versão On-line ISSN 2317-6431
Audiol., Commun. Res. vol.19 no.1 São Paulo jan./mar. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/S2317-64312014000100007
O traumatismo cranioencefálico (TCE) decorre, basicamente, de agressões físicas sobre o crânio e seu conteúdo, sendo as lesões provocadas pelo impacto e pelo movimento de aceleração/desaceleração do cérebro dentro da caixa craniana, podendo ser primárias e/ou secundárias ( 1 ) .
Dentre as lesões primárias, ou seja, lesões que ocorrem no momento do trauma, encontram-se os hematomas extradurais e subdurais, contusões e lesões axionais difusas.
A deformação do cérebro, com a extrema aceleração e desaceleração, compromete as fibras nervosas, podendo afetar o substrato neural responsável pela audição, gerando, dessa forma, deficits auditivos centrais, principalmente as lesões axionais difusas, por envolver diversas áreas, tais como auditivas corticais e subcorticais ( 2 ) .
Dada a frequência com que as lesões do tronco encefálico e córtex são encontradas em pacientes com TCE, a avaliação comportamental do processamento auditivo (PA) torna-se importante para verificar o funcionamento da via auditiva central. Muitos indivíduos que sofrem TCE apresentam transtorno do processamento auditivo (TPA), que só pode ser identificado com testes especiais ( 2 , 3 ) . Alguns estudos realizaram a avaliação comportamental do PA em indivíduos que sofreram TCE e evidenciaram alterações nessa população ( 4 - 6 ) .
Diante das alterações da via auditiva que podem ser encontradas em indivíduos após TCE e que podem comprometer a comunicação, há necessidade de se propor um programa de reabilitação para esses pacientes, a fim de melhorar sua qualidade de vida.
A recuperação espontânea após lesão cerebral, mais especificamente após TCE, ocorre nos três primeiros meses, sobretudo no primeiro mês. Após esse período, um cérebro lesado pode se modificar e se readaptar por meio da plasticidade neuronal induzida por estimulação, sendo o tamanho, a localização e a gravidade da lesão fatores limitantes ( 7 , 8 ) .
O treinamento auditivo formal (TAF) é um método terapêutico que visa à estimulação auditiva, de modo a maximizar os efeitos da plasticidade do sistema nervoso central, levando a mudanças comportamentais positivas ( 9 ) .
Estudos realizados em diferentes populações mostraram melhora do PA, evidenciada nas habilidades auditivas pós treinamento auditivo, sugerindo-o como ferramenta para reabilitar as alterações auditivas centrais, já que provoca alterações no substrato neural ( 10 - 13 ) . Esses achados também foram relatados em um estudo, em que os autores observaram melhora nos sintomas, nas avaliações comportamental e eletrofisiológica do PA, após treinamento auditivo em uma paciente que sofreu TCE leve ( 14 ) .
Face ao exposto, o objetivo do presente estudo foi verificar os efeitos de um programa de treinamento auditivo formal em indivíduos após traumatismo cranioencefálico, utilizando testes comportamentais.
Esta pesquisa foi realizada no laboratório de processamento auditivo da Disciplina de Distúrbios de Audição da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da instituição (nº 0389/10). Todos os indivíduos leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, antes de sua participação no estudo.
Os critérios de inclusão adotados nesta pesquisa foram: indivíduos que sofreram TCE fechado grave (Escala Glasgow de três a oito na admissão hospitalar); permanência apenas em coma induzido; lesão axional difusa, com ou sem lesão focal associada; tempo entre a lesão e a participação no estudo de três a 24 meses; faixa etária entre 18 e 50 anos; ambos os gêneros; preferência manual direita; ensino médio completo e limiares auditivos dentro dos padrões da normalidade, entre 250 e 8000 Hz. Vale lembrar que os indivíduos não deveriam apresentar alterações comportamentais evidentes, ou seja, deveriam estar aptos para realizar os procedimentos do estudo e deveriam ser encaminhados pelo Ambulatório de Transtornos Neurológicos Adquiridos ou de Neurocirurgia da UNIFESP.
Foram selecionados adultos entre 18 e 50 anos, a fim de evitar a influência da idade nos resultados das avaliações comportamentais do PA, já que esses testes sofrem influência do processo de maturação e degeneração da via auditiva central. Além disto, optou-se por selecionar indivíduos com preferência manual direita, já que a preferência manual influencia a interpretação dos resultados da avaliação comportamental do PA. O critério de escolaridade mínima - ensino médio completo - objetivou que os indivíduos tivessem tempo de escolaridade semelhante e, dessa forma, a variável não interferisse no seu desempenho indivíduos durante o processo de reabilitação (TAF). Em relação ao tipo de lesão, foi selecionada a lesão axional difusa, pois tal lesão compromete as fibras nervosas, ocorrendo distensão e ruptura dos axônios no cérebro como um todo, podendo envolver diversas áreas, tais como auditivas corticais e subcorticais ( 2 ) . Quanto ao tempo de lesão, foram selecionados indivíduos que haviam sofrido TCE entre três meses e dois anos, a fim de evitar a influência da recuperação espontânea após a lesão cerebral.
Desse modo, participaram do estudo nove indivíduos do gênero masculino, entre 20 e 37 anos (média de idade de 27 anos), que haviam sofrido TCE grave (média da escala Glasgow admissional: 5,7), há, aproximadamente dez meses, com tempo médio de internação de 50,6 dias, sendo 24,7 dias em coma induzido. Dos nove indivíduos, seis tinham ensino médio completo e três, ensino superior incompleto.
Todos os participantes apresentavam queixas fonoaudiológicas, tais como alteração de memória, de atenção, dificuldade para compreender em ambiente ruidoso e na produção de fala e/ou leitura e escrita. Em relação ao tipo de lesão, todos apresentavam lesão axional difusa, sendo que dois indivíduos não apresentavam lesão focal associada, três apresentavam hematoma subdural, um, hematoma extradural, um, contusão temporal, um, contusão temporal e frontal e um hematoma subdural e contusão temporal associados.
Todos os indivíduos participantes foram submetidos aos seguintes procedimentos:
1. Coleta da história clínica para obtenção de dados referentes à audição e ao TCE;
2. Inspeção visual do meato acústico externo, para verificar a existência de possíveis obstruções que impossibilitariam a realização dos demais procedimentos;
3. Avaliação e reavaliação comportamental do PA pré e pós TAF, realizada em cabina acústica, composta pelos seguintes testes ( 15 - 19 ) : teste de localização sonora (LS); teste de memória para sons verbais (MSV) e não verbais (MSNV); teste de fala com ruído branco (FRB); teste dicótico de dissílabos alternados (SSW); teste de identificação de sentenças sintéticas com mensagem competitiva ipsilateral (SSI-MCI) e contralateral (SSI-MCC); teste de padrão de duração com tom puro (PD); teste dicótico consoante-vogal (DCV) e teste de fusão auditiva randomizado (RGDT).
4. TAF organizado em oito sessões, com duração de 45 minutos cada, duas vezes por semana, baseado na proposta de estudos anteriores ( 20 , 21 ) .
As sessões do treinamento auditivo foram organizadas em ordem crescente de complexidade, assim como as atividades em cada sessão, de modo a promover estimulação intensa e atividades que desafiassem o sistema auditivo.
O programa envolveu o treino das habilidades de ordenação temporal (padrão de frequência e duração dos sons ( 17 , 18 , 22 , 23 ) ), de fechamento auditivo (utilizou-se um CD de listas de sentenças em português ( 24 ) e o teste de Fala com Ruído com Figuras) e de figura-fundo para sons verbais (utilizou-se o teste PSI, teste Dicótico de Dígitos e teste DCV) e não verbais (Teste Dicótico Não-Verbal), em tarefas de escuta monótica e dicótica. Os pacientes foram solicitados a apontar frases, dígitos, repetir sons verbalmente ou imitar os padrões sonoros apresentados. As orelhas direita e esquerda foram treinadas separadamente. Dessa forma, em uma sessão de treinamento, cujo objetivo era treinar a orelha direita, os sons apresentados à esquerda deviam ser ignorados pelo paciente e vice-versa. Em relação ao nível de intensidade, a orelha sob treinamento teve sua intensidade fixada, enquanto a intensidade de apresentação na orelha contralateral foi aumentada progressivamente, provocando modificação na relação sinal-ruído, de positiva para negativa, ou seja, do mais fácil para o mais difícil. Vale lembrar que, na maioria das vezes, e sempre que possível, os testes utilizados no treinamento foram diferentes daqueles utilizados na avaliação e reavaliação, a fim de eliminar o efeito de aprendizagem.
Em cada sessão de treinamento, procurou-se manter um índice de acerto por volta de 70% para passar para próxima etapa, manter a motivação e evitar a frustração do paciente ( 10 ) .
Após a coleta, os dados foram submetidos à análise estatística, utilizando o teste de Wilcoxon, para comparar os resultados das avaliações comportamentais do PA pré e pós TAF. Como não foi encontrada diferença significativa entre as orelhas, a análise foi realizada considerando ambas as orelhas. Com isso, o tamanho da amostra foi dobrado e manteve-se a variabilidade intrínseca dos dados, ganhando muito em fidedignidade nos resultados. Os resultados com significância estatística foram destacados com o símbolo de asterisco (*) e os resultados com tendência à significância foram destacados com o símbolo de sustenido (#). Os intervalos de confiança foram construídos com 95% de confiança estatística e foi estabelecido nível de significância de 0,05 (5%).
Os resultados do desempenho dos indivíduos nos testes da avaliação comportamental do PA pré e pós TAF puderam ser mensurados em porcentagem. Já os testes Dicótico Consoante-Vogal e RGDT tiveram seus resultados mensurados em número de acertos/erros e respostas em milissegundos, respectivamente. Verificou-se melhora significativa pós TAF para os testes MSNV – quatro sons (MSNV), SSW, SSI-MCI e PD, enquanto que o teste FRB apresentou tendência à diferença estatística (Tabela 1).
Tabela 1 Desempenho dos indivíduos na avaliação comportamental do processamento auditivo pré e pós treinamento auditivo formal
Comportamental | Média (%) | Mediana (%) | Desvio padrão (%) | Q1 (%) | Q3 (%) | n | IC (%) | Valor de p | ||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
LS | Pós | 86,7 | 80,0 | 10,0 | 80,0 | 100,0 | 9 | 6,5 | 0,157 | |
Pré | 91,1 | 100,0 | 10,5 | 80,0 | 100,0 | 9 | 6,9 | |||
| ||||||||||
MSV | 3 sons | Pré | 77,8 | 100,0 | 37,3 | 66,6 | 100,0 | 9 | 24,4 | 0,109 |
Pós | 100,0 | 100,0 | 0,0 | 100,0 | 100,0 | 9 | - x - | |||
| ||||||||||
4 sons | Pré | 70,4 | 100,0 | 38,9 | 33,3 | 100,0 | 9 | 25,4 | 0,176 | |
Pós | 88,9 | 100,0 | 16,7 | 66,6 | 100,0 | 9 | 10,9 | |||
| ||||||||||
MSNV | 3 sons | Pré | 88,9 | 100,0 | 23,6 | 100,0 | 100,0 | 9 | 15,4 | 0,180 |
Pós | 100,0 | 100,0 | 0,0 | 100,0 | 100,0 | 9 | - x - | |||
| ||||||||||
4 sons | Pré | 55,5 | 66,6 | 33,3 | 33,3 | 66,6 | 9 | 21,8 | 0,042* | |
Pós | 85,2 | 100,0 | 17,6 | 66,6 | 100,0 | 9 | 11,5 | |||
| ||||||||||
FRB | Pós | 86,0 | 88,0 | 9,7 | 81,0 | 92,0 | 18 | 4,5 | 0,086# | |
Pré | 88,7 | 88,0 | 7,3 | 84,0 | 95,0 | 18 | 3,4 | |||
| ||||||||||
SSW | Pós | 84,0 | 86,3 | 11,4 | 75,0 | 93,8 | 18 | 5,3 | 0,001* | |
Pré | 93,3 | 95,0 | 6,4 | 90,0 | 97,5 | 18 | 3,0 | |||
| ||||||||||
SSI-MCC (-40) | Pós | 97,2 | 100,0 | 7,5 | 100,0 | 100,0 | 18 | 3,5 | 0,102 | |
Pré | 100,0 | 100,0 | 0,0 | 100,0 | 100,0 | 18 | - x - | |||
| ||||||||||
SSI-MCI (0) | Pós | 89,4 | 100,0 | 18,6 | 90,0 | 100,0 | 18 | 8,6 | 0,027* | |
Pré | 100,0 | 100,0 | 0,0 | 100,0 | 100,0 | 18 | - x - | |||
| ||||||||||
SSI-MCI (-10) | Pós | 71,7 | 75,0 | 23,1 | 52,5 | 90,0 | 18 | 10,7 | 0,004* | |
Pré | 87,2 | 90,0 | 9,6 | 80,0 | 90,0 | 18 | 4,4 | |||
| ||||||||||
PD | Pós | 80,7 | 86,6 | 16,2 | 73,0 | 90,0 | 9 | 10,6 | 0,035* | |
Pré | 89,2 | 90,0 | 10,0 | 83,3 | 96,6 | 9 | 6,5 |
Quanto ao teste DCV - Atenção Livre, observou-se que, pós TAF, os indivíduos apresentaram maior número de acertos e menor número de erros, com tendência à diferença estatística (Tabelas 2 e 3).
Tabela 2 . Número de acertos e erros no teste dicótico consoante vogal pré e pós treinamento auditivo formal
DCV - Atenção livre | Acertos | Erros | ||
---|---|---|---|---|
| ||||
Pré | Pós | Pré | Pós | |
Média | 8,83 | 9,89 | 6,22 | 4,22 |
Mediana | 8,0 | 9,5 | 6,0 | 5,0 |
Desvio padrão | 4,00 | 5,10 | 2,77 | 1,56 |
Q1 | 6,0 | 5,3 | 4,0 | 3,0 |
Q3 | 11,5 | 14,5 | 8,0 | 5,0 |
n | 18 | 18 | 9 | 9 |
IC | 1,85 | 2,35 | 1,81 | 1,02 |
Valor de p | 0,201 | 0,088* |
Tabela 3 . Número de acertos na orelha direita e esquerda no teste dicótico consoante vogal pré e pós treinamento auditivo formal
DCV – Acerto | OD | OE | ||
---|---|---|---|---|
| ||||
Pré | Pós | Pré | Pós | |
Média | 11,56 | 13,67 | 6,11 | 6,11 |
Mediana | 12,0 | 15,0 | 6,0 | 5,0 |
Desvio padrão | 3,64 | 3,67 | 2,03 | 3,10 |
Q1 | 9,0 | 12,0 | 5,0 | 4,0 |
Q3 | 14,0 | 15,0 | 7,0 | 9,0 |
n | 9 | 9 | 9 | 9 |
IC | 2,38 | 2,40 | 1,32 | 2,03 |
Valor de p | 0,122 | 1,000 | ||
Na análise qualitativa do teste SSW, verificou-se menor incidência significativa da tendência de erros do tipo efeito de ordem alto/baixo, após o TAF (Tabela 4).
Tabela 4 . Tendências de erros no teste dicótico de dissílabos alternados pré e pós treinamento auditivo formal
SSW - Análise qualitativa | Pré | Pós | Valor de p | ||
---|---|---|---|---|---|
| |||||
n | % | n | % | ||
Efeito auditivo A/B | 0 | 0 | 0 | 0 | - x - |
Efeito auditivo B/A | 1 | 11 | 0 | 0 | 0,303 |
Efeito de ordem A/B | 4 | 44 | 0 | 0 | 0,023* |
Efeito de ordem B/A | 3 | 33 | 2 | 22 | 0,599 |
Inversões | 2 | 22 | 0 | 0 | 0,134 |
Tipo A | 0 | 0 | 0 | 0 | - x - |
Com relação ao grau de alteração do PA, a partir do teste SSW, observou-se que, apesar de não terem sido encontradas diferenças, mais indivíduos apresentaram alteração de grau leve ou nenhuma alteração quanto ao grau, pós TAF (Figura 1).
Quanto aos resultados do RGDT, observou-se que o intervalo médio das frequências em milissegundos, necessários para que os indivíduos percebessem a presença de dois sons, foi menor na avaliação pós TAF, quando comparado com a avaliação inicial, sem significância estatística (Tabela 5).
Tabela 5 . Desempenho no teste RGDT pré e pós treinamento auditivo formal
RGDT | Pré | Pós |
---|---|---|
Média | 12,17 | 9,64 |
Mediana | 8,0 | 8,0 |
Desvio padrão | 11,37 | 7,08 |
Q1 | 5,5 | 5,0 |
Q3 | 12,5 | 10,0 |
n | 9 | 9 |
IC | 7,43 | 4,63 |
Valor de p | 0,866 |
Em relação aos processos gnósicos prejudicados, verificou-se diminuição significativa pós TAF nos processos gnósicos de codificação (perda gradual de memória e integração sensorial) e organização (Figura 2).
É importante destacar que há escassez de estudos na literatura que abordem diretamente o tema deste estudo, sobretudo em indivíduos com cérebros lesados, sendo necessária a correlação com outras populações.
As lesões focais associadas à lesão axional difusa foram, em sua maioria, hematomas subdurais e os lobos mais afetados foram os frontais e temporais, devido à força biomecânica do trauma. Vale lembrar que os hematomas subdurais são gerados devido ao mecanismo de aceleração e desaceleração da cabeça, assim como as lesões axionais difusas, sendo comum a associação desses dois tipos de lesão ( 25 ) .
Os dados encontrados na avaliação comportamental do PA (Tabela 1) são importantes, pois revelam que o TAF auxiliou os indivíduos, após TCE, a melhorarem e, muitas vezes, adequarem habilidades auditivas que comumente estão alteradas nessa população, como mostrado em alguns estudos que realizaram avaliação do PA em indivíduos após TCE ( 4 - 6 ) .
Os dados encontrados no teste DCV – Atenção Livre (Tabelas 2 e 3), demonstrando que os indivíduos apresentaram maior número de acertos e menor número de erros, com tendência à diferença estatística, apontam que esse teste passou de alterado para normal, após o TAF, indicando adequação da habilidade auditiva de figura-fundo, para sílabas. O fato de apresentarem mais acertos na orelha direita, sem significância estatística - o que está frequentemente associado à dominância hemisférica esquerda para sons linguísticos - já era esperado para indivíduos com preferência manual direita. Além disso, apesar de não ser o objetivo do teste DCV, o excesso de erros encontrado pode ser devido à dificuldade de discriminação auditiva, uma vez que o teste é composto por sílabas que diferem somente quanto ao traço de sonoridade. Sendo assim, a configuração de mais acertos que erros, após o TAF, demonstrou que a reabilitação auditiva, provavelmente, melhorou a discriminação auditiva desses pacientes ( 16 ) .
Quanto à análise qualitativa do teste SSW (Tabela 4), em que se observou que os indivíduos apresentaram menos tendências de erros na avaliação pós TAF, quando comparados com a avaliação inicial, sendo que a tendência de erros do tipo efeito de ordem alto/baixo foi significativa, vale lembrar que o efeito de ordem alto/baixo está relacionado com dificuldade em memória auditiva. Tal fato é relevante, sobretudo em indivíduos após TCE. Sabe-se que indivíduos que sofrem TCE podem apresentar deficiências e incapacidades, temporárias ou permanentes, sejam visuais, motoras, linguísticas, cognitivas e/ou comportamentais. As mais frequentes são as alterações de memória, atenção e organização ( 26 ) . Dessa forma, ao observar esse dado, pode-se afirmar que o TAF auxiliou os indivíduos a melhorar uma dificuldade comumente encontrada nessa população, o que pode beneficiar a qualidade de vida, uma vez que com melhor capacidade de memória é possível que as trocas comunicativas sejam mais eficientes. Além disso, observou-se que a única tendência de erros que persistiu na avaliação pós TAF, apesar da menor incidência, foi o efeito de ordem baixo/alto, evidenciando, assim, melhora na análise qualitativa do SSW.
Em relação aos dados sobre o grau de alteração, a partir do teste SSW (Figura 1), que evidenciaram melhora pós TAF, uma vez que mais indivíduos apresentaram alteração de grau leve, ou nenhuma alteração quanto ao grau, salientamos que tal classificação de grau foi realizada segundo a proposta de Pereira (2004) ( 15 ) , em que o grau do TPA está relacionado com a dificuldade/facilidade de comunicação dos indivíduos em ambientes ruidosos. Sendo assim, tal resultado demonstra que o TAF contribuiu para a comunicação desses indivíduos em situações de escuta desfavoráveis, como em ambientes ruidosos e/ou reverberantes.
No teste RGDT (Tabela 5), apesar de não ter sido encontrada diferença significativa, o desempenho médio dos indivíduos passou de alterado para normal após TAF, mostrando adequação da habilidade auditiva de resolução temporal, que está relacionada com aspectos fonológicos e de discriminação auditiva ( 19 ) .
Quantos aos processos gnósicos prejudicados (Figura 2), verificou-se que os indivíduos apresentaram menor incidência de todos os processos gnósicos pós TAF quando comparado com a avaliação inicial, sendo que as diferenças para codificação (perda gradual de memória e integração sensorial) e organização foram significativas, evidenciando melhora na memória, atenção e organização respectivamente, ou seja, melhora em três alterações cognitivas encontradas frequentemente em indivíduos que sofrem TCE, como já mencionado anteriormente ( 26 ) .
Quantos aos processos gnósicos prejudicados (Figura 2), vale ressaltar que a alteração de decodificação encontrada na maioria dos pacientes, pós TAF, pode ter decorrido da limitação imposta pela lesão apresentada pelos pacientes. Além disso, o objetivo do treinamento auditivo não é tornar os testes normais do ponto de vista quantitativo, e sim fazer com que os indivíduos estejam mais adaptados e capacitados para estabelecer trocas comunicativas mais eficientes em seu cotidiano.
Segundo um estudo ( 27 ) , um TAF intenso e em ordem crescente de complexidade tende a maximizar a plasticidade cortical e, consequentemente, resulta em aprendizagem. Essa foi justamente a proposta do treinamento auditivo descrito neste estudo, e, sendo assim, esses resultados comportamentais demonstraram que o TAF propiciou a plasticidade neuronal, refletindo em mudança comportamental. Diversos autores evidenciaram melhora das habilidades auditivas pós TAF, a partir da alteração do substrato neural, reafirmando os dados desta pesquisa, sugerindo o TAF como uma ferramenta para reabilitar as alterações auditivas centrais ( 10 - 13 , 21 ) .
Neste estudo, a reavaliação ocorreu logo após o término do treinamento (aproximadamente uma semana). Estudos mostraram que as mudanças neurais, muitas vezes, precedem as comportamentais ( 28 , 29 ) , o que sugere que a realização de um acompanhamento mais extenso (em termos de tempo) pode trazer melhora ainda maior das habilidades auditivas. Sabe-se que quando os indivíduos treinados se expõem às atividades com demanda auditiva, tais como se comunicar em ambiente ruidoso, o próprio meio se encarrega de manter as habilidades auditivas aprimoradas e ainda possibilita que continuem sendo aperfeiçoadas. Desse modo, é importante orientar os pacientes pós treinamento auditivo que se exponham às diversas atividades, sobretudo àquelas que antes eram muito difíceis.
Autores ( 9 ) relataram que se uma reabilitação gerar mudanças neuronais, pode-se dizer que a estratégia de intervenção foi bem sucedida. Assim, cabe afirmar que, nesta pesquisa, o TAF foi eficaz em reabilitar as alterações auditivas centrais encontradas em pacientes que sofreram TCE, concordando com um estudo ( 14 ) que evidenciou melhora nos sintomas, nas avaliações comportamental e eletrofisiológica do PA, pós treinamento auditivo, em uma paciente que sofreu TCE leve.
Sabe-se que a plasticidade neuronal em indivíduos lesados ocorre de forma diferente daqueles sem lesão cerebral. No entanto, este estudo evidenciou que o TAF mostrou-se eficiente em favorecer a plasticidade neuronal por meio de estimulação em indivíduos após TCE, adequando habilidades auditivas e podendo compensar, ainda que parcialmente, deficits cognitivos, metacognitivos e metalinguísticos, como citado por autores ( 2 ) .
Além dos dados apresentados, que sugerem melhora comportamental, vale ressaltar que após o TAF, os indivíduos eram questionados sobre os benefícios que observaram nos seus dia-a-dias. A maioria dos indivíduos relatou melhora, sobretudo na atenção e memória, não desejando que o tratamento fosse interrompido.
Com base nos dados apresentados, fica clara a importância de, não somente avaliar a via auditiva central de pacientes que sofreram TCE, mas também introduzi-los em um programa de reabilitação auditiva, devendo os audiologistas atentarem para essa população. Sugere-se, ainda, que mais estudos sejam realizados com pacientes com diferentes graus de severidade e lesões, para verificar a necessidade de avaliá-los e reabilitá-los, além de pesquisas que realizem um acompanhamento da melhora das habilidades auditivas e as correlacionem com a linguagem desses pacientes.
Indivíduos com lesão axional difusa após sofrerem traumatismo cranioencefálico grave, apresentam adequação das habilidades auditivas de figura-fundo para sons verbais, ordenação e resolução temporal, na avaliação comportamental do processamento auditivo, pós treinamento auditivo formal.