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Avaliação da estabilidade de parâmetros citológicos e bioquímicos do liquor

Avaliação da estabilidade de parâmetros citológicos e bioquímicos do liquor

Autores:

Renan Domingues,
Fernando Brunale,
Gustavo Bruniera,
Carlos Senne

ARTIGO ORIGINAL

Jornal Brasileiro de Patologia e Medicina Laboratorial

versão impressa ISSN 1676-2444versão On-line ISSN 1678-4774

J. Bras. Patol. Med. Lab. vol.55 no.3 Rio de Janeiro maio./jun. 2019 Epub 01-Ago-2019

http://dx.doi.org/10.5935/1676-2444.20190021

INTRODUÇÃO

O líquido cefalorraquidiano (LCR) é um fluido corporal dinâmico amplamente utilizado no diagnóstico de muitas doenças tumorais, inflamatórias, infecciosas, vasculares e degenerativas(1). Vários parâmetros do LCR, como proteínas, glicose, lactato, glóbulos brancos e vermelhos, entre outros, são medidos sistematicamente, e seus padrões podem sugerir a presença de um processo patológico em particular(2,3).

O LCR é normalmente obtido por punção lombar (PL) e coletado em tubos apropriados. Após sua coleta, os tubos são transportados para o laboratório e há um período de tempo variável para que a análise seja realizada. Esse período é determinado por diversos fatores, como a distância entre o hospital e o laboratório de análise, por exemplo. As amostras também podem ser coletadas em locais onde não haja um laboratório especializado, e precisam ser enviadas para um laboratório de referência. Considerando o período de tempo entre a coleta e a análise do LCR, é importante conhecer a estabilidade dos seus componentes para entender como isso influencia a interpretação clínica dos resultados do LCR.

Previamente, com base na opinião de especialistas e também em estudos experimentais com inoculação de glóbulos brancos em amostras de LCR estéreis(4), sugeriu-se que o exame citológico deva ser realizado dentro de 2 horas após a PL(5). No entanto, esses dados não refletem necessariamente o que acontece com as amostras clínicas nas condições em que o LCR é realmente armazenado. Além disso, pouco se sabe sobre a estabilidade de outros componentes do LCR, como os parâmetros bioquímicos(6). O objetivo deste estudo foi investigar a estabilidade de leucócitos, hemácias, proteínas, glicose e lactato do LCR durante 12 horas.

MÉTODOS

Todas as amostras de LCR incluídas no presente estudo foram obtidas para fins clínicos. Médicos do Senne Liquor Diagnóstico realizaram as PLs. O tempo entre a retirada do LCR e a análise inicial demorou até 2 horas. As amostras de LCR foram armazenadas a 17ºC em temperatura ambiente durante as análises.

Análise de glóbulos brancos e vermelhos

Quinze amostras de LCR coletadas de 15 pacientes submetidos a PL por recomendação médica foram utilizadas para análise de estabilidade de glóbulos brancos e vermelhos. Todas elas foram enviadas para a unidade principal do Laboratório do Senne Liquor Diagnóstico, de acordo com as normas das autoridades brasileiras [Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), RDC 20/2014]. Essas amostras foram aliquotadas em cinco tubos diferentes, os quais foram analisados em cinco tempos de espera: T0, T1 (2 horas), T2 (4 horas), T3 (6 horas) e T4 (12 horas). Todos os tubos foram armazenados à temperatura ambiente. Todas as amostras apresentaram inicialmente o mínimo de 20 leucócitos/mm3. Os leucócitos totais e as hemácias foram contados em uma câmara de contagem Fuchs-Rosenthal, e a contagem diferencial de células foi realizada após sedimentação e coloração(7). Amostras menor que 100 leucócitos/mm3 foram centrifugadas a 1000 rpm por 5 minutos. O mesmo procedimento foi realizado nas cinco alíquotas. Analisamos a variância da contagem de leucócitos totais, neutrófilos, linfócitos e hemácias, bem como a relação neutrófilos/linfócitos. A pleocitose no LCR foi classificada como leve (20-50 células/mm3), moderada (50-200/mm3) ou marcada (> 200/mm3). Realizamos o registro do padrão de pleocitose, bem como do predomínio de polimorfonucleares (PMN) ou linfomononucleares (LMN); realizou-se uma comparação entre os cinco períodos de tempo de cada amostra de LCR.

Análises de glicose, proteínas e lactato

Para análise bioquímica de estabilidade, foram avaliadas 20 amostras de LCR coletadas por recomendação médica de 20 pacientes submetidos a PL. Essas amostras de LCR foram enviadas para a unidade principal do Laboratório Senne Liquor Diagnóstico, de acordo com a RDC 20/2014 da Anvisa. As concentrações de glicose, proteína e lactato foram determinadas por colorimetria. Todas as amostras de LCR foram aliquotadas em cinco tubos diferentes. Cada uma dessas alíquotas foi analisada em cinco períodos de tempo: T0, T1 (2 horas), T2 (4 horas), T3 (6 horas) e T4 (12 horas).

Análise estatística

A análise de variância de leucócitos totais, neutrófilos, linfócitos, relação neutrófilos/linfócitos e concentrações de hemácias, glicose, proteínas e lactato nos diferentes tempos foi realizada pelo programa one-way análise de variância (ANOVA). O teste de comparações múltiplas de Tukey foi usado para determinar quais dessas médias diferem das demais. O nível de significância foi estabelecido em p < 0,05. O programa GraphPad Prism 5.0 (GraphPad Software, San Diego, CA, EUA) foi utilizado para todas as análises estatísticas.

RESULTADOS

Glóbulos brancos e vermelhos

Os achados do LCR deste grupo são apresentados na Tabela 1. A média total de leucócitos, neutrófilos, linfócitos, relação neutrófilos/linfócitos e os valores de hemácias são apresentados na Tabela 2. Não foi encontrada variância significativa para os leucócitos totais (p = 0,15), neutrófilos (p = 0,27), linfócitos (p = 0,15), relação neutrófilos/linfócitos (p = 0,11) e hemácias (p = 0,39). O teste de comparações múltiplas de Tukey não mostrou diferenças significativas entre T0, T1, T2, T3 e T4 para nenhuma dessas variáveis.

Tabela 1 Achados de LCR em amostras usadas para avaliação da estabilidade citológica 

LCR Leucócitos (mm3) Neutrófilos (%) Linfócitos (%) Proteína (mg/dl) Glicose (mg/dl) Lactato (mg/dl)
1 200 79 12 214 32 49,7
2 20 35 18 108 48 29,1
3 178 55 38 36 50 14,9
4 35 55 28 380 37 61,8
5 4800 78 10 7400 37 61,8
6 25 0 95 89 56 14,4
7 110 13 75 184 19 29
8 20 2 78 33 49 13,5
9 699 0 77 47 53 15,2
10 290 1 93 107 32 23,5
11 550 32 58 60 51 41,2
12 133 60 33 57 55 34,2
13 20 31 52 39 40 23,8
14 44 64 34 56 44 28,6
15 21 2 96 53 41 21,7

LCR: líquido cefalorraquidiano.

Tabela 2 Análise do total de leucócitos, linfócitos, neutrófilos, contagem de hemácias e relação neutrófilos/linfócitos em cinco períodos diferentes 

0
(média ± DP)
2 h
(média ± DP)
4 h
(média ± DP)
6 h
(média ± DP)
12 h
(média ± DP)
p
Total deleucócitos (mm3) 476 ± 1214 447 ± 1138 439 ± 1115 416 ± 1037 379 ± 936 0,15
Neutrófilos (mm3) 288 ± 958 261 ± 863 261 ± 869 250 ± 828 223 ± 738 0,27
Linfócitos (mm3) 128 ± 182 129 ± 191 125 ± 183 125 ± 185 117 ± 172 0,15
Relação Neutrófilos/ linfócitos 1,908 ± 2,826 2,022 ± 2,884 2,110 ± 3,130 2,021 ± 2,927 2,436 ± 3,888 0,11
Hemácias (mm3) 12110 ± 48425 10894 ± 43585 9130 ± 36310 8486 ± 33896 6098 ± 24204 0,39

DP: desvio padrão.

Em T0, quatro LCRs apresentaram pleocitose leve com predomínio de LMN; três, pleocitose leve com predomínio de PM; um, pleocitose moderada com predomínio de LMN; três, pleocitose moderada com predomínio de PMN; três, pleocitose acentuada com predomínio de LMN; e um, pleocitose acentuada com predominância de PMN. O padrão de pleocitose e a predominância do tipo de célula permaneceram inalterados em T1, T2, T3 e T4 para todas as amostras de LCR.

Glicose, proteínas e lactato

Os valores médios de glicose, proteínas e lactato são apresentados na Tabela 3. Não foi encontrada variação significativa com a ANOVA para nenhuma dessas variáveis. O teste de comparações múltiplas de Tukey não mostrou diferenças significativas entre as médias de glicose, proteína e lactato para T0, T1, T2, T3 e T4.

Tabela 3 Análise da media de proteínas, lactate e glicose em cinco períodos diferentes 

0
(média ± DP)
2 h
(média ± DP)
4 h
(média ± DP)
6 h
(média ± DP)
12 h
(média ± DP)
p
Proteína (mg/dl) 34,55 ± 12,1 34,7 ± 13,05 34,55 ± 12,16 34,85 ± 12,9 34,5 ± 12,29 0,9
Lactato (mg/dl) 14,45 ± 3,03 14,35 ± 3,03 14,4 ± 2,93 14,65 ± 3,04 14,35 ± 2,92 0,08
Glicose (mg/dl) 60,8 ± 14,71 60,85 ± 15,01 60,85 ± 14,98 60,90 ± 14,75 61,4 ± 14,66 0,11

DP: desvio padrão.

DISCUSSÃO

Não encontramos diminuição estatisticamente significativa na contagem de leucócitos e hemácias pela análise de variância ao longo de 12 horas em amostras de LCR armazenadas à temperatura ambiente. Além disso, nenhuma das análises citológicas resultou em diferentes interpretações clínicas ao longo de 12 horas de armazenamento do LCR à temperatura ambiente. Tanto quanto sabemos, nenhum estudo prévio avaliou a variação citológica durante 12 horas em amostras de LCR armazenadas à temperatura ambiente. Foi dada recomendação Classe IV para avaliação citológica dentro de 2 horas por conta da potencial lise de glóbulos brancos e vermelhos(4, 8). Dados experimentais anteriores mostraram uma diminuição significativa de neutrófilos após uma hora e de linfócitos após três horas(5). Nossos achados sugerem que a diminuição na contagem de leucócitos não afeta significativamente a interpretação clínica de amostras de LCR com pelo menos 20 leucócitos/mm3, armazenadas à temperatura ambiente. Na prática clínica, muitas vezes é difícil realizar análises de LCR logo após a coleta. Muitos hospitais e clínicas não têm o serviço e precisam encaminhar para outros laboratórios as amostras de LCR. Nossos resultados sugerem que isso pode não interferir significativamente no resultado final da análise de LCR.

Não encontramos variação significativa nos resultados de glicose, proteína e lactato em 12 horas. Esse tema já foi estudado previamente. Um trabalho avaliou a estabilidade da glicose e do lactato no LCR(9). Os autores descobriram que esses parâmetros eram estáveis nas amostras de LCR armazenadas por 24 horas, em amostras com níveis normais ou altos de contagem de células de LCR(6). Outro estudo mostrou que o lactato do LCR permaneceu estável ao longo de três dias em temperatura ambiente(10). Portanto, nossos dados estão de acordo com estudos prévios de estabilidade da glicose e do lactato no LCR. A concentração de proteína também permaneceu estável em nosso estudo; entretanto, avaliamos apenas a concentração total de proteínas. Outras pesquisas são necessárias para avaliar a estabilidade de proteínas específicas, como albumina e imunoglobulina.

As limitações do presente estudo incluem o tamanho pequeno da amostra. Além disso, analisamos apenas amostras de LCR com o mínimo de 20 leucócitos/mm3 na avaliação inicial. Não é possível especular sobre variância citológica e interpretação clínica em amostras menores que 20 leucócitos/mm3 com nossos dados; portanto, ainda são necessários estudos adicionais nessa direção. Ademais, o presente trabalho avaliou o efeito do armazenamento do LCR apenas à temperatura ambiente. O laboratório onde este estudo foi realizado, como a maioria dos serviços, recomenda a análise do LCR assim que ele é recebido, armazenando-o a 4ºC. Ainda é necessário avaliar a influência da temperatura na estabilidade dos parâmetros do LCR.

Mostramos que os parâmetros LCR permanecem relativamente estáveis, não afetando significativamente a interpretação clínica nas primeiras 12 horas de armazenamento à temperatura ambiente, sugerindo que as amostras de LCR podem ser encaminhadas com segurança a um serviço especializado nesse período.

REFERÊNCIAS

1 Jerrard DA, Hanna JR, Schindelheim GL. Cerebrospinal fluid. J Emerg Med. 2001; 21(2): 171-8. PubMed PMID: 11489408.
2 Seehusen DA, Reeves MM, Fomin DA. Cerebrospinal fluid analysis. Am Fam Physician. 2003; 68(6): 1103-8. PubMed PMID: 14524396.
3 Huy NT, Thao NT, Diep DT, Kikuchi M, Zamora J, Hirayama K. Cerebrospinal fluid lactate concentration to distinguish bacterial from aseptic meningitis: a systemic review and meta-analysis. Crit Care. 2010; 14(6): R240. PubMed PMID: 21194480; PubMed Central PMCID: PMC3220013.
4 Deisenhammer F, Bartos A, Egg R, et al.; EFNS Task Force. Guidelines on routine cerebrospinal fluid analysis. Report from an EFNS task force. Eur J Neurol. 2006; 13(9): 913-22. PubMed PMID: 16930354.
5 Steele RW, Marmer DJ, O'Brien MD, Tyson ST, Steele CR. Leukocyte survival in cerebrospinal fluid. J Clin Microbiol. 1986; 23(5): 965-6. PubMed PMID: 3711287.
6 Dujmovic I, Deisenhammer F. Stability of cerebrospinal fluid/serum glucose ratio and cerebrospinal fluid lactate concentrations over 24 h: analysis of repeated measurements. Clin Chem Lab Med. 2010; 48(2): 209-12. PubMed PMID: 19958211.
7 Anguiano GL, Ancira GV. Direct simultaneous total and differential leukocyte counts in the counting chamber. Acta Haematol. 1955; 13(2): 124-7. PubMed PMID: 14361097.
8 UK National External Quality Assessment Scheme for Immunochemistry Working Group. National guidelines for analysis of cerebrospinal fluid for bilirubin in suspected subarachnoid haemorrhage. Ann Clin Biochem. 2003; 40(Pt 5): 481-8. PubMed PMID: 14503985.
9 Levine J, Panchalingam K, McClure RJ, Gershon S, Pettegrew JW. Stability of CSF metabolites measured by proton NMR. J Neural Transm (Vienna). 2000; 107(7): 843-8. PubMed PMID: 11005549.
10 Zhang L, Gabler J, Payto D, Wang S. Stability of lactate and pyruvate in cerebrospinal fluid under typical clinical laboratory storage conditions. Clin Biochem 2015; 48(9): 631-2. PubMed PMID: 25863113.