versão impressa ISSN 2359-4802versão On-line ISSN 2359-5647
Int. J. Cardiovasc. Sci. vol.30 no.2 Rio de Janeiro mar./abr. 2017
http://dx.doi.org/10.5935/2359-4802.20170037
A disfunção do ventrículo direito (VD) é encontrada em 30-50% dos pacientes com infarto do miocárdio de parede inferior (IM-I), e pode estar associada a bloqueio atrioventricular, instabilidade hemodinâmica e mortalidade intra-hospitalar.1,2 Nesses pacientes, a detecção precoce do comprometimento do VD exerce um papel chave no planejamento da melhor estratégia de tratamento e na determinação de um prognóstico favorável.1-3
A avaliação do VD por ecocardiografia é considerada difícil tecnicamente dada à limitação da janela acústica e características anatômicas próprias do VD.3,4 O método de ressonância magnética cardíaca (RMC) permite a visualização do VD de forma precisa e, por esse motivo, é considerado o método de escolha para se definir a extensão do dano no miocárdio e estimar o déficit funcional por meio de medidas altamente precisas e reprodutíveis.3-6
Após o infarto do miocárdio, o remodelamento cardíaco envolve uma reação inflamatória seguida de cicatrização no local do infarto.7 No entanto, o processo fibrótico causa rigidez do miocárdio e está associado com disfunção ventricular progressiva e mau prognóstico.7,8 A RMC pela técnica de realce tardio (TRT) tem sido amplamente utilizada em um grande número de estudos como o método de escolha para detecção e medida de fibrose miocárdica.9-12
Em pacientes com IM-I, portanto, a RMC foi estabelecida como o método de imagem padrão-ouro na avaliação da função do VD e da fibrose no miocárdio.9-12O presente estudo teve como objetivo avaliar a associação entre fibrose miocárdica e disfunção do VD em pacientes com IM-I, através de RMC.
Cinquenta e sete pacientes com infarto agudo do miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST e envolvimento da parede inferior (supradesnivelamento do segmento ST nas derivações D2, D3 e aVF no eletrocardiograma) foram recrutados prospectivamente no Hospital Ana Neri, Brasil, entre janeiro e dezembro de 2014. Pacientes que possuíam implantes metálicos incompatíveis com RMC, taxa de filtração glomerular (TFG) < 30 mL/min, claustrofobia grave ou hipersensibilidade ao gadolínio foram excluídos.
Dados clínicos incluindo idade, sexo, história familiar, comorbidades e fatores de risco cardiovasculares foram coletados retrospectivamente dos prontuários médicos. A RMC foi realizada durante a internação hospitalar para estimar os parâmetros de função do VD e para quantificar fibrose miocárdica. Foram medidos fração de ejeção do VD (FEVD), volume sistólico final, e volume diastólico final para estimar a função ventricular. A RMC através da TRT foi usada para medir fibrose miocárdica na parede inferior. Os pacientes foram estratificados quanto à função ventricular, e 'disfunção' do VD foi considerada como FEVD inferior a 40%.
O estudo foi aprovado pela comissão de ética da instituição e pelo Comitê de Ética Nacional. Consentimento informado foi obtido de todos os pacientes.
O exame de RMC foi realizado com os pacientes na posição supina, utilizando um aparelho de 1,5 T de todo o corpo (Avanto, Siemens Medical Solutions, Alemanha). Foi utilizada uma bobina de 8 canais para recepção dos sinais. Imagens exploratórias (scout images) foram obtidas para orientar a aquisição das imagens em quatro câmaras, três câmaras, duas câmaras, bem como cine-RM em eixo curto. Imagens do eixo curto em precessão livre no estado de equilíbrio (steady-state free precession, SSFP), sincronizadas com ECG, foram obtidas dos ventrículos, em apneia, com 20 imagens por ciclo cardíaco. Os parâmetros de aquisição foram: espessura de corte de 8 mm, campo de visão (FOV) de 300, matriz 128 x 128.
Conjuntos de imagens foram adquiridos utilizando-se de 8 a 12 cortes no plano do eixo curto (espessura do corte de 8 mm; intervalo entre os cortes de 2 mm), permitindo a cobertura de todo o volume cardíaco.
A RMC através da TRT permitiu a avaliação da fibrose miocárdica, como apresentado na Figura 1. Após a administração em bolus do contraste (Gadodiamide, Omniscan™, GE Healthcare) na dose de 0,2 mmol/kg, foram adquiridas imagens ponderadas em T1 por sequência inversão-recuperação, e gradiente-eco rápida com pequenos ângulos de excitação (tempo de eco 4,8 ms; tamanho do voxel 1.4×2.4×7 mm, ângulo de inclinação - flip angle - de 20º). O tempo de inversão foi cuidadosamente ajustado para "anular" o miocárdio normal, isto é, para otimizar o contraste entre o miocárdio normal e o infartado. Segmentos com realce tardio > 50% da espessura da parede foram considerados inviáveis.
Massa, volume e função sistólica ventricular, incluindo a FEVD, foram analisados pelas imagens obtidas por cine-RM e pelo programa ARGUS 4D VF. As imagens (frames) correspondentes às áreas sistólicas e diastólicas finais foram consideradas como a menor e a maior área da cavidade, respectivamente. Os contornos dos ventrículos foram manualmente traçados nas imagens sistólica e diastólica, considerando-se no mínimo 8 cortes da base ao ápice.
As regiões de interesse foram traçadas manualmente nas áreas de fibrose (Figura 2). A massa da fibrose foi obtida multiplicando-se essa área pela espessura do corte e pela densidade do miocárdio (1,05 g/ml).
As variáveis contínuas com distribuição normal foram expressas em média ± DP, e aquelas sem distribuição normal em mediana e intervalo interquartil. A normalidade da variável foi testada pelo teste de Kolmogorov-Smirnov. As variáveis categóricas foram apresentadas como contagens e porcentagens do total. As variáveis contínuas foram comparadas pelo teste t de Student para amostras independentes e as variáveis categóricas pelo teste exato de Fisher. O teste de correlação de Pearson foi aplicado para avaliar associação entre disfunção do VD e fibrose. Regressão logística multivariada foi realizada para determinar os preditores da disfunção do VD. Valores de p < 0,05 foram considerados significativos. Análise estatística foi realizada pelo programa Statistical Package for the Social Sciences, versão 17.0.
Cinquenta e sete pacientes foram selecionados entre janeiro e dezembro de 2014 seguindo nossos critérios de inclusão. O exame de RMC foi realizado em 40 pacientes, e 17 foram excluídos devido à impossibilidade de realização do exame ou aspectos técnicos de seus exames (Figura 3).
Figura 3 Fluxograma do recrutamento dos pacientes TFG: taxa de filtração glomerular; RMC: ressonância magnética cardíaca.
Dos 40 pacientes incluídos no estudo, 30 (75%) eram do sexo masculino, e 18 (45%) eram idosos (idade ≥ 60 anos) (Tabela 1). Vinte e dois pacientes (55%) eram hipertensos, 12 (30%) apresentavam doença arterial coronariana, 10 (25%) diabetes mellitus, 10 (25%) insuficiência cardíaca, 10 (25%) eram obesos, e 8 (20%) apresentavam dislipidemia. Além disso, 16 pacientes (40%) tinham história de tabagismo, e 3 pacientes (8%) história de acidente vascular cerebral (Gráfico 1).
Tabela 1 Características clínicas da população estudada
Variáveis | n = 40 |
---|---|
Demográficas | |
Idade (média ± SD) | 58 ± 8 |
Idade ≥ 60 (n, %) | 18 (45) |
Homens (n, %) | 30 (75) |
Clínicas | |
Hipertensão arterial sistêmica (n, %) | 22 (55) |
Diabetes mellitus (n, %) | 10 (25) |
Dislipidemia (n, %) | 8 (20) |
Obesidade (n, %) | 10 (25) |
Tabagismo (n, %) | 16 (40) |
Insuficiência cardíaca (n, %) | 10 (25) |
Acidente vascular cerebral (n, %) | 3 (8) |
Doença arterial coronariana (n, %) | 12 (30) |
A Tabela 2 descreve a função do VD e as variáveis analisadas por RMC através da TRT. O volume sistólico final médio foi 45 ± 24 mL, o volume diastólico final médio foi 84 ± 34 mL, e a fração de ejeção média foi 44 ± 12%. Treze pacientes apresentaram disfunção do VD. A área de fibrose média obtida por RMC foi 20 ± 12 mm2, a massa de fibrose média foi 17 ± 10 g, e a média de segmentos não viáveis foi 3 ± 2.
Tabela 2 Função ventricular e variáveis analisadas por ressonância magnética cardíaca aravés da técnica de realce tardio
Variáveis | n = 40 |
---|---|
Fração de ejeção (%) | 44 ± 12 |
Fração de ejeção < 40 (n, %) | 13 (33) |
Volume sistólico final (ml) | 45 ± 24 |
Volume diastólico final (ml) | 84 ± 34 |
Segmentos não viáveis | 3 ± 2 |
Área de fibrose (mm2) | 20 ± 12 |
Massa de fibrose (g) | 17 ± 10 |
De acordo com a correlação de Pearson, a massa de fibrose e a FEVD estavam indiretamente correlacionadas, porém, sem significância estatística (r = -0,3; p = 0,08). A análise por regressão logística multivariada mostrou que idade, sexo e hipertensão estavam positivamente correlacionados com FEVD, enquanto que dislipidemia e diabetes estavam negativamente correlacionados, sem significância estatística (Tabela 3). Além disso, havia uma correlação negativa entre FEVD e massa de fibrose (p = 0,05).
Tabela 3 Preditores de modelo de regressão da disfunção ventricular direita
Variáveis | B | p |
---|---|---|
Massa de fibrose | -0,167 | 0,05 |
Idade | 0,048 | 0,503 |
Sexo | 0,148 | 0,927 |
Tabagismo | -3,883 | 0,075 |
Hipertensão | 0,579 | 0,676 |
Dislipidemia | -21,984 | 0,999 |
Diabetes | -0,401 | 0,794 |
Os pacientes foram estratificados por função do VD, e ambos os grupos do estudo possuíam características clínicas similares (Tabela 4). O teste t de Student mostrou que a área média de fibrose e a massa média de fibrose eram maiores no grupo de pacientes com disfunção do VD (p = 0,092, p = 0,051, respectivamente). Não houve diferença estatisticamente significativa no número de segmentos não viáveis entre os grupos.
Tabela 4 Comparação das características clínicas e variáveis da ressonância magnética cardíaca entre os grupos do estudo
Variáveis | Disfunção do ventrículo direito | p | |
---|---|---|---|
Sim (n = 13) | Não (n = 26) | ||
Demográfica, n (%) | |||
Idade ≥ 60 | 5 (38) | 12 (46) | 0,473 |
Sexo (masculino) | 9 (69) | 20 (77) | 0,613 |
Clínica, n (%) | |||
Hipertensão arterial sistêmica | 5 (39) | 16 (61) | 0,358 |
Diabetes mellitus | 2 (15) | 7 (27) | 0,475 |
Dislipidemia | 0 (0) | 8 (30) | 0,154 |
Obesidade | 2 (15) | 5 (19) | 0,953 |
Tabagismo | 4 (31) | 12 (46) | 0,481 |
Insuficiência cardíaca | 3 (23) | 6 (23) | 0,559 |
Acidente vascular cerebral | 1 (7) | 2 (7) | 0,537 |
Doença arterial coronariana | 3 (23) | 8 (31) | 0,543 |
Variáveis da RMC (Média ± SD) | |||
Segmentos não viáveis | 4 ± 3 | 3 ± 2 | 0,464 |
Área de fibrose (mm2) | 25 ± 14 | 18 ± 10 | 0,092 |
Massa de fibrose (g) | 22 ± 12 | 15 ± 8 | 0,051 |
RMC: ressonância magnética cardíaca.
Estudos recentes investigaram o impacto negativo da disfunção do VD em pacientes com IM-I, uma vez que essa condição é considerada um preditor de mortalidade independente nesses pacientes.13 A avaliação da disfunção do VD bem como de seus preditores permite a identificação precoce de indivíduos com maior chance de atingirem piores desfechos e pior prognóstico. O presente estudo está de acordo com estudos prévios,14-17 ao confirmar a capacidade da RMC de avaliar precisamente a função do VD, e quantificar fibrose miocárdica.
Em nosso grupo de pacientes, composto majoritariamente de homens e idosos, hipertensão foi o fator de risco cardiovascular mais prevalente (55%), seguido de tabagismo (40%), diabetes mellitus (25%), e insuficiência cardíaca (25%). Smarz et al.18 relataram uma prevalência similar desses fatores de risco cardiovasculares em uma amostra de 90 pacientes com IM-I, com exceção de dislipidemia, cuja prevalência foi de 70%, diferentemente da encontrada em nosso estudo, de 20%.
No presente estudo, a disfunção do VD foi evidente em 33% dos casos com IM-I, similar à prevalência de 32% relatada em estudos prévios com 50 pacientes com IM-I.19,20 Considerando que as características clínicas eram similares entre pacientes com disfunção do VD e pacientes com função ventricular preservada, nosso estudo pôde investigar, com relativa precisão, a associação entre função do VD e fibrose miocárdica.
Nosso estudo mostrou uma correlação negativa entre FEVD e variáveis como tabagismo, dislipidemia, diabetes e massa de fibrose. A análise revelou uma forte tendência à associação entre FEVD e massa de fibrose (p = 0,05), indicando que uma maior massa de fibrose está relacionada a menor FEVD. Esse resultado sugere a fibrose como um possível preditor de disfunção do VD.
Além disso, o presente estudo demonstrou uma tendência importante à maior massa de fibrose em pacientes com disfunção do VD em comparação aos pacientes com função ventricular preservada (22 ± 12 g vs 15 ± 8 g, p = 0,051). Tal resultado indica uma possível associação entre disfunção do VD e fibrose miocárdica na parede inferior, com importância clínica e prognóstica em pacientes com IAM-I. Associação semelhante foi relatada em estudo de Kaandorp et al.,21 cujos resultados mostraram valores superiores de volume diastólico final do VD no grupo de pacientes com maiores valores médios da massa de fibrose.
O pequeno tamanho da nossa amostra é a principal limitação dos nossos achados. Outra importante limitação é o número de pacientes excluídos (30%) por falta de dados da RMC. Portanto, outros estudos com maior número de pacientes são necessários para confirmar nossos achados.
A RMC parece ser um método adequado de estratificação de risco de pacientes com IM-I e disfunção do VD. Nossos resultados indicam uma possível associação entre fibrose miocárdica na parede inferior do VD e disfunção do VD em pacientes com IM-I. Contudo, novos estudos, incluindo um maior número de pacientes, são necessários para confirmar esses achados.