versão impressa ISSN 2595-0118versão On-line ISSN 2595-3192
BrJP, ahead of print Epub 18-Maio-2020
http://dx.doi.org/10.5935/2595-0118.20200021
Acreditava-se que os recém-nascidos (RNs) não sentiam dor, pois ao nascer, o sistema nervoso seria imaturo. Pesquisas constataram que o RN responde ao estímulo doloroso e sua experiência é passível de diagnóstico e avaliação objetivos1,2.
Estudos de imagem estão sendo realizados para auxiliar o entendimento do processamento doloroso em crianças. A ressonância magnética nuclear funcional (RMNf) evidenciou nos RNs atividade cerebral significativa em 18 das 20 regiões do cérebro, também ativas no adulto durante o estímulo doloroso3.
Supondo que as experiências dolorosas as quais o RN é submetido poderiam ter relação com a sua reação futura a novos estímulos, estudo clínico demonstrou que, em 87 meninos, a circuncisão no período neonatal está associada ao aumento da resposta à dor quando a vacinação com injeção intramuscular é realizada depois de 4 a 6 meses após a cirurgia4.
Vários estudos experimentais correlacionaram resposta a estímulos dolorosos no RN e no adulto. A incisão na pata de ratos RNs produziu memória somatossensorial, influenciando a resposta futura à nova lesão, quando adultos, concluindo que os efeitos em longo prazo após a lesão neonatal indicam a necessidade de estratégias preventivas eficazes5.
Alguns estudos demonstraram que existem diferenças no comportamento de resposta à dor nos RNs por vias vaginal e cesariana eletiva6-8. Além disso, níveis maiores de catecolaminas9 e beta-endorfina10-12 foram encontrados em RNs de parto vaginal, se comparados àqueles de cesariana.
Muitos fatores podem influenciar o comportamento de dor do RN ao nascer. RNs de partos vaginais que tiveram assistência por extração a vácuo podem demonstrar alterações7, assim como o uso de opioides durante a anestesia para o parto, a depender da via e do fármaco empregado, é também uma importante influência13 e o uso de drogas ilícitas pela gestante pode alterar a dosagem do nível de cortisol no RN8.
Sinais de sofrimento fetal podem levar a alterações na percepção dolorosa nos RNs8. A presença de líquido amniótico meconial durante o parto, por exemplo, está associada a alterações da expressão clínica da dor nas primeiras 24 horas de vida dos RNs, mesmo que discretamente7. Quanto ao Boletim de Apgar, escores menores que 7 no 5º minuto podem alterar a percepção de dor do RN6.
A presença de bolsa rota maior ou igual a 18h é importante fator preditor de sepse precoce no RN e, sabendo-se que sepse neonatal é uma síndrome clínica caracterizada por resposta inflamatória sistêmica e que eleva a morbimortalidade, a presença de bolsa rota prolongada poderia ser um fator que alteraria a resposta à dor nas crianças após seu nascimento14.
Partindo da premissa de que os RNs sentem dor que é mensurável15 e que a via de parto pode alterar a percepção de dor do RN, o estudo teve como objetivo avaliar a resposta à dor logo após o nascimento de RNs por parto vaginal e cesariana.
As parturientes classificadas como estado físico ASA II (American Society of Anaesthesia Classification System)16, admitidas na maternidade terciária escolhida durante o período de maio de 2016 a outubro de 2017, com idade gestacional entre 37 semanas e 41 semanas e 6 dias, sem bolsa rota maior ou igual a 18h e que não fizeram uso de drogas ilícitas, álcool e tabaco durante a gestação, foram convidadas a participar do estudo.
Um estudo estatístico prévio estimou o número de participantes necessários, programando um calendário para a realização das coletas.
Após concordância e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), as parturientes foram incluídas. O primeiro grupo foi composto pelos RNs de parto vaginal, em pacientes que não foram submetidas à episiotomia e não receberam nenhum tipo de analgesia e/ou anestesia.
O segundo grupo foi composto pelos RNs por cesariana eletiva, com parturientes anestesiadas por bupivacaína por via subaracnóidea, e o opioide utilizado foi a morfina subaracnóidea, na dose máxima de 100µg.
Os RNs oriundos de trabalhos de parto com duração maior que 24h, presença de líquido amniótico meconial e o uso de fórceps ou de extração a vácuo foram excluídos do estudo6,7, assim como os RNs que apresentaram escores abaixo de 7 no 1º e/ou 5º minutos6,8, considerando-se que ambos escores são importantes para a fisiologia neonatal17.
Os RNs foram avaliados após estímulo doloroso agudo ao nascimento, utilizando duas escalas de dor, além da aferição de frequência cardíaca (FC). Todas as avaliações foram feitas por um único examinador, encoberto quanto à via de parto, que dois meses antes do início das avaliações estudou as escalas e foi treinado para utilizá-las no estudo.
Foi empregada a COMFORT Behavior Scale (COMFORT b) validada para a língua portuguesa18 e derivada da escala COMFORT original. É um instrumento multidimensional, adequado para a avaliação da dor aguda compatível com a faixa etária do estudo. Os escores estão compreendidos entre 6 e 30 pontos, sendo que 6 significa ausência de dor e 30 a dor máxima15, e valores menores ou iguais a 10 significam pouca ou nenhuma dor.
Foi avaliada a FC, parâmetro importante na avaliação da dor aguda6,18. Também foi empregada a escala Neonatal Facial Coding System (NFCS), instrumento unidimensional adequado para dor aguda e para RNs. O escore máximo possível é de 8 pontos que considera presença de dor quando três ou mais movimentos faciais aparecem de maneira consistente19.
Ao nascimento, é preconizado que os RNs recebam vitamina K (fitomenadiona) e a formulação intramuscular é a recomendada pelo Ministério da Saúde20. Por ser procedimento rotineiro, foi o estímulo doloroso agudo empregado.
Após o nascimento o RN era consolado pela mãe com contato de pele, a seguir era levado à sala de avaliação, ambiente calmo e tranquilo, com temperatura adequada20, onde foram realizados os cuidados gerais. Antes do estímulo doloroso, a FC foi avaliada em batimentos por minuto (bpm), com estetoscópio aquecido na região precordial durante 15 segundos, depois eram aplicadas as escalas Comfort b e NFCS. Essas mensurações foram realizadas após o estímulo doloroso e depois de 10 minutos, e entre as avaliações os RNs ficavam em berço aquecido. Após as avaliações da intensidade da dor, era realizado o exame físico e neurológico, uma vez que alterações dessas avaliações poderiam alterar a resposta à dor6,21. Foram avaliados os parâmetros semiológicos e o peso ao nascimento para evidenciar algum sinal de sofrimento fetal21,22, e avaliação neurológica com exame do choro, atitude, tônus, movimentação e reflexos neurológicos, além do perímetro cefálico e percentil na curva própria. Foram excluídos os RNs com alguma alteração neurológica e/ou pequeno para idade gestacional23,24.
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição, sob número 48553015.3.0000.5411.
A análise estatística foi realizada pelo teste t de Student25, comparando-se as médias entre os dois grupos em relação aos momentos estudados. O teste Exato de Fisher26 foi empregado para a análise das variáveis qualitativas e as associações entre elas. O nível de significância foi de 5%.
Foram incluídas 83 parturientes totalizando 83 RNs (Tabela 1). A distribuição quanto ao sexo foi semelhante em cada grupo.
Tabela 1 Distribuição por sexo e via de parto
Tipos de partos | Sexo feminino (n e %) |
Sexo masculino (n e %) |
Total (n e %) |
---|---|---|---|
Cesariana | 31 (37) | 22 (27) | 53 (64) |
Vaginal | 14 (17) | 16 (19) | 30 (36) |
Total | 45 (54) | 38 (46) | 83 (100) |
O tempo máximo de trabalho de parto nos partos vaginais foi de 16h e nas cesarianas foi de 14h, demonstrando que as amostras foram semelhantes. Antes do término das avaliações, nenhum RN foi amamentado porque poderia interferir nas reações à dor27. O tempo em minutos antes da primeira aferição foi registrado, não havendo diferença estatística.
Em relação às escalas COMFORT b e NFCS, foram encontradas diferenças em números absolutos, chamando atenção os valores obtidos antes do estímulo doloroso, com média de pontuação nos RNs de cesariana de 17,47 e 2,47 respectivamente em cada escala, com valor máximo de 26 e 6. Nos RNs de parto vaginal foi 16,53 e 2,2, sendo o valor máximo de 20 e 4 pontos respectivamente (Tabela 2), porém em ambas as escalas não houve diferença estatística (p>0,05) Tabela 3.
Tabela 2 Valores mínimos, máximos e médias encontrados nos grupos cesariana e parto vaginal, antes e após o estímulo doloroso agudo
Variáveis | Tempo | Mínimo C/ PV |
Máximo C/PV |
Média C/ PV |
---|---|---|---|---|
Comfort b | ||||
Antes do estímulo | 9/12 | 26/20 | 17,47/16,53 | |
Imediatamente após estímulo | 15/17 | 29/29 | 24,75/24,83 | |
10 min após estímulo | 8/7 | 20/20 | 12,32/12,67 | |
NFCS | ||||
Antes do estímulo | 0/0 | 6/4 | 2,47/2,2 | |
Imediatamente após estímulo | 1/1 | 8/8 | 5,57/5,53 | |
10 min após estímulo | 0/0 | 4/3 | 0,49/0,53 | |
Frequência cardíaca (bpm) | ||||
Antes do estímulo | 112/112 | 190/188 | 148,6/146,9 | |
Imediatamente após estímulo | 128/120 | 196/200 | 161,9/159,6 | |
10 min após estímulo | 116/110 | 180/168 | 143,1/135 |
Comfort b = COMFORT Behavior Scale; NFCS = Neonatal Facial Coding System; min = minutos; bpm = batimentos por minuto.
Tabela 3 Médias, variações e valores de p em cada grupo estudado
Variáveis de avaliação | Período da avaliação | Cesariana | Parto vaginal | Valor de p |
---|---|---|---|---|
Comfort b | ||||
Antes do estímulo | 17,47 ± 2,81 | 16,53 ± 2,01 | 0,112 | |
Imediatamente após o estímulo | 24,75 ± 3,32 | 24,83 ± 3,28 | 0,917 | |
10 min após o estímulo | 12,32 ± 2,60 | 12,66 ± 2,60 | 0,562 | |
NFCS | ||||
Antes do estímulo | 2,47 ± 1,44 | 2,20 ± 1,32 | 0,4 | |
Imediatamente após o estímulo | 5,56 ± 1,53 | 5,53 ± 1,50 | 0,925 | |
10 min após o estímulo | 0,49 ± 0,99 | 0,53 ± 0,77 | 0,839 | |
Frequência cardíaca (bpm) | ||||
Antes do estímulo | 148,6 ± 15,59 | 146,9 ± 18,66 | 0,664 | |
Imediatamente após o estímulo | 161,9 ± 15,21 | 159,6 ± 19,64 | 0,553 | |
10 min após o estímulo | 143,2 ± 15,18 | 135 ± 13,66 | 0,016 |
Comfort b = COMFORT Behavior Scale; NFCS = Neonatal Facial Coding System; bpm = batimentos por minuto; min = minutos.
Em relação à FC, os valores encontrados antes e imediatamente após o estímulo doloroso foram semelhantes nos dois grupos, porém, na aferição de 10 minutos após a injeção houve diferença significativa (p<0,05 - tabela 3), no grupo cesariana a média foi de 143 bpm e no parto vaginal foi de 135 bpm (Tabela 2).
O presente estudo incluiu 83 RNs, sendo 30 nascidos de parto vaginal e 53 de cesariana, enquanto outro estudo6 incluiu 76 RNs, sendo 53 de parto vaginal e 23 de cesariana. Os RNs avaliados eram todos nascidos a termo. A importância do tempo de gestação é demonstrada em outros estudos que também se preocuparam em incluir pacientes com idade gestacional maior que 37 semanas6,8, com exceção do estudo7 que incluiu RNs a partir de 35 semanas de gestação, o que pode diversificar a amostra.
Em relação ao peso, os estudos incluíram RNs não classificados como pequenos para idade gestacional6,8, exceto por um estudo que utilizou o peso mínimo de 2.000g, não importando a idade gestacional7. Em relação ao índice de Apgar, os estudos têm se preocupado que o valor no 5º minuto seja maior que 76,8, diferente deste estudo que considerou valores maiores que 7 para o 1º e 5º minutos, excluiu os RNs quando o líquido amniótico era meconial, e de modo semelhante a outro estudo6 excluiu os RNs de trabalho de parto com mais de 24h de duração.
No que se refere à avaliação da dor em RN, os estudos consideram a movimentação da face dos RN como parâmetro, assim como a Comfort b e a NFCS6-8. A NFCS, em sua forma validada, foi utilizada nesta pesquisa de modo semelhante ao estudo6 que a utilizou com alguns parâmetros a menos, considerando critérios de facilidade de aplicação, colocando dúvidas quanto aos resultados, e as avaliações da dor foram realizadas por diferentes profissionais de saúde com formações distintas, diferente deste em que as avaliações foram realizadas por um único avaliador com formação completa em medicina e pediatria, treinado previamente.
O presente estudo evidenciou pontuações maiores de dor nas escalas Comfort b e NFCS para os nascidos de parto vaginal antes do estímulo doloroso, mas a diferença não se mostrou significativa, e não perdurou nas demais avaliações, seja imediatamente após o estímulo doloroso ou 10 minutos após o estímulo, diferente de outros estudos em que o RN nascido por cesariana sente mais dor após o estímulo doloroso agudo quando comparado aos nascidos via vaginal6,8, sendo que o estudo7 mostrou que os RNs de cesariana sentiram dor maior imediatamente após o nascimento comparados com os de parto vaginal, mas esta diferença não foi estatisticamente significante. Portanto, no que se refere à avaliação de dor logo após o nascimento, os dados obtidos na presente pesquisa confirmam esse resultado.
Um estudo evidenciou que a FC é fisiologicamente menor nos nascidos por parto vaginal comparados aos de cesariana6. Todavia, no presente estudo houve estabilidade nos dois grupos, antes e imediatamente após o estímulo doloroso. O mesmo estudo6 demonstrou que a FC aumentou progressivamente durante as primeiras horas de vida nos RNs de parto vaginal e não nos nascidos de cesariana, porém, neste estudo, na aferição tardia 10 minutos após a injeção intramuscular, o grupo nascido via cesariana apresentou valores significativamente maiores de FC. No que se refere à dor, esses achados não permitem inferir diferenças de percepção dolorosa nos dois grupos, uma vez que as variáveis fisiológicas isoladamente são pouco sensíveis para esse tipo de análise28.
A intensidade da dor avaliada pelas escalas Comfort b e NFCS não evidenciou diferença na percepção da dor entre recém-nascidos de parto vaginal e cesariana.