versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.11 Rio de Janeiro nov. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320152111.19812015
O aumento da população idosa e da expectativa de vida evidenciada tanto no Brasil como em âmbito global, tem sido denominada Revolução da Longevidade1. Uma política que atenda à revolução da longevidade deve prover quatro capitais essenciais para o bem envelhecer: atenção à saúde; acesso a conhecimentos; condições financeiras; suporte e cuidado da família, amigos e pessoas próximas2. A atenção à saúde é uma das estratégias essenciais para a promoção da saúde do idoso uma vez que o envelhecimento é um processo dinâmico que acarreta maior vulnerabilidade e maior incidência de processos mórbidos. Durante o processo de envelhecimento ocorrem alterações morfológicas, fisiológicas, bioquímicas e psicológicas no indivíduo, que determinam a perda progressiva de sua capacidade de adaptação ao meio ambiente3, e explicam a elevada prevalência de múltiplas doenças crônicas4 e a utilização de vários medicamentos simultaneamente5.
O uso de múltiplos medicamentos pode gerar implicações clínicas em relação à efetividade, segurança e adesão, além de impacto econômico5. Para que a utilização de medicamentos seja adequada, é preciso que o paciente possua informações necessárias para utilizá-los conforme a prescrição do profissional6,7. Minimamente, os idosos deveriam conhecer a dosagem, a frequência e a importância dos medicamentos que estão utilizando8.
A falta de estratégias efetivas de transmissão de informação dos profissionais da saúde aos pacientes e/ou a não compreensão de tais informações podem trazer sérias consequências, como a adesão inadequada, que pode agravar o quadro clínico9-11. Neste sentido, a não compreensão da terapia prescrita pode ser uma das razões pelas quais medicamentos reconhecidamente eficazes sob condições controladas, se tornam inefetivos quando utilizados na prática clínica habitual6.
A compreensão da farmacoterapia tem sido conceituada como o conhecimento do nome do medicamento, indicação, frequência de administração, efeitos adversos ou instruções especiais de administração12 e pode ser influenciada por diversos fatores como aqueles relacionados aos indivíduos, à terapia, aos profissionais e aos serviços de saúde9. Os fatores associados à pior compreensão da farmacoterapia descritos na literatura incluem: o gênero masculino13-15, a idade avançada15-18, baixa escolaridade15-19, o pior status socioeconômico13,14, o déficit cognitivo13,20, a presença de comorbidades17, o uso de múltiplos medicamentos18,19,21, a maior complexidade da farmacoterapia6,22, e a menor adesão à farmacoterapia15,22.
Os trabalhos internacionais que estudaram a compreensão da farmacoterapia em idosos não apresentaram homogeneidade metodológica, demonstrando resultados variados21-24. Isso dificulta a comparação e a definição do que constitui o conhecimento do regime terapêutico. No Brasil, pesquisas com foco em aspectos relativos à informação obtida pelos pacientes sobre os medicamentos prescritos e à compreensão dessas informações são escassas, sendo que não foram encontradas publicações abordando a compreensão dos idosos a respeito dos medicamentos6,7,11,14,18,25.
No contexto assistencial da atenção primária, é importante avaliar a compreensão da prescrição de medicamentos pelo paciente, mas, na literatura, não há consenso sobre o que constitui esse conhecimento do regime terapêutico e, tampouco, sobre a forma de mensuração. Portanto, conhecer o nível de compreensão quanto à farmacoterapia em pacientes idosos atendidos na atenção primária, e identificar as características que influenciam essa compreensão são aspectos centrais para analisar e intervir efetivamente no processo de utilização de medicamentos.
Desta forma, objetivou-se avaliar o nível de compreensão da farmacoterapia e as características associadas entre idosos, em duas Unidades Básicas de Saúde, em Belo Horizonte.
Estudo transversal, do tipo analítico, realizado em duas Unidades Básicas de Saúde (UBS), no município de Belo Horizonte, Minas Gerais, no período de novembro de 2013 a abril de 2014. Os critérios de elegibilidade incluíram indivíduos com idade igual ou superior a 60 anos, usuários da Atenção Primária à Saúde de Belo Horizonte, que receberam pelo menos um medicamento nas farmácias das UBS estudadas, e que, no momento da entrevista, apresentavam em mãos, pelo menos um desses medicamentos. O recebimento dos medicamentos nas farmácias das UBS está condicionado a ser morador do município de Belo Horizonte, estar cadastrado no sistema eletrônico do município, portar documento de identidade e prescrição médica/odontológica de profissional da rede pública ou particular de saúde. Os indivíduos foram convidados a participar da pesquisa no momento em que estavam na fila das farmácias para a dispensação de medicamentos.
Para o cálculo da amostra, considerou-se informações do sistema informatizado da farmácia das UBS (Sistema de Gestão em Rede – SISREDE). A partir dessas informações, constatou-se que a média mensal de atendimentos de indivíduos idosos pelas farmácias das UBS, no período de janeiro a outubro de 2013, foi de 483 indivíduos. Como os atendimentos realizados pelas farmácias das UBS são mensais, adotou-se a premissa de que os idosos são os mesmos e comparecem às farmácias uma vez ao mês para buscar os medicamentos de uso crônico. Dessa forma, considerando a população finita de 483 indivíduos, prevalência de 50% para todas as características observadas, nível de significância de 5%, intervalo de confiança (IC) de 95% e 10% de possíveis recusas, a amostra foi estimada em 237 idosos. A seleção da amostra foi consecutiva, por conveniência. Foram selecionados os indivíduos que preencheram os critérios de inclusão e que, após serem atendidos nas farmácias dos Centros de Saúde, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O projeto foi devidamente aprovado nos Comitês de Ética em Pesquisa das instituições envolvidas.
A coleta de dados foi baseada em entrevista estruturada ao paciente, realizada de novembro de 2013 a abril de 2014, por meio de um questionário contendo perguntas sobre características sociodemográficas, clínicas, funcionais e relacionadas à utilização de medicamentos. Todas as entrevistas foram realizadas pela pesquisadora principal, farmacêuticos residentes e acadêmicos dos cursos de farmácia e medicina previamente treinados com os procedimentos a serem realizados. Com o objetivo de avaliar a confiabilidade interentrevistador, aproximadamente 10% dos participantes (n = 20) foram reentrevistados em dois momentos, por entrevistadores diferentes. Realizou-se análise de consistência, obtendo-se um valor kappa médio de 0,835.
O nível de compreensão dos idosos sobre a farmacoterapia foi avaliado baseando-se nas propostas de Silva et al.7 e Ceccato et al.25, por meio de perguntas em relação a todos os medicamentos prescritos que o indivíduo estivesse em mãos no momento da entrevista, sobre os seguintes itens: nome do medicamento, dose, frequência de administração, indicação, efeitos adversos ao medicamento e precauções (Quadro 1). Não foram avaliados medicamentos que estivessem sendo utilizados por automedicação, uma vez que foram avaliados apenas os prescritos. No momento da entrevista, foi permitido ao indivíduo consultar a receita ou a embalagem do medicamento, ou qualquer anotação que ele tivesse em mãos.
Quadro 1 Instrumento de avaliação da compreensão da farmacoterapia em idosos*
*Adaptado de Silva et al.7 e Ceccato et al.25.
As respostas às perguntas foram transcritas e interpretadas por dois revisores, que avaliaram a concordância entre as informações fornecidas pelo paciente com instruções das receitas médicas, prontuário e/ou Formulário Terapêutico Nacional26, para os medicamentos apresentados no momento da entrevista. Em caso de discordância entre eles, um terceiro revisor foi consultado. Diferenças entre a terminologia técnica e popular foram aceitas, assim como entre a terminologia presente na prescrição médica e a descrita pelo participante. Considerou-se respostas dicotômicas (certa/errada) e adotou-se a seguinte pontuação, para cada item considerado como correto: i. nome do medicamento, dose e frequência do uso = dois pontos cada, pois são itens considerados de grande importância para o uso seguro de medicamentos; ii. indicação do medicamento, duração do tratamento, efeitos adversos e precauções = um ponto cada. Foi atribuída pontuação “zero” para os casos em que o participante não sabia a resposta de determinado item ou quando respondia de forma errada. Desta forma, a pontuação máxima obtida era igual a nove pontos, no caso de resposta correta para todos os itens. Após esta etapa, calculou-se o nível de compreensão da farmacoterapia para cada medicamento apresentado e, posteriormente, o nível global de compreensão do tratamento para cada indivíduo, a partir da média dos valores obtidos para cada medicamento. O nível de compreensão global da prescrição foi classificado como “insuficiente” para os indivíduos que obtiveram um escore menor que 70,0% dos pontos (< 6,3 pontos), de acordo com a proposição de Ceccato et al.25.
As variáveis explicativas investigadas foram agrupadas a saber: i. características sociodemográficas (gênero, idade, nível de escolaridade, morar sozinho, renda em salários mínimos, estado civil e raça); ii. características clínicas (comorbidades, depressão, autopercepção de saúde, cognição); iv.características funcionais (atividades básicas e instrumentais de vida diária); v. características relacionadas a utilização de medicamentos (número de medicamentos, complexidade da farmacoterapia, adesão, independência para administração de medicamentos, orientações recebidas dos profissionais de saúde). Foram utilizadas escalas validadas e/ou adaptadas para o contexto brasileiro para a avaliação das variáveis: depressão - Escala de Depressão Geriátrica de 15 itens27 (indivíduos com sintomas de depressão: ≥ 6 pontos); cognição – Mini Exame do Estado Mental28,29 (indivíduos com incapacidade cognitiva: ≤ 13 pontos para analfabetos; ≤ 18 pontos para indivíduos com um a oito anos de escolaridade e ≤ 24 pontos para indivíduos com mais de 8 anos escolaridade)29; adesão – Escala de adesão terapêutica de oito itens proposta por Morisky30; complexidade da farmacoterapia – Medication Regimen Complexity Index (MRCI)31; atividades básicas – Escala de Katz32 e atividades instrumentais de vida diária – Escala de Lawton e Brody (indivíduos independentes = 21 pontos)33. Os medicamentos presentes na prescrição médica apresentada pelo indivíduo foram classificados pelo Anatomical Therapeutic Chemical – ATC34, nos 1º e 5º níveis (grupo anatômico principal e subgrupo químico, respectivamente). Para avaliação da dependência para o uso de medicamentos, foi realizada a seguinte pergunta: “O (a) senhor(a) conta com auxílio de alguma pessoa para tomar os medicamentos?”, considerou-se dependente o indivíduo que respondesse “sim” a essa pergunta.
O banco de dados foi criado no Programa Epi Info versão 3.5.4 (Center for Disease Control and Prevention, Atlanta, Estados Unidos). Realizou-se controle de qualidade da digitação dos dados, com replicação de 10% das digitações. A análise de confiabilidade entre os digitadores foi realizada por meio da estatística kappa, sendo obtido kappa igual a 1,0, indicando excelente concordância.
Para a análise descritiva dos dados, foi determinada a frequência, medidas de tendência central e de dispersão para as características estudadas. As variáveis contínuas foram dicotomizadas com base na mediana e o teste qui-quadrado de Pearson foi aplicado para comparação de proporções. A magnitude da associação do nível global de compreensão dos idosos e as variáveis explicativas foi estimada por meio do Odds Ratio (OR), com intervalo de 95% de confiança (IC95%), utilizando a regressão logística para as análises univariada e multivariada.
As variáveis que obtiveram um valor de p ≤ 0,25 no teste de Wald na análise univariada, assim como as variáveis clinicamente e∕ou epidemiologicamente relevantes, foram selecionadas, manualmente, para iniciar o modelo multivariado utilizando procedimento passo a passo com seleção para trás. No modelo final, permaneceram as variáveis que obtiveram um valor de p < 0,05. Utilizou-se o teste da razão de verossimilhança para comparar os modelos. A adequação dos modelos finais foi avaliada pelo teste de Hosmer-Lemeshow. A análise estatística foi realizada no software Statistical Package for Social Sciences® (SPSS®) 21.
Dos 230 idosos convidados, foram excluídos três participantes que não atenderam aos critérios de inclusão, resultando em 227 participantes elegíveis. Destes, 221 (97,4%) responderam ao questionário sem ajuda de cuidador. Observou-se uma predominância de mulheres (70,9%), indivíduos com até 79 anos de idade (84,1%), com até oito anos de escolaridade (75,7%), que não viviam sós (76,2%) e com renda de até dois salários mínimos (60,9%) (Tabela 1). A média de idade entre os participantes foi de 71,4 anos (DP = 7,5; Coeficiente de variação-CV = 10,6%).
Tabela 1 Características descritivas da amostra dos idosos incluídos no estudo, Belo Horizonte – MG, 2014 (n = 227).
* Total varia de acordo com informação ignorada, ** valor do salário mínimo vigente = R$ 724,00.
Em relação às características clínicas, 23% apresentavam sintomas de depressão. A saúde foi autorreferida como positiva (excelente, muito boa ou boa) para 70% dos idosos (Tabela 1). As doenças mais prevalentes foram hipertensão arterial sistêmica (n = 196; 22,2%); dislipidemia (n = 131; 14,8%); outras doenças cardiovasculares (n = 79; 8,9%), doenças articulares (n = 79; 8,9%), diabetes melito (n = 74; 8,4%) e doenças psiquiátricas (n = 59; 6,7%).
No que diz respeito às características funcionais, 13,9% dos idosos apresentavam suspeita de incapacidade cognitiva; 76,5% eram independentes para atividades básicas de vida diária; e 22,9% eram independentes para atividades instrumentais de vida diária, sendo que os demais participantes apresentaram dependência parcial para tais atividades (Tabela 1).
Em relação à utilização de medicamentos, identificou-se um total de 1176 medicamentos prescritos. A média diária de medicamentos prescritos foi de 5,3 (DP = 2,3; CV = 44,1%), sendo que 58,6% (n = 133) dos indivíduos faziam uso de cinco ou mais. O índice de complexidade das prescrições teve valor médio de 22,7 (DP = 10,9; CV = 48,0%), mínimo de 4,0 e máximo de 65,5. Os mais frequentes foram medicamentos para: sistema circulatório (50,4%; n = 593); trato alimentar e metabolismo (17,1%; n = 201); sistema nervoso (13,0%; n = 153) e sistema sanguíneo e órgãos hematopoiéticos (8,0%; n = 94). Dentre os representantes das diversas classes de medicamento, os mais presentes nas prescrições foram hidroclorotiazida (7,8%; n = 92); sinvastatina (7,7%; n = 91); losartan (7,6%; n = 89); anlodipino (6,0%; n = 71) e ácido acetilsalicílico (5,9%; n = 70).
No que diz respeito à adesão à farmacoterapia, apenas 29,6% dos idosos a apresentaram alta. Cerca de 83% relataram que não necessitavam de nenhuma ajuda para tomar os medicamentos e 72,6% disseram que já haviam recebido alguma orientação de profissionais de saúde em relação à farmacoterapia. Dentre os profissionais que realizaram tais orientações, os mais citados foram médico (n = 147); enfermeiro (n = 12) e farmacêutico (n = 11). Quando perguntados sobre a forma como entenderam as orientações, 84,7% (n = 144) dos participantes que receberam orientação relataram que entenderam tudo ou muito. Do total de participantes do estudo, apenas 20,6% consideravam que necessitavam de mais informações para compreender o seu tratamento com medicamentos (Tabela 1).
O nível de compreensão foi avaliado para um total de 629 medicamentos apresentados no momento da entrevista. Na Tabela 2, está apresentada a frequência de acertos dos itens empregados na avaliação da compreensão referente aos medicamentos apresentados pelos participantes. Observou-se um índice de concordância de 86,2% em relação à dose; 84,4% para a indicação; 82,7% para a frequência de administração; 75,8% em relação ao nome do medicamento; 24,0% em relação aos precauções com o medicamento e somente 6,9% para os efeitos adversos.
Tabela 2 Frequência de acertos dos itens empregados na avaliação da compreensão referente aos medicamentos apresentados pelos participantes, Belo Horizonte – MG, 2014.
* porcentagem foi definida em relação ao número de medicamentos apresentados n = 629, o total varia de acordo com a informação ignorada.
Cento e dezesseis idosos (51,1%) apresentaram compreensão insuficiente (< 6,3 pontos) em relação à farmacoterapia. A média do nível de compreensão global entre os idosos foi de 6,02 (DP = 1,5; CV = 24,6%), o que representa 66,9% de acerto.
Na Tabela 3 observa-se a distribuição do nível de compreensão das classes de medicamentos, de acordo com a classificação ATC 1º nível (grupo anatômico principal), e dos 20 medicamentos apresentados com maior frequência. Escores mais altos foram observados para a classe de fármacos que atuam nos órgãos sensoriais e sanguíneos, assim como para os medicamentos metformina, ácido acetilsalicílico, atenolol e clonazepam. Os medicamentos paracetamol, carvedilol, glibenclamida e ibuprofeno apresentaram a pior pontuação média. As classes dos antiifecciosos e dermatológicos apresentaram os escores mais baixos.
Tabela 3 Nível de compreensão da farmacoterapia para cada classe ATC 1° nível (grupo anatômico principal) e para os 20 medicamentos apresentados com maior frequência pelos participantes, Belo Horizonte – MG, 2014.
Na análise univariada, a compreensão insuficiente estava associada com: ter escolaridade até quatro anos, apresentar sintomas de depressão, ter dependência parcial para as atividades instrumentais de vida diária, utilizar cinco ou mais medicamentos, adesão média ou baixa ao tratamento e ser dependente para o uso de medicamentos (Tabela 4). Foram incluídas as variáveis clínica e/ou epidemiologicamente relevantes: idade, índice de complexidade, cognição e recebimento de orientações de profissionais de saúde. Após análise ajustada, indivíduos com até quatro anos de escolaridade tiveram o dobro de chances de ter uma compreensão insuficiente, em relação àqueles com mais de quatro anos de escolaridade. E aqueles que não tinham independência para uso dos medicamentos tiveram três vezes mais chances de ter uma compreensão insuficiente (Tabela 4).
Tabela 4 Análise univariada e multivariada dos fatores associados com a compreensão insuficiente da farmacoterapia na amostra de idosos incluídos no estudo, Belo Horizonte – MG, 2014 (n = 227).
a Total varia de acordo com informação ignorada; * Teste de Hosmer-Lemeshow: χ2 = 2,205; df = 2; p = 0,332. ** valor do salário mínimo vigente = R$724,00; OR: odds ratio; IC: intervalo de confiança.
Identificou-se no presente estudo que mais da metade dos idosos (51,1%) apresentaram o nível de compreensão da farmacoterapia considerado insuficiente, despertando atenção para as consequências sobre a efetividade e a segurança no uso de medicamentos por idosos no contexto da atenção primária. Apesar da lacuna encontrada para a compreensão dos pacientes, a maioria deles consideraram que entenderam muito ou tudo sobre as orientações recebidas de profissionais de saúde e que não necessitavam de informações adicionais relacionadas aos medicamentos. Desta forma, observou-se que os participantes, em sua grande maioria, não tinham percepção adequada sobre o seu próprio conhecimento relacionado ao uso de medicamentos.
Os idosos fazem uso extensivo de medicamentos e apresentam maior risco de sofrer reações adversas a estes por apresentaram alterações farmacocinéticas e farmacodinâmicas decorrentes do processo de envelhecimento3. Além do mais, há maior prevalência de incapacidade cognitiva, entre pessoas desta faixa etária, o que dificulta a compreensão e a adesão à farmacoterapia, podendo tornar o uso de medicamentos entre idosos uma situação crítica20. Um fato a ser destacado é que as características encontradas no presente estudo, assemelham-se às características sociodemográficas do idoso brasileiro35,36.
Neste trabalho, comparou-se o percentual de concordância entre as informações relacionadas com a receita médica e as fornecidas pelo paciente, para os medicamentos apresentados no momento da entrevista. Dentre os itens considerados de grande importância para o uso seguro dos medicamentos – nome, dose e frequência – observou-se a menor proporção de concordância para o item nome. A proporção desta baixa concordância para o nome do medicamento (24,2%) foi cerca de duas vezes maior que a encontrada para dose (13,8%) e cerca de uma vez e meia maior que aquela para a frequência (17,3%). Este fato foi encontrado em estudos anteriores7,25 e provavelmente deve-se à grande complexidade dos nomes dos medicamentos. Frequentemente, os nomes não se parecem com nenhuma palavra do vocabulário dos pacientes, e estes, muitas vezes, não estão familiarizados com tais nomes tendo dificuldade em memorizar e pronunciar os mesmos. É importante citar que neste estudo foram aceitas diferenças entre a terminologia técnica e popular, podendo o paciente realizar consulta à embalagem do medicamento, prescrição médica ou qualquer anotação que ele tivesse em mãos. Verificou-se que houve uma baixa concordância para o item efeitos adversos, resultado consonante com outros estudos6,11,19,25. Essa situação pode ser explicada, em parte, pelo fato dos profissionais de saúde muitas vezes não escreverem tais informações nas prescrições, por temerem em alarmar indevidamente os pacientes e, com isso, levar à não adesão ao tratamento19. Além do mais, as consultas médicas geralmente apresentam tempo curto, o que faz com que o profissional priorize fornecer informações sobre nome, dose e frequência do uso de medicamentos, em detrimento de informações sobre os efeitos adversos12,19. O baixo conhecimento sobre os efeitos adversos é fato preocupante que requer atenção: pacientes que não estão familiarizados com tais efeitos apresentam maior risco de terem sérias complicações, uma vez que alguns desses podem levar à hospitalização e até ocasionar a morte19. É importante enfatizar que o conhecimento sobre os efeitos adversos pode contribuir para a melhoria da relação entre o profissional de saúde e o paciente, uma vez que este terá a liberdade de relatar ao profissional quando da ocorrência de tais efeitos.
A compreensão para cada classe de medicamento, de acordo com o primeiro nível do ATC (grupo anatômico principal), apresentou pontuação menor para medicamentos frequentemente utilizados em condições agudas ou de uso esporádico como o ibuprofeno, o paracetamol, os antiinfecciosos e os dermatológicos. Em estudo anterior6, observou-se que o menor conhecimento estava associado ao uso de medicamentos anti-infecciosos e para o sistema respiratório. Também foi encontrado maior conhecimento para medicamentos de uso crônico, quando comparado aos de uso esporádico10. Provavelmente, esse achado deve-se ao fato de que medicamentos de uso crônico são utilizados por tempo prolongado, assim, o paciente tem maior familiaridade, conhecendo mais sobre os mesmos.
O índice de complexidade da farmacoterapia é um importante instrumento, uma vez que a simples contagem de medicamentos, por si só, não é capaz de medir a complexidade de regimes medicamentosos37. Na literatura, foi encontrada associação de menor compreensão da farmacoterapia com maior complexidade da mesma6,22. Isso ocorre porque quanto maior a quantidade de informações a serem assimiladas, maior a dificuldade de memorização das instruções6. É importante ressaltar que o instrumento para avaliar a complexidade utilizado no presente estudo31, apresenta-se como uma variável contínua, sendo assim, pontuações maiores sugerem maior complexidade da farmacoterapia. A média encontrada para o índice de complexidade da farmacoterapia na amostra estudada foi próxima de uma investigação com idosos realizada nos Estados Unidos38. Porém, não fica claro qual a pontuação deveria ser atingida para que uma prescrição seja considerada complexa.
Uma menor escolaridade e a dependência para uso dos medicamentos foram fatores independentemente associados à compreensão da farmacoterapia. A associação da escolaridade com a compreensão da farmacoterapia foi demonstrada em estudos anteriores com adultos6,14,15,18 e idosos19. Pacientes com menor escolaridade apresentam dificuldade na leitura, memorização e compreensão das instruções, além de pior entendimento das informações fornecidas pelos profissionais de saúde6,14. O letramento em saúde é a capacidade de obter, processar, compreender informações básicas e serviços necessários para a tomada de decisões adequadas em saúde39. O letramento em saúde pode ser pior que o geral: um indivíduo pode ser capaz de compreender materiais de conteúdo familiar, mas esforça-se para entender aqueles com vocabulários ou conceitos não familiares, como prescrições médicas e bulas de medicamentos39. Um pior letramento em saúde está associado a um menor conhecimento relacionado à saúde e pior controle de doenças crônicas24. Assim, recomenda-se que a equipe de saúde esteja atenta aos pacientes com menor escolaridade, devendo estar preparada para atendê-los de forma diferenciada utilizando vocabulário acessível, escrita legível e, quando necessário, implementar estratégias para melhorar a compreensão da farmacoterapia com o uso de desenhos, cores e símbolos. Uma importante ação para a melhoria do conhecimento dos idosos com relação aos medicamentos é a inserção do farmacêutico na equipe multiprofissional de saúde. Sabe-se que as orientações realizadas pelo farmacêutico contribuem para o aumento da compreensão e, consequentemente, adesão ao tratamento medicamentoso11,16,25. Em 2008, a assistência farmacêutica foi incluída como uma das áreas estratégicas de atuação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), sendo facultada a inclusão do farmacêutico em tais núcleos40. O profissional farmacêutico no NASF deve atuar de forma integrada às Equipes de Saúde da Família, desenvolvendo ações com enfoque no cuidado ao paciente, não se limitando às atividades administrativas41. Apesar deste importante avanço, o número de farmacêuticos em tais núcleos é incipiente, sendo apenas um profissional responsável por uma população de cerca de 20 a 40.000 pessoas42. Este número escasso de farmacêuticos na atenção primária à saúde pode explicar o fato deste profissional ter sido pouco citado como responsável por realizar orientações a respeito de medicamentos. O farmacêutico, por ser referência para diversas equipes de saúde da família42, frequentemente realiza atendimento clínico individual somente para pacientes de grupos de risco específicos. Além disso, o farmacêutico não realiza diretamente a dispensação de medicamentos aos usuários da unidades de saúde. Esses fatores podem explicar a baixa frequência do número de farmacêuticos como responsáveis pela orientação ao paciente. Assim, a inserção do farmacêutico, em número suficiente, nos serviços de saúde pode contribuir para uma melhoria da adesão e da compreensão da farmacoterapia, contribuindo para o alcance dos objetivos desta.
Em um estudo foi observado que indivíduos de 55 anos ou mais, com melhor capacidade funcional, apresentaram melhor conhecimento sobre a farmacoterapia17. Em consonância, verificou-se no presente estudo que os idosos que usam medicamentos de forma independente compreendem melhor o tratamento medicamentoso. Uma provável explicação para o achado seria o fato de que quando um indivíduo depende da ajuda de um cuidador para administrar os medicamentos, ele possivelmente irá esforçar-se menos para conhecer a farmacoterapia e, com isso, poderá ter menor compreensão. Assim, destaca-se a importância dos profissionais de saúde realizarem orientações a respeito dos medicamentos aos cuidadores de pessoas idosas, por estes, muitas vezes, serem os responsáveis pela farmacoterapia dos idosos. Diante deste cenário, surge como perspectiva, a investigação da compreensão de cuidadores sobre o tratamento com medicamentos.
A compreensão da farmacoterapia não é descrita como um conceito unitário na literatura, compreendendo diferentes aspectos da farmacoterapia que não são equivalentes para a representação deste conceito9,12. Fica evidente uma tendência de inclusão nos estudos de avaliação da compreensão da farmacoterapia os aspectos relativos à indicação, frequência, nome e dose do medicamento, itens considerados essenciais para o uso seguro. Nas investigações, é reduzida a abordagem das questões relativas à conduta diante do esquecimento de doses, segurança, duração do tratamento, armazenamento e interação medicamentosa, itens que também podem ser julgados como relevantes para o uso racional de medicamentos. Um ponto importante a ser evidenciado é que apesar de haver na literatura vários estudos que avaliam a compreensão da farmacoterapia por pacientes em diversos contextos, em nenhum deles foi utilizado instrumento validado. A validação de um instrumento para mensuração da compreensão da farmacoterapia é relevante para a pesquisa clínica e epidemiológica, pois permite resultados mais reprodutíveis e a uniformização de metodologias contribuindo para ampliar o conhecimento. Além disso, o instrumento validado pode ser aplicável à prática clínica, ao fornecer um recurso com confiabilidade para a detecção de pacientes em risco de não compreender a farmacoterapia.
É importante destacar que o presente estudo é um dos primeiros no Brasil que aborda a avaliação da compreensão da farmacoterapia entre idosos. Além disso, na literatura internacional, tais estudos são escassos, com poucas variáveis analisadas13,19-23,34. Destaca-se ainda a abrangência dos itens avaliados, de acordo com a definição estabelecida por Ascione et al.12.
Uma limitação do estudo foi a avaliação da compreensão da farmacoterapia para os medicamentos que o indivíduo portava no momento da entrevista. Pode ser que, nesse momento, o idoso não tivessem em mãos todos os medicamentos que fazia uso. Além disso, realizou-se amostragem por conveniência, assumindo-se que os idosos são os mesmos.
Os achados do presente trabalho são úteis tanto para a pesquisa quanto para a prática clínica, uma vez que chama a atenção de profissionais, gestores e pesquisadores para a falta de conhecimento da população idosa em relação aos medicamentos. É necessário realizar intervenções para que haja diminuição na lacuna existente entre a informação que o paciente realmente sabe e a que ele deveria saber para poder utilizar medicamentos com qualidade. Assim, protocolos clínicos com foco nos indivíduos idosos devem ser implementados e, destes, aqueles com baixa escolaridade devem ser priorizados para o atendimento clínico farmacêutico.
A compreensão insuficiente da farmacoterapia foi alta na amostra estudada, principalmente entre os idosos com baixa escolaridade e os dependentes para o uso de medicamentos A compreensão insuficiente do idoso em relação à farmacoterapia pode comprometer o uso racional de medicamentos, gerando problemas de efetividade e segurança. Idosos fazem uso extensivo de medicamentos e são mais sensíveis às reações adversas a medicamentos. Desta forma, os serviços e os profissionais de saúde devem estar preparados para atender e orientar idosos em relação aos medicamentos, principalmente aqueles com baixa escolaridade.