (CD) has been registered in the Brazilian Amazon where oral transmission has been indicated as responsible for the increase of acute cases. In the Amazonas state, five outbreaks of acute CD have been registered since 2004. The cardiac manifestations in these cases may be characterized by diffuse myocarditis, with alteration in the electrocardiogram (ECG) and transthoracic echocardiogram (TTE).
To perform a cardiac evaluation in autochthonous patients in the acute phase and at least one year after submitted to treatment for acute CD and evaluate the demographic variables associated with the presence of cardiac alterations.
We evaluated patients diagnosed with acute CD through direct parasitological or serological (IgM) methods from 2007 to 2015. These patients were treated with benznidazole and underwent ECG and TTE before and after treatment. We assumed a confidence interval of 95% (CI 95%, p < 0.05) for all variables analyzed.
We observed 63 cases of an acute CD in which oral transmission corresponded to 75%. Cardiac alterations were found in 33% of the cases, with a greater frequency of ventricular repolarization alteration (13%), followed by pericardial effusion (10%) and right bundle branch block and left anterior fascicular block (2%). The follow-up occurred in 48 patients with ECG and 25 with TTE for a mean period of 15.5 ± 4.1 months after treatment. Of these, 8% presented normalization of the cardiac alterations in ECG, 62.5% remained with the normal exams. All of the patients presented normal results in TTE in the post-treatment period. As for the demographic variables, isolated cases presented more cardiac alterations than outbreaks (p = 0.044) as well as cases from Central Amazonas mesoregion (p = 0.020).
Although cardiac alterations have not been frequent in most of the studied population, a continuous evaluation of the clinical-epidemiological dynamics of the disease in the region is necessary in order to establish preventive measures.
Keywords: Chagas Disease/epidemiology; Amazoniany Ecosystem; Trypanosoma cruzi; Chagas Cardiomiopathy/physiopathology
A Doença de Chagas (DC) é uma doença infecciosa emergente, causada pelo Trypanosoma cruzi, descoberta em 1909 pelo médico Carlos Chagas, que descreveu suas manifestações clínicas e características morfológicas do parasita.1 Estima-se que aproximadamente 75 milhões de pessoas encontram-se em risco de adquirir a doença, e que 8 milhões estejam infectados pelo parasita em todo o mundo.2
A DC apresenta duas fases clínicas - uma fase aguda e uma fase crônica. Na DC aguda, sintomas clínicos não específicos podem retardar o diagnóstico e o tratamento da doença, o que representa um problema de saúde pública. Em alguns casos, a ausência de sintomas pode levar a uma forma crônica indeterminada da doença, ou posteriormente progredir para a forma digestiva, cardíaca ou mista.3,4 A infecção por via oral é a mais provável de causar sintomas e aumentar a taxa de mortalidade. Ainda, pode levar a alterações cardíacas e o sintoma mais preocupante dessa fase, a miocardite difusa com alterações nos resultados do eletrocardiograma (ECG) de ecocardiografia transtorácica (ETT).5,6
Devido às características genéticas do parasita supostamente associadas com manifestações clínicas da DC, em 1998, Tibayrenc7 propôs uma nova classificação para a diversidade genética do parasita. Em uma revisão publicada em 2009, um consenso estabeleceu uma divisão em seis genótipos, denominados Unidades Discretas de Tipagem (DTU, do inglês Discrete Typing Units”) TcI-TVI.8
Muitos casos agudos da doença foram documentados na Amazônia brasileira, sendo a maior parte deles concentrados nos estados do Pará e do Amazonas,9-14 com os primeiros casos registrados nesses estados em 1968 e 1980, respectivamente.15,16 Posteriormente, microepidemias de casos agudos foram relatados, e a maioria deles associados com a ingestão de alimentos contaminados, tais como os frutos do açaí e da bacaba, e carnes de animais silvestres.3,17,18 Nas últimas duas décadas, inúmeros casos agudos relacionados à transmissão oral foram registrados, com seis surtos no estado do Amazonas.5,19-21 As DTU do T.cruzi relacionada a esses casos foram TcIV e Z3 (TcIII/TcIV).21,22
Apesar de a DC ser amplamente estudada na região da Amazônia brasileira, no estado do Amazonas, ainda existem poucos dados sobre o perfil epidemiológico da DC aguda e, mais importante, poucos estudos sobre manifestações cardíacas da doença e estudos incluindo o acompanhamento pós-tratamento desse grupo de pacientes. Assim, o objetivo deste estudo foi descrever as alterações cardíacas em pacientes autóctones que apresentaram DC após um ano ou mais do tratamento com benzonidazol.
Este foi um estudo longitudinal de pacientes atendidos no Hospital Universitário Francisca Mendes para acompanhamento cardíaco. Todos os participantes tinham um diagnóstico confirmado de DC aguda pela Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado, de janeiro de 2007 a julho de 2015.
Os pacientes foram incluídos considerando os seguintes critérios - um resultado positivo no teste laboratorial, no teste parasitológico direto (esfregaço sanguíneo ou o xenodiagnóstico), ou reatividade no teste imunológico (IgM anti-T.cruzi) (ensaio de imunoabsorção enzimática - ELISA e/ou teste de imunofluorescência direta - IFA), além do histórico epidemiológico (como ser originário da região da Amazônia brasileira). Pacientes que mencionaram alguma viagem para outra região do Brasil ou para outro país, pacientes que não aderiram ao tratamento e aqueles com tratamento incompleto foram excluídos do estudo.
Exames cardiológicos, ECG de 12 derivações e ETT foram analisados antes e um ano ou mais após o final do tratamento. Para obtenção de dados pré-tratamento (ECG, ETT, dados demográficos, epidemiológicos e clínicos), realizou-se uma análise retrospectiva de todos os casos registrados no sistema de prontuários médicos eletrônicos (iDoctor®) entre 2007 e 2015. Durante o período pós-tratamento, realizamos uma avaliação prospectiva dos pacientes, incluindo avaliação clínica, e realização ECG e ETT.
A ECG com 12 derivações foi feita utilizando o programa Wincardio (Micromed) e o ETT realizado utilizando o aparelho Vivid 3, GE, seguindo-se as recomendações da Sociedade Americana de Ecocardiografia.
Todos os pacientes foram tratados com benzonidazol (Rochagan®), 5-7 mg/kg por 60 dias, segundo o II Consenso Brasileiro em Doença de Chagas de 2015.23 Qualquer alteração cardíaca no ECG ou ETT foi considerada para descrição das alterações cardíacas na fase aguda da DC.
Os dados clínicos e epidemiológicos foram organizados usando o programa Excel 2016, e analisados usando o programa Stata/MP 13,0. Para as variáveis categóricas, foi utilizado o teste exato de Fisher e os resultados apresentados em tabelas, como frequências absolutas e relativas, seguidas dos valores-p correspondentes. A distribuição das variáveis contínuas foi testada quanto à normalidade pelo teste de Shapiro-Wilk; para aquelas com distribuição normal, foi usado o teste t de Student não pareado, e os resultados apresentados em média ± DP, e o teste de soma dos postos de Wilcoxon (Mann-Whitney) usados para dados sem distribuição normal, e apresentados como mediana e intervalos interquartis. Assumiu-se um intervalo de confiança de 95% (IC95%, p < 0,05) para todos os testes estatísticos.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Amazonas (número 923.701/2014), e realizado de acordo com a Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde.
Durante o período do estudo, 63 pacientes com diagnóstico confirmado de DC foram avaliados, todos com origem no estado do Amazonas. Do total de diagnósticos, 98% foi realizado pelo método parasitológico direto esfregaço sanguíneo. A idade mediana foi 20 (16-44) anos, e 60% dos participantes eram do sexo masculino. Quarenta e quatro (70%) dos casos fizeram parte de algum surto registrado entre 2007 e 2015, outros 19 casos distribuídos entre casos agudos isolados associados com transmissão oral e transmissão vetorial clássica. Houve mais casos registrados de alterações cardíacas nos casos isolados que aqueles registrados em surtos (48% vs. 21%, p = 0,044).
Uma ampla distribuição de casos agudos está melhor ilustrada na Figura 1, na qual pode-se perceber que a maioria dos municípios da mesorregião da Amazônia Central é afetada. Por outro lado, a mesorregião sudoeste do Amazonas concentrou a maior frequência dos casos agudos, correspondendo a 33 (53%) dos casos, sendo que 31 desses fizeram parte de surtos ocorridos em Carauari em 2011 e 2015. Alterações cardíacas estiveram presentes em 69% da mesorregião do Amazonas Central, atingindo significância estatística (p = 0,020).
Em relação às linhagens do T.cruzi, foi possível isolá-las em 35 casos (56%), dos quais 22 (63%) foram Z3 (TcIII/TcIV), 11 (31%) TcIV e 2 (6%) TcI; ambos Z3 (TcIII/TcIV) e TcIV estiveram associados com transmissão oral aguda registrada em surtos (Tabela 1).
Variável | Grupo | |||
---|---|---|---|---|
Total (n = 63) | Alterações cardíacas (n = 21) | Sem alterações cardíacas (n = 42) | Valor de p | |
Idade (y) | 29 [16-44] | 38 [15-44] | 26,5 [17-44] | 0,694* |
Sexo | 0,588† | |||
Masculino | 38 (60%) | 14 (67%) | 24 (57%) | |
Feminino | 25 (40%) | 7 (33%) | 18 (43%) | |
Transmissão | 0,364† | |||
Oral | 47 (75%) | 14 (67%) | 33 (79%) | |
Vetor | 16 (25%) | 7 (33%) | 9 (21%) | |
Caso | 0,04† | |||
Surto | 44 (70%) | 11 (52%) | 33 (79%) | |
Isolado | 19 (30%) | 10 (48%) | 9 (21%) | |
Origem (Mesorregião) | 0,020† | |||
Amazonas Central | 13 (21%) | 9 (43%) | 4 (10%) | |
Norte do Amazonas | 15 (24%) | 3 (14%) | 12 (29%) | |
Sudoeste do Amazonas | 33 (53%) | 9 (43%) | 24 (59%) | |
Amazonas do Sul | 1 (2%) | - | 1 (2%) | |
T. cruzi DTU | 0,355† | |||
TcI | 2 (3%) | 2 (9%) | - | |
TcIV | 11 (17%) | 2 (9%) | 9 (21%) | |
Z3 (TcIII/TcIV) | 22 (35%) | 9 (43%) | 13 (31%) | |
ND | 28 (44%) | 8 (38%) | 20 (48%) | |
Follow-up period (y) | 15,5 4,1 | 14 ± 4 | 16,4 ± 4,1 | 0,050** |
Os dados são expressos como mediana [IQ25% -IQ75%] e média ± SD; Entre parênteses estão a porcentagem do grupo total; ND: não descrito; Obs.: Não foi possível obter a proveniência de um caso.
*Teste de Wilcoxon rank-sum (Mann-Whitney).
**Teste t não pareado (teste t de Student).
†Teste exato de Fisher.
Observamos 33% de alteração cardíaca, de qualquer tipo, na população de nosso estudo. Todos os 63 pacientes haviam se submetido a um ECG antes do início do tratamento com benzonidazol. Desses, 44 (70%) apresentaram resultados normais. Ainda, foram comuns anormalidades tais como mudanças de repolarização ventricular. Em relação aos resultados do ETT, 87% apresentaram parâmetros normais (Tabela 2). Apesar de a maioria da nossa amostra ter apresentado exames normais, vale destacar a morte de uma criança de três meses de idade por condição cardíaca grave.
Variável | Grupo (n = 63) | ||
---|---|---|---|
Pré-tratamento | Pós-tratamento | ||
Eletrocardiograma | (n = 63) | (n = 48) | |
Alteração da reporalização ventricular | 8 (13%) | 4 (8%) | |
Bloqueio fascicular anterior esquerdo | 1 (2%) | 1 (2%) | |
Bloqueio do ramo direito | 1 (2%) | 1 (2%) | |
Bloqueio do ramo direito + bloqueio fascicular anterior esquerdo | 2 (3%) | 2 (4%) | |
Baixa tensão QRS | 2 (3%) | - | |
Bradicardia | - | 3 (6%) | |
Bloco do ramo direito incompleto | 1 (2%) | 2 (4%) | |
Extrassístoles ventriculares | 1 (2%) | 1 (2%) | |
Fibrilação atrial | 1 (2%) | - | |
Taquicardia | 2 (3%) | - | |
Normal | 44 (70%) | 34 (71%) | |
Ecocardiograma | (n = 31) | (n = 25) | |
Derrame pericárdico | 3 (10%) | - | |
Disfunção ventricular esquerda | 1 (3%) | - | |
Normal | 27 (87%) | 25 (100%) |
Os dados são expressos como frequência e, entre parênteses, a porcentagem correspondente para cada grupo.
A avaliação dos parâmetros cardíacos de acompanhamento foi realizada um ano ou mais após o final do regime terapêutico estabelecido, com uma média de 15,5 meses. Foi possível reavaliar 48 pacientes submetidos à ECG e 25 à ETT. Entre os 48 pacientes com ECG avaliados, 35 apresentaram resultados normais no período pré-tratamento, 30 (86%) continuaram com resultados normais, e 5 (14%) apresentaram alterações no período pós-tratamento. Quatro (16%) dos 25 pacientes reavaliados apresentaram anormalidades na ETT, e todos se recuperaram completamente após o tratamento (Tabelas 3 e 4).
Pré-tratamento ECG | Pós-tratamento ECG | |||||
---|---|---|---|---|---|---|
Normal | % | Alterado | % | Total | ||
Normal | 30 | 62,5 | 5 | 10,4 | 35 | |
Alterado | 4 | 8,3 | 9 | 18,7 | 13 | |
Total | 34 | - | 14 | - | 48 |
ECG: eletrocardiograma.
Pré-tratamento ETT | Pós-treatment ETT | |||||
---|---|---|---|---|---|---|
Normal | % | Alterado | % | Total | ||
Normal | 21 | 86,9 | 0 | - | 21 | |
Alterado | 4 | 13,1 | 0 | - | 4 | |
Total | 25 | - | 0 | - | 23 |
ETT: ecocardiografia transtorácica
O perfil da DC na região amazônica brasileira mudou nos últimos anos, sendo a maioria casos agudos, com transmissão oral. Uma peculiaridade da região é a distância entre os municípios em que ocorreram os surtos e a capital do estado, Manaus. Assim, a maioria dos pacientes não foram capazes de viajar e passarem por avaliação cardíaca completa.
Durante o período do estudo (2007-2015), foram registrados quatro dos seis surtos ocorridos no Amazonas, com um total de 85 casos. Todos os casos estavam associados à transmissão oral por consumo de açaí. Na maioria dos casos, os indivíduos não apresentaram alterações cardíacas durante a fase aguda; portanto, acredita-se que os casos em nossa região apresentem sintomas mais leves que possam estar associados com as DTU de T.cruzi presentes na Amazônia brasileira.
Observamos que somente um paciente foi diagnosticado por teste imunológico (IgM anti-T.cruzi), enquanto todos os demais tiveram seus diagnósticos confirmados por esfregaço de sangue. Tal fato pode estar relacionado à grande qualificação de microscopistas e de todos os profissionais da saúde, funcionários do Laboratório de Malária da Função de Medicina Tropical. Considerando que, na maioria dos pacientes que chegam com síndrome febril, a principal suspeita é malária, os profissionais são constantemente treinados para a identificação do Tripanosoma cruzi, o que permite melhor vigilância dos casos agudos de DC no estado.24
Em nossa população, entre os casos agudos que tiveram a linhagem de T. cruzi identificada, a TcIV esteve presente em pacientes de surtos. Esse fato é melhor descrito por Monteiro et al.21 Apesar de TcI e Z3 (TcIII/TcIV) também terem sido identificadas em humanos,22 a patogenicidade dessas linhagens ainda não é bem conhecida, mas acredita-se que seja causa da baixa morbidade comparada à das áreas endêmicas em que outra linhagem de T.cruzi, a TcII, está presente.25
As mudanças cardíacas durante a fase aguda terem ocorrido em pequenas proporções (33%), mas destacaram a importância de uma investigação contínua da cardiopatia chagásica crônica, uma vez que não está claro se o tratamento com benzonidazol pode de fato eliminar a chance de o paciente não progredir para uma condição crônica da doença.6,26
Ao analisar as variáveis demográficas com a presença de qualquer alteração cardíaca causada pela infecção por T.cruzi, pode-se observar um resultado estatisticamente significativo para a mesorregião do Amazonas Central (p = 0,020) e para os casos isolados (p = 0,044). A frequência mais alta de cardiopatia na mesorregião Central poderia ser atribuída à localização da capital do estado, Manaus; no entanto, o número de casos de cardiopatia em Manaus foi muito baixo (n = 4).
Ainda, a maior frequência de cardiopatia relatada nos casos agudos isolados (48%) pode sugerir uma associação da transmissão oral ou da transmissão vetorial clássica com a linhagem do protozoário, uma vez que a TcI já foi encontrada em todos os casos isolados da DC e associada à DC crônica e cardiomiopatia chagásica,27,28 e a TcIV identificada em surtos.21 No entanto, não podemos afirmar que essa associação seja verdadeira, considerando o pequeno número de pacientes que tiveram a linhagem do parasita identificada.
Durante a avaliação cardíaca na fase aguda, a maioria dos pacientes apresentaram resultados normais tanto da ECG como da ETT. No período pós-tratamento, observamos que a maioria dos pacientes evoluíram para a normalidade nos exames cardiológicos. Houve boa recuperação no caso de derrame pericárdico, porém alterações de repolarização ventricular permaneceram em quatro pacientes mesmo após o tratamento. Essa indefinição foi já destacada em outros estudos de acompanhamento de casos agudos, uma vez que ainda se conhece um parâmetro preditor de cura para a doença.6,13,14
Embora casos de alterações cardíacas no estado do Amazonas não sejam frequentes, o conhecimento acerca de toda dinâmica da transmissão e de possíveis influências é ainda escasso. Casos agudos registrados no estado vizinho Pará apresentaram envolvimento cardíaco grave, com três mortes por miocardite, insuficiência renal e tamponamento cardíaco.19 Em um estudo conduzido por Ferreira et al.,29 na região do Amazonas, foram relatados cinco casos (dois do Pará e três do Amazonas), todos com alterações cardíacas revertidas e nenhuma morte. No presente estudo, um óbito foi registrado de uma criança de três meses de idade, que apresentou choque cardiogênico e meningoencefalite devido à transmissão vetorial com a presença de chagoma, um inchaço cutâneo no local da inoculação. Essa diferença marcante sugere que as manifestações clínicas e a mortalidade são menores no estado do Amazonas, por razão ainda indefinida.
Este foi um estudo longitudinal unicêntrico, envolvendo pequena população, e a maioria vivendo no interior do estado. Esses fatores não permitiram um acompanhamento completo, contribuindo para uma perda de pacientes. Além disso, foi possível a identificação das linhagens do parasita somente daqueles pacientes recrutados mais recentemente no estudo, o que limitou a caracterização genética.
Em nosso estudo, demonstramos a presença de alterações cardíacas em 33% dos pacientes na fase aguda da DC. Apesar de a maioria dos casos estar presentes na mesorregião sudoeste, a maior frequência dessas alterações foi detectada na mesorregião do Amazonas Central e casos agudos isolados.
Apesar de as alterações cardíacas estarem presentes em baixa frequência durante a fase pré-tratamento, essa condição clínica sugere a existência de um novo perfil epidemiológico no estado do Amazonas, que difere do perfil presente nos estados vizinhos. É possível que esse cenário de mudança esteja associado com a linhagem do T.cruzi. A maioria dos pacientes acompanhados tiveram um desfecho satisfatório, mas em alguns, as alterações cardíacas persistiram ou mesmo evoluíram posteriormente.
Portanto, é evidente a necessidade de se reforçarem ações de vigilância para o diagnóstico e tratamento imediatos, e para o acompanhamento contínuo, de longo prazo, da condição cardíaca dos pacientes com DC aguda a fim de se estabelecerem medidas preventivas e melhorar o prognóstico dessa população em nossa região.