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Avaliação da Função Diastólica do Ventrículo Esquerdo com Ecocardiografia Associada a Doppler Tecidual na Esclerose Sistêmica

Avaliação da Função Diastólica do Ventrículo Esquerdo com Ecocardiografia Associada a Doppler Tecidual na Esclerose Sistêmica

Autores:

Marina Carneiro de Freitas Roque,
Percival D. Sampaio-Barros,
Ana Lucia Arruda,
Sergio Barros-Gomes,
Derly Becker,
José Lazaro de Andrade,
Ana Clara Tude Rodrigues

ARTIGO ORIGINAL

Arquivos Brasileiros de Cardiologia

versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170

Arq. Bras. Cardiol. vol.109 no.5 São Paulo nov. 2017 Epub 02-Out-2017

https://doi.org/10.5935/abc.20170145

Resumo

Fundamento:

A esclerose sistêmica (ES) é uma anomalia do tecido conjuntivo caracterizada por fibrose da pele e dos órgãos internos. O envolvimento cardíaco com consequente disfunção miocárdica na ES está associado a uma maior morbimortalidade.

Objetivo:

Investigar a função diastólica do ventrículo esquerdo (VE) em pacientes com ES e função sistólica preservada.

Método:

Pacientes com ES foram estudados com ecocardiografia bidimensional com Doppler tecidual para análise dos diâmetros cavitários, índice de massa do VE (IMVE), volume indexado do átrio esquerdo (VAEi), função sistólica biventricular e presença, além de grau de disfunção diastólica (DD) pelo Doppler convencional e tecidual.

Resultados:

Estudamos 50 pacientes, divididos conforme presença de DD em Grupo 1 (n = 25; função diastólica normal, razão E/A ≥ 0,8, tempo de desaceleração [TD] > 150 ms e < 200 ms e e’ septal > 8 cm/s) e Grupo 2 (n = 25; com presença de DD, subdividido em DD tipo I [E/A < 0,8, TD > 200 ms], tipo II [E/A ≥ 0,8, e’ septal < 8 cm/s, VAEi > 34 mL/m2] e tipo III [E/A > 2, TD < 150 ms, e’ septal < 8 cm/s]. A DD tipo I foi a mais frequente (34%), seguida de DD tipo II (16%). O IMVE e o VAEi foram similares entre os grupos, porém a e’ septal e lateral estiveram reduzidas apenas no Grupo 2. No Grupo 2, observamos que os pacientes com DD moderada apresentavam maior duração da doença (p = 0,02).

Conclusão:

A prevalência de DD tipo I foi elevada na ES e esteve associada ao envelhecimento. No caso da DD moderada, a duração da doença despontou como um fator importante.

Palavras-chave: Ventrículos do Coração / função; Ecocardiografia Doppler; Escleroderma Sistêmico; Disfunção Ventricular Esquerda

Abstract

Background:

Systemic sclerosis (SS) is a connective tissue abnormality characterized by fibrosis of the skin and internal organs. Cardiac involvement with consequent myocardial dysfunction in SS is associated with increased morbidity and mortality.

Objective:

To investigate the left ventricular (LV) diastolic function in patients with SS and preserved systolic function.

Methods:

Patients with SS were evaluated with two-dimensional echocardiography with tissue Doppler for analysis of chamber diameters, LV mass index (LVMI), indexed left atrial volume (iLAV), systolic function of both ventricles, and presence and degree of diastolic dysfunction (DD).

Results:

We evaluated 50 patients, divided according to the presence of DD into Group 1 (n = 25; normal diastolic function, E/A ratio ≥ 0.8, deceleration time [DT] > 150 ms and < 200 ms, and septal e’ > 8 cm/s) and Group 2 (n = 25; with DD, subdivided into type I DD [E/A < 0.8, DT > 200 ms], type II [E/A ≥ 0.8, septal e’ < 8 cm/s, iLAV > 34 mL/m2], and type III [E/A > 2, DT < 150 ms, septal e’ < 8 cm/s]). Type I DD was the most frequent (34%), followed by type II DD (16%). LVMI and iLAV were similar in both groups, but septal and lateral e’ were reduced only in Group 2. In Group 2, we observed that patients with moderate DD had longer disease duration (p = 0.02).

Conclusion:

The prevalence of type I DD was elevated in SS and associated with aging. Disease duration emerged as an important factor in moderate DD.

Keywords: Heart Ventricles / function; Echocardiography, Doppler; Sleroderma, Systemic; Ventricular Dysfunction, Left

Introdução

A esclerose sistêmica (ES) é uma doença difusa do tecido conjuntivo caracterizada por fibrose e espessamento da pele e de órgãos internos, alterações vasculares e eventuais úlceras isquêmicas e alterações viscerais.1 A prevalência da ES varia entre 7 e 489 indivíduos por milhão de pessoas e pode variar quanto ao gênero (mais comum nas mulheres), idade (geralmente se inicia entre a terceira e quinta décadas de vida) e etnia (mais comum nos EUA e Austrália do que no Japão ou Europa).2 A ES pode ser clinicamente subdivida em forma limitada, que afeta apenas a pele da face, mãos e pés, ou difusa, que cursa com espessamento tanto das extremidades quanto do abdome, tronco e raízes dos membros. O acometimento cardíaco na ES pode ser primário (miosite, falência cardíaca, fibrose cardíaca, doença arterial coronariana, anormalidades na condução e doença pericárdica) ou secundário (resultante principalmente de fibrose pulmonar e insuficiência renal).1-4 A disfunção diastólica (DD) e/ou sistólica pode ser secundária à fibrose miocárdica, hipertrofia do ventrículo esquerdo (VE), hipertensão arterial sistêmica (HAS), doença renal ou distúrbio respiratório do sono. A ecocardiografia revela doença miocárdica em 50% a 70% dos casos, mas na maioria dos pacientes, a disfunção cardíaca é clinicamente silenciosa até estágio mais avançado da doença.3-6 Técnicas derivadas da ecocardiografia bidimensional, como o Doppler tecidual, têm sido utilizadas para a avaliação e detecção precoce de disfunção ventricular em várias situações.5-7 A sua utilização para o estudo da ES, no entanto, tem sido limitada a estudos menores8 ou com definição metodológica inadequada.9

O objetivo deste estudo foi avaliar a função diastólica do VE através da ecocardiografia associada ao Doppler tecidual em pacientes com ES.

Método

Foram incluídos no estudo pacientes com ES atendidos no Ambulatório de Reumatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo no período de novembro 2010 a dezembro 2011, de ambos os sexos e maiores de 18 anos. Todos os pacientes preencheram os critérios do Colégio Americano de Reumatologia (ACR)10 e, posteriormente, os novos critérios classificatórios do ACR e da Liga Europeia contra o Reumatismo (EULAR).11 Foram incluídos pacientes esclerodérmicos ambulatoriais sem manifestações viscerais graves (especialmente fibrose intersticial, hipertensão pulmonar, miocardiopatia ou crise renal esclerodérmica), bem como sem comorbidades graves. Todos os pacientes apresentavam fenômeno de Raynaud. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Hospital das Clínicas e todos os pacientes assinaram termo de consentimento para participação.

Ecocardiografia transtorácica

Todos os pacientes realizaram inicialmente ecocardiografia bidimensional com Doppler tecidual (Artida, Toshiba, Japão) para avaliação completa da estrutura e função ventricular, com ênfase na análise da função diastólica do VE. Com base nas diretrizes da Sociedade Americana de Ecocardiografia,12 foram realizadas medidas dos diâmetros sistólico e diastólico do VE pelo modo bidimensional para cálculo da fração de ejeção (método de Teichholz). Foram obtidos ainda os diâmetros da raiz aórtica e átrio esquerdo a partir do plano paraesternal longitudinal. O cálculo da massa do VE foi realizado a partir das medidas de espessura diastólica do VE e sua cavidade pelo método de Devereux12 e indexado para superfície corpórea. O volume indexado do átrio esquerdo (VAEi) foi obtido a partir do plano apical de duas e quatro câmaras pelo método de Simpson modificado. Alterações valvares foram avaliadas pelo modo bidimensional, Doppler convencional e mapeamento colorido, com a medida da pressão pulmonar obtida pelo refluxo tricúspide e somada à estimativa da pressão do átrio direito pela veia cava inferior.

Análise da função diastólica

As medidas do Doppler transmitral foram obtidas com a amostra do Doppler posicionada na extremidade das cúspides no corte apical de quatro câmaras para obtenção das ondas E (inicial) e A (tardia), razão E/A e o tempo de desaceleração (TD) da onda E. Obtivemos ainda os traçados de Doppler tecidual a partir do corte apical de quatro câmaras, com a amostra do Doppler na região basal do septo e no anel lateral mitral, para análise das velocidades das ondas s’, e’ e a’.

A análise da função diastólica foi realizada com base na classificação abaixo, a partir das recomendações da Sociedade Americana de Ecocardiografia:13

  • - Função normal: VAEi < 34 mL/m2, E/A 0,8-1,5, TD da onda E > 150 ms e < 200 ms, onda e’ septal ≥ 8 cm/s.

  • - DD tipo I (discreta): E/A < 0,8, TD da onda E > 200 ms, onda e’ septal < 8 cm/s.

  • - DD tipo II (moderada): VAEi ≥ 34 mL/m2, E/A 0,8-1,5, TD da onda E entre 150-200 ms, onda e' septal < 8 cm/s com relação E/e’ > 13.

  • - DD tipo III (importante): VAEi > 34 mL/m2, E/A > 2, TD < 150 ms, e' septal < 8 cm/s com relação E/e’ > 13.

A partir da análise da função diastólica, os pacientes foram divididos em dois grupos: Grupo 1, com função diastólica normal e Grupo 2, com DD. Os pacientes foram também analisados em relação ao grau de DD apresentado. A presença de janela acústica inadequada e fração de ejeção do VE reduzida (< 50%) foram considerados critérios de exclusão.

Análise estatística

O teste de Kolmogorov-Smirnov foi utilizado para avaliar normalidade. Para as variáveis contínuas com distribuição normal, os dados estão apresentados como média ± desvio padrão e para as variáveis sem distribuição normal, como mediana e intervalo interquartil (IIQ). As variáveis categóricas estão apresentadas em números absolutos e porcentagens. Os grupos foram comparados pelo teste t de Student não pareado (bicaudal) para as variáveis com distribuição normal e teste de Wilcoxon para variáveis sem distribuição normal. Para avaliação do grau de DD, foi utilizada análise de variância (ANOVA) e, subsequentemente, o teste de Dunnett.

As análises estatísticas foram realizadas com o software JMP, versão 8 (SAS Institute, Cary, NC, EUA). Valores de p < 0,05 foram considerados estatisticamente significativos.

Resultados

Nós analisamos 54 pacientes com ES, dos quais três foram excluídos por apresentarem janela acústica inadequada e um por apresentar fração de ejeção do VE reduzida, totalizando 50 pacientes. A maioria (n = 46) dos participantes era do sexo feminino e a idade média foi de 52 ±11 anos. O tempo mediano de duração da doença foi de 9 anos (IIQ 5-15 anos). Os tempos mínimo e máximo de duração da doença foram de 3 e 45 anos, respectivamente. Somente três pacientes apresentavam HAS e nenhum apresentava diabetes ou história clínica de doença coronariana (Tabela 1). Os dados ecocardiográficos, como fração de ejeção do VE, diâmetros das cavidades cardíacas, pressão sistólica da artéria pulmonar, índice de massa ventricular e VAEi, estavam dentro dos valores normais para este grupo de pacientes (Tabela 2).

Tabela 1 Dados clínicos e medicações dos pacientes 

Variável
Idade (anos) 52 ± 11
Sexo feminino 46 (92%)
Duração da doença (anos) (intervalo interquartil) 9 (5 - 15)
Depressão (n, %) 3 (6%)
Hipertensão arterial sistêmica (n, %) 3 (6%)
Hipertensão pulmonar (n,%) 6 (12%)
Bloqueador de canal de cálcio (n,%) 28 (56%)

Tabela 2 Dados ecocardiográficos da amostra total de pacientes e de subgrupos com e sem disfunção diastólica 

Variáveis Total n = 50 Sem DD n = 25 Com DD n = 25 p
Raiz aorta (mm) 29 ± 3 29 ± 3 29 ± 3 0,631
Átrio esquerdo (mm) 36 ± 5 36 ± 4,7 3,7 ± 5,0 0,489
VAEi (cm/m2) 27 ± 8 24 ± 4,8 29 ± 10 0,417
Diâmetro diastólico VE (mm) 44 ± 5 43 ± 4 44 ± 6 0,06
PS (mm) 9,7 ± 1,2 9,5 ± 1,1 9,9 ± 1,3 0,247
PP (mm) 29 ± 4 9,5 ± 1,1 9,9 ± 1,3 0,768
Fração de ejeção do VE (%) 62 ± 7 63 ± 4 62 ± 3 0,172
Índice de massa do VE (g/m2) 88 ± 28 87 ± 20 90 ± 34 0,950
PSAP (mmHg) 30 ± 14 25 ± 7 35 ± 17 0,03
E (cm/s) 84 ± 19 88 ± 17 80 ± 22 0,137
A (cm/s) 79 ± 22 68 ± 13 91 ± 23 0,0001
E/A 1,1 ± 0,3 1,3 ± 0,27 0,9 ± 0,24 0,0001
TD (ms) 188 ± 44 162 ± 25 214 ± 45 < 0,0001
e' septal (cm/s) 8,5 ± 2,1 10,0 ± 1,6 7,1 ± 1,2 < 0,0001
e' lateral (cm/s) 11,6 ± 2,7 13,4 ± 2,3 9,9 ± 1,9 < 0,0001
E/e' septal 10,4 ± 3,6 8,9 ± 2,3 11,9 ± 4,1 0,005
E/e' lateral 7,7 ± 2,7 8,3 ± 3,3 7,1 ± 1,9 0,189

DD: disfunção diastólica; VAEi: volume indexado do átrio esquerdo; VE: ventrículo esquerdo; PS: parede septal; PP: parede posterior; PSAP: pressão sistólica da artéria pulmonar; E: onda diastólica de enchimento inicial; A: onda de enchimento tardio; TD: tempo de desaceleração da onda E; e’: onda diastólica inicial do Doppler tecidual. Teste t de Student não pareado utilizado para comparação entre subgrupos com e sem disfunção diastólica.

Os pacientes apresentavam uma prevalência bastante elevada de DD, com metade da população estudada (25 pacientes) apresentando algum grau de DD, sendo a maioria (17 pacientes, 34%) com DD leve (tipo I) e uma menor parte com DD tipo II (oito pacientes, 16%), como mostra a Figura 1. Nenhum paciente apresentava DD grau III.

Figura 1 A e B) Imagens de Doppler pulsado mostrando fluxo transmitral e de Doppler tecidual septal mostrando padrão diastólico normal. C e D) Imagens de Doppler tecidual mostrando onda e’ reduzida (7,4 cm/s), compatível com disfunção diastólica moderada (padrão pseudonormal). 

Os grupos com e sem DD não diferiram em relação ao sexo ou presença de HAS. Por outro lado, o grupo com DD era significativamente mais velho que o sem DD (58 ± 9 anos versus 46 ± 10 anos, respectivamente, p < 0,05). O tempo de duração da doença não diferiu significativamente entre os grupos, sendo a mediana dos tempo de duração da doença de 8 anos (IIQ 3,5 - 11,0 anos) para os pacientes sem DD e 11 anos (IIQ 6,0 - 16,5 anos) para aqueles com DD (p = 0,178; teste de Wilcoxon). O índice de massa do VE e o VAEi também foram similares em ambos os grupos. Entretanto, as ondas e' lateral e septal encontravam-se reduzidas apenas em pacientes com DD, resultando em uma relação E/e' septal aumentada. A relação E/e' lateral não diferiu entre os grupos. A pressão pulmonar também foi mais elevada no Grupo 2 (Tabela 2).

Quando analisamos os subgrupos em relação ao grau de DD, observamos que não foi apenas a idade que esteve relacionada à presença de DD (Figura 2); para os pacientes com DD moderada (tipo II), observamos que a duração da doença foi significativamente mais longa quando comparada à dos pacientes sem DD ou com DD discreta (p = 0,02) (Figura 2). Os pacientes sem DD e aqueles com DD discreta apresentavam duração da doença de 9 ± 7 anos e 9 ± 4 anos, respectivamente, comparados a 18 ± 14 anos entre os pacientes com DD moderada.

Figura 2 Relação entre o grau de disfunção diastólica e a duração da doença em anos (p = 0,02). 

Discussão

O acometimento cardíaco ocorre frequentemente na ES e está geralmente associado a um prognóstico mais reservado, representando a segunda causa mais comum de óbito, após o comprometimento pulmonar.14 Buscando estudar a presença de acometimento cardíaco precoce na ES, o presente estudo avaliou a frequência de DD em um grupo de pacientes com função sistólica preservada. Tem sido observado que o uso do Doppler tecidual associado à ecocardiografia convencional aumenta a acurácia diagnóstica deste método.6 Isto pode ser confirmado em nosso estudo, que observou a presença de DD em metade dos pacientes estudados, apesar desta população ter apresentado função sistólica preservada e baixa prevalência de outros fatores de risco para DD, como HAS, hipertrofia ventricular ou diabetes. Estudos populacionais que avaliaram a função diastólica em indivíduos na comunidade observaram que a DD está associada principalmente ao aumento da idade, porém é raramente encontrada na ausência de fatores de risco para anormalidades diastólicas, sendo incomum mesmo em indivíduos idosos.15 Similarmente, Kuznetsova et al.,16 em um estudo que avaliou a função diastólica na população geral, mostrou que em indivíduos na faixa etária de 50-59 anos (semelhante à de nosso estudo), a proporção de DD total chegava a 42%, sendo a DD tipo I (alteração do relaxamento) encontrada em cerca de 32% da população e a DD tipo II em aproximadamente 10% da mesma. Esses valores não foram muito diferentes daqueles encontrados em nossa amostra de pacientes com ES; a prevalência de DD foi de 50%, com 34% dos indivíduos apresentando DD tipo I, com prevalência possivelmente um pouco maior para a DD tipo II (16% dos pacientes com ES). Este estudo populacional encontrou, de maneira semelhante, uma associação entre DD com idade e índice de massa corpórea, além da presença de comorbidades, como pressão arterial elevada e aumento da creatinina. É importante enfatizar ainda que neste estudo, quase 70% dos pacientes com DD tipo I apresentavam HAS, sendo que esta proporção aumentou para quase 80% no subgrupo com DD tipo II. Por outro lado, somente três pacientes em nossa amostra apresentavam HAS e a ausência de outras comorbidades sugere fortemente que a DD esteja associada à ES. Mais recentemente, tem sido relatada uma maior prevalência de DD em pacientes com ES quando comparados a indivíduos de mesma idade na população geral. Meune et al.6 observaram a presença de DD discreta em 50% dos pacientes com ES, em comparação a 23% em um grupo controle. Um estudo realizado por Hinchcliff et al.9 observou alteração do relaxamento em somente 23% dos pacientes com ES, e sua presença esteve associada a uma maior mortalidade. Observamos ainda que o grau de DD foi leve na grande maioria dos pacientes, com poucos casos de DD moderada e nenhum paciente com DD importante. Esses achados sugerem que a doença em si cursa com mais frequência com alterações diastólicas sutis, prevalecendo a alteração do relaxamento ventricular com pressões intracardíacas ainda dentro dos limites da normalidade, como demonstrado pela relação E/e’ normal em grande parte dos casos.

A DD pode ser resultado de um envolvimento miocárdico primário na ES,16 ou pode se apresentar de forma secundária à HAS, hipertrofia do VE, doenças do pericárdio e doença coronariana.17 Em nosso grupo de pacientes, não havia um número significativo de hipertensos nem outras comorbidades associadas à DD, o que nos leva a crer que a causa provável desta anormalidade fosse o envolvimento cardíaco primário. A presença do índice de massa do VE dentro da normalidade em nossa amostra também corrobora a hipótese de que a própria evolução da doença seja a causa da disfunção cardíaca, afastando, assim, a hipertrofia do VE como causa da DD. Alterações estruturais primárias do miocárdio (fibrose) podem, por sua vez, causar DD. Tzelepis et al.,18 utilizando ressonância magnética cardíaca, mostraram a presença de realce tardio (compatível com fibrose) em cerca de 60% dos pacientes com ES, mesmo naqueles sem disfunção sistólica evidente. A presença de DD tem importância clínica na evolução dos pacientes com ES, uma vez que o envolvimento cardíaco na ES está associado ao aumento da mortalidade.9,19 Adicionalmente, o aumento das pressões diastólicas do VE é transmitido para o pulmão, com consequente hipertensão pulmonar. Durante o exercício, com o aumento das pressões diastólicas, a pressão pulmonar pode ficar ainda mais elevada, conforme demonstrado em pacientes com ES durante ecocardiografia com exercício,20 levando à piora de sintomas. É importante destacar, no entanto, que a ausência de DD no exame não exclui a presença de fibrose miocárdica.

Ao analisarmos os fatores associados à DD, observamos que os pacientes eram bastante semelhantes em relação às características clínicas, exceto em relação à maior prevalência de DD em indivíduos com mais idade. Inúmeras modificações na estrutura e função cardíaca decorrem do processo de envelhecimento, entre elas uma diminuição no número e aumento no tamanho dos miócitos, com resultante aumento do tecido conjuntivo.21,22 Além disso, miócitos mortos são substituídos por colágeno, com consequente fibrose intersticial, tornando o coração mais rígido e menos complacente, afetando, desta forma, o relaxamento diastólico. Quando comparamos os pacientes com e sem DD, observamos que não houve influência da duração da doença na DD. No entanto, ao analisarmos os subgrupos, observamos, além da idade, uma associação significativa da duração da doença com DD moderada. A associação entre fibrose miocárdica e maior tempo de doença pode estar relacionada a um maior número de crises de Raynaud cardíaco em pacientes com ES de longa duração, já que as sucessivas alterações vasculares isquêmicas contribuem para um aumento da fibrose. No entanto, nenhum dos pacientes, mesmo com um curso mais prolongado de doença, apresentou DD importante (padrão restritivo). É possível que este padrão de DD mais avançado seja encontrado em pacientes com disfunção sistólica do VE associada, porém estes casos não foram avaliados no presente estudo.

A análise da função cardíaca pela ecocardiografia é realizada de maneira simples e eficaz, possibilitando monitorização da doença e diagnóstico precoce de alterações como a DD, através do uso do Doppler convencional associado ao Doppler tecidual. Como o envolvimento cardíaco encontra-se associado a uma evolução mais grave, a demonstração deste acometimento pela ecocardiografia poderia indicar a necessidade de acompanhamento mais rigoroso desta população, além de ser utilizado como indicativo de melhora terapêutica.

Como limitação deste estudo, a relação entre a DD e fibrose miocárdica pode ser considerada apenas como hipotética, pois os pacientes não realizaram ressonância magnética para testar tal associação. O estudo teve um desenho transversal e, portanto, não temos ainda dados de longo prazo a respeito de prognóstico que possam ser associados à presença de DD neste grupo de pacientes.

Conclusão

A DD é frequentemente encontrada em pacientes com ES e função sistólica normal, é caracteristicamente de grau leve e está associada à idade mais avançada. A duração mais prolongada da doença esteve associada a um padrão mais acentuado de DD.

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