versão impressa ISSN 0101-2800
J. Bras. Nefrol. vol.36 no.3 São Paulo jul./set. 2014
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20140043
A doença renal crônica (DRC) atinge todas as faixas etárias e sua prevalência vem aumentando nos últimos anos, sendo considerada, portanto, um problema de saúde pública. Deve-se ressaltar que a DRC é silenciosa e na maior parte dos casos o diagnóstico não é feito nas fases iniciais da doença.1
A DRC é progressiva e pode levar à falência renal, entretanto, a progressão da doença pode ser prevenida ou retardada. Por esta razão, é necessário identificar pacientes com alterações da função renal em seu estágio precoce, em particular aqueles com maior chance de progressão para DRC,2 e iniciar o tratamento para evitar as complicações mais frequentes da doença e prevenir a evolução precoce para o óbito.3
Na cidade de Tubarão, SC, existem 97.235 habitantes, segundo estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística;4 na localidade, não existem estudos populacionais avaliando a função renal em idosos.
A avaliação inicial da função renal pode ser feita por meio da dosagem da creatinina plasmática. A variação biológica da creatinina é muito pequena, em torno de 4%5 e a variação analítica é inferior a 2%. Este método diagnóstico é bastante simples, mas a normalidade não constata função renal normal por ser um parâmetro tardio de detecção de doença renal.6 Há fórmulas desenvolvidas para determinar a estimativa da filtração glomerular7 e o estadiamento da doença8 baseando-se na creatinina sérica. A equação utilizada foi CKD-EPI (Chronic Kidney Disease Epidemiology Collaboration), apontada por uma revisão sistemática9 recente como uma das mais utilizadas na prática médica para cálculo de função renal.
O objetivo do estudo foi avaliar a função renal dos pacientes idosos, a partir da fórmula de CDK-EPI e presença de fatores associados a estas alterações.
O presente estudo foi aprovado Comitê de Ética em Pesquisa da Unisul, em respeito à Resolução 196 de 1996 do Conselho Nacional de Saúde, sob protocolo 09.345.4.01.III.
Foi realizado um estudo epidemiológico com delineamento transversal de base populacional. A amostra estudada foi proveniente do projeto ESITU (Estudo de Saúde dos Idosos de Tubarão), realizado no período entre setembro de 2010 e maio de 2011. O ESITU é um estudo que teve por objetivo avaliar a situação de saúde e qualidade de vida dos idosos residentes no município de Tubarão (SC).
Para composição da amostra, foram utilizados os idosos cadastrados pelos agentes comunitários de saúde atuantes nas diferentes áreas do programa Estratégia de Saúde da Família, que possui cobertura de mais de 90%, totalizando 9.009 idosos residentes em Tubarão. O tamanho da amostra foi calculado considerando a prevalência de alteração da função renal pela taxa de filtração glomerular em 25,2%,10 margem de erro igual a 5%, resultando em amostra mínima de 281 indivíduos para nível de confiança de 95%, e de 474 para nível de confiança de 99%. Os participantes foram selecionados por amostragem aleatória simples.
Foram incluídos no estudo pessoas com 60 anos (completados em 2010) ou mais, residentes no município de Tubarão (SC) e que aceitaram participar do estudo e da coleta de sangue. Foram excluídos os indivíduos com problemas cognitivos (doença mental ou degenerativa), impossibilitados de responder aos questionamentos feitos ou autonomia para decidir sobre sua participação no estudo.
Os idosos sorteados foram convidados a participar do estudo pelos agentes comunitários de saúde, que mediante anuência foram submetidos à entrevista para aplicação do questionário. O instrumento continha dados sociodemográficos e socioeconômicos (idade, sexo, cor da pele, situação conjugal, situação de trabalho e escolaridade) e dados comportamentais (atividade física, uso de álcool e cigarro). Ao final, foi agendada data para comparecimento à Unidade Básica de Saúde do seu bairro de residência para a coleta de sangue, aferição da pressão arterial e das medidas antropométricas.
Foi considerado tabagista o indivíduo que fez o consumo de 100 ou mais cigarros durante toda sua vida.11 Entre os idosos que afirmaram consumir ou já ter consumido álcool, foi aplicado o questionário CAGE.12,13 Esse instrumento é composto por quatro perguntas. Duas ou mais respostas afirmativas é indicativo de alcoolismo.
Foram considerados fisicamente ativos indivíduos que realizavam, pelo menos, 30 minutos de atividade física em cinco dias da semana ou mais, resultando em ponto de corte de 150 ou mais minutos de atividade física semanal, conforme a recomendação europeia.14
A pressão arterial foi medida utilizando esfignomanômetro digital OMRON modelo HEM - 742INT, com o paciente sentado. Foram realizadas duas aferições com intervalo de 15 minutos. Foi considerada a média aritmética das duas medidas da PA para determinação dos níveis pressóricos.15 A linha demarcatória que definiu hipertensão arterial sistêmica (HAS) considerou valores de PA sistólica maior ou igual 140 mmHg e/ou de PA diastólica maior ou igual a 90 mmHg, ou uso de anti-hipertensivo.16
Foram coletados 10 ml de sangue venoso periférico para dosagem da creatinina sérica e glicemia de jejum, por profissional tecnicamente capacitado. Foi recomendado jejum de 12 horas e que evitassem o consumo de álcool nas 72 horas anteriores a coleta de sangue. Os exames foram processados pelo Laboratório de Análises Clínicas da Universidade do Sul de Santa Catarina.
A função renal foi avaliada por meio da creatinina sérica, sendo a taxa de filtração glomerular estimada (TFGE) pela fórmula de CKD-EPI17 e então a função renal foi classificada como descrito a seguir:18
Função renal normal: > 90 ml/min/1,73 m2; Insuficiência renal leve ou funcional: 60-89 ml/min/1,73 m2; Insuficiência renal laboratorial ou moderada: 30-59 ml/min/1,73 m2; Insuficiência renal grave ou clínica: 15-29 ml/min/1,73 m2; Insuficiência renal terminal ou dialítica: < 15 ml/min/1,73 m2. Para fins de análise, a variável de estimativa da taxa de filtração glomerular renal determinada pela fórmula de CKD-EPI foi utilizada de forma dicotômica com ponto de corte em < 60 ml/min/1,73 m2 para dano renal e acima deste valor como função renal normal.
A determinação de diabetes mellitus foi feita com base no uso de hipoglicemiante oral ou insulina, bem como pela determinação sérica da glicemia de jejum ≥ 126 mg/dl de sangue.19
Foi realizada a aferição do peso corporal em quilogramas com os indivíduos trajando roupas leves e sem sapatos. A medida da altura foi realizada em centímetros com os pacientes em pé, no centro da balança, ereto e imóvel, olhando para um ponto fixo no horizonte, aferidos pelo equipamento da marca Wiso modelo W71. O índice de massa corporal (IMC) foi calculado pela razão de peso (kg)/altura2 (cm) e classificado conforme os valores estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde,20 considerando como obeso o indivíduo com IMC maior ou igual a 30 kg/m2.
O cálculo de tamanho de amostra foi realizado utilizando o programa OpenEpi versão 2.3.1 (Open Source Epidemiologic Statistics for Public Health). Os dados coletados foram inseridos no programa EpiData versão 3.1 (Epi Data Association, Odense, Denmark), de domínio público, e a Análise estatística foi feita com o software Statistical Package for Social Sciences (SPSS for Windows v 18; Chicago, IL, USA). As variáveis foram descritas como medidas de tendência central e dispersão, no caso de variáveis quantitativas. As variáveis qualitativas foram descritas em números absolutos e proporções. Para se verificar associação entre as variáveis de interesse, foi aplicado teste de qui-quadrado para as variáveis qualitativas e teste t de Student na comparação entre médias. Para a avaliação da correlação entre os resultados da fórmula de CG e idade, foi realizado teste de correlação de Pearson. Foi realizada análise multivariada por regressão de Poisson modificada com estimador robusto para controle das variáveis de confusão. O nível de significância estatística foi p < 0,05.
A Figura 1 apresenta a seleção dos participantes do estudo.
Foram estudados 822 idosos com média de idade 68,6 (DP = 7) anos, variando de 60 a 92 anos de idade. A Tabela 1 apresenta as características sociodemográficas dos participantes do presente estudo.
Tabela 1 Características sociodemográficas dos participantes
n | % | |
---|---|---|
Idade em anos | ||
60-69 | 502 | 61,0 |
70-79 | 248 | 30,2 |
> 79 | 72 | 8,8 |
Sexo | ||
Homem | 316 | 38,4 |
Mulher | 506 | 61,6 |
Etnia | ||
Brancos | 758 | 92,2 |
Não brancos | 64 | 7,8 |
Escolaridade | ||
0-4 anos | 614 | 74,6 |
> 4 anos | 206 | 25,1 |
Ignorado | 2 | 0,2 |
Do total, 40,3% dos idosos tomavam ou já haviam tomado bebida alcoólica ao longo da vida. Entre os classificados como fumantes, 22,5% eram fumantes atuais e 77,5% eram ex-fumantes. Entre os idosos estudados, 70,4% tinha diagnóstico médico prévio de hipertensão arterial sistêmica. A Tabela 2 descreve a presença de comorbidades na população estudada.
Tabela 2 Prevalência de comorbidades detectadas entre os idosos participantes do estudo
Comorbidades | n (%) | IC 95% |
---|---|---|
Obesidade | 299 (37,3) | 33,9-40,7 |
Diabetes mellitus | 196 (23,8) | 20,6-26,9 |
Diagnóstico de HAS | 698 (86,9) | 84,4-89,2 |
Sedentarismo | 680 (82,8) | 79,7-85,2 |
Alcoolismo | 83 (10,1) | 8,1-12,1 |
Tabagismo | 333 (40,7) | 37,3-44,2 |
IC: Intervalo de confiança.
A Tabela 3 apresenta a classificação de doença renal crônica na população idosa estudada a partir da fórmula de CKD-EPI.
Tabela 3 Distribuição da classificação da taxa de filtração glomerular estimada pela fórmula CKD-EPI
Classificação | n (%) | IC 95% |
---|---|---|
Função renal normal | 215 (26,2%) | 23,2-29,3 |
Insuficiência renal leve ou funcional | 495 (60,2%) | 56,8-63,5 |
Insuficiência renal moderada ou laboratorial | 107 (13,0%) | 10,8-15,5 |
Insuficiência renal grave ou clínica | 4 (0,5%) | 0,0-1,0 |
Insuficiência renal terminal ou dialítica | 1 (0,1%) | 0,0-0,4 |
IC: Intervalo de confiança.
A Tabela 4 apresenta análise bruta e ajustada das variáveis associadas à diminuição da taxa de filtração glomerular, estimada pela fórmula de CKD-EPI para avaliação da função renal.
Tabela 4 Análise bruta e ajustada das variáveis associadas à diminuição da taxa de filtração glomerular
Variáveis | RP bruto (IC 95%) | Valor de p | RP ajustado* (IC 95%) | Valor de p |
---|---|---|---|---|
Idade | 1,01 (1,01-1,02) | < 0,001 | 1,01 (1,01-1,02) | < 0,001 |
Sexo masculino | 1,03 (0,98-1,07) | 0,222 | ||
Raça branca | 1,03 (0,96-1,10) | 0,482 | ||
Fisicamente ativos | 0,98 (0,93-1,04) | 0,532 | ||
Obesos | 1,04 (1,00-1,09) | 0,057 | 1,07 (1,02-1,12) | 0,003 |
Alcoolistas | 1,04 (0,97-1,12) | 0,238 | ||
Tabagismo | 1,07 (1,03-1,12) | 0,002 | 1,07 (1,03-1,12) | 0,001 |
HAS | 1,12 (1,08-1,16) | < 0,001 | 1,06 (1,01-1,10) | 0,010 |
DM | 1,05 (1,00-1,10) | 0,063 | 1,01 (0,96-1,06) | 0,750 |
RP: Razão de prevalência; IC: Intervalo de confiança; HAS: Hipertensão arterial sistêmica; DM: Diabetes mellitus.
*Variáveis ajustadas para idade, IMC, tabagismo, hipertensão arterial sistêmica e diabetes mellitus.
A Figura 2 apresenta a correlação entre a idade e a taxa de filtração glomerular estimada pela fórmula de CKD-EPI.
Figura 2 Gráfico de dispersão que apresenta a correlação entre a idade e a taxa de filtração glomerular determinada pela fórmula de CKD-EPI. R de Pearson = -0,41, p < 0,001.
Na comparação entre médias, idosos que apresentaram taxa de filtração glomerular normal tinham média de idade de 68 anos, e aqueles com taxa de filtração glomerular < 60 ml/min/1,73 m2 apresentaram média de idade de 73 anos (p < 0,001).
O presente estudo demonstrou que 13,6% da população estudada apresentava TFG menor que 60 ml/min/1,73 m2, similar a outros estudos. Bowling et al.21 realizaram estudo com idosos dos Estados Unidos e revelaram prevalência de 39% dos participantes com danos renais. Fu et al.22 conduziram um estudo na China com a população idosa e encontraram a prevalência de 43% de disfunção renal, também utilizando a fórmula CDK-EPI. No Brasil, há poucos estudos estimando o dano renal na população geral, e os mesmos diferem quanto aos critérios utilizados para identificação das DRC. No entanto, sabe-se que o número de pacientes que se submetem a tratamento dialítico cresce anualmente no território nacional.23
O presente estudo mostrou que mais da metade dos participantes apresentava algum dano renal mesmo que classificado como discreto. A razão desta elevada prevalência pode ser atribuída à presença de comorbidades decorrentes do processo de envelhecimento24 e que prejudicam a função renal.25 A função renal tende a diminuir com o avançar da idade, conforme foi apresentado, sendo fator independente para diminuição da taxa de filtração glomerular, corroborando com dados da literatura.26,27 Este declínio de função renal com o envelhecimento pode ser explicado por um processo fisiológico do envelhecimento orgânico acompanhado de mudanças estruturais do sistema renal.25
A Análise estatística do presente estudo apresentou associação significativa entre HAS e diminuição da taxa de filtração glomerular, concordando com os achados de Zhang et al.,28 que demonstraram que os fatores que estão associados a danos renais são hipertensão, diabetes e doenças cardiovasculares.
A prevalência de HAS na população estudada foi bastante elevada, e uma das limitações do presente estudo foi a aferição da pressão arterial ter sido realizada em um único momento, não levando em consideração os critérios diagnósticos sugerido pelas Diretrizes Brasileira de HAS,29 que sugerem duas aferições em momentos diferentes. Estudo30 realizado no mesmo município com população mais jovem encontrou prevalência de 40,5% de HAS nos participantes. Contudo, cabe ressaltar que boa parte dos idosos com HAS tinha diagnóstico médico prévio à pesquisa e, com o aumento da idade, há aumento da ocorrência de HAS na população.
Embora seja comum na literatura a associação entre a presença de diabetes mellitus e dano renal, o presente estudou não encontrou significância estatística neste resultado. Estudos realizados apenas com pacientes diabéticos demonstraram prevalência elevadas de taxa de filtração glomerular menor que 60 ml/min/1,73 m2 e correlação entre diabetes e dano renal.31,32
No presente estudo, não houve diferença quanto à função renal entre os sexos, o que concorda com dados de outros autores.27,33,34
No presente estudo não houve diferença estatisticamente significativa entre função renal e raça. Entretanto, Peralta et al.,35 em estudo com 5.179 pacientes, concluíram que os negros tiveram maiores taxas de declínio da função renal, independentemente de outras características sociodemográficas ou fatores de risco tradicionais. Possivelmente a falta de associação estatística entre etnia e função renal se deve ao fato de que houve predomínio de brancos na amostra, devido à colonização europeia em Santa Catarina.4
Em relação aos hábitos adotados pelos idosos, o presente estudou não demonstrou associação positiva entre alcoolismo e diminuição da taxa de filtração glomerular, mas o tabagismo foi fator independente para taxa de filtração glomerular < 60 ml/min/1,73 m2, como já foi documentado.36
Em relação aos indicadores antropométricos, pacientes considerados obesos tiveram diminuição da função renal em comparação aos eutróficos, concordando com a literatura que obesidade é um importante fator de risco para hiperfiltração glomerular e progressão para doença renal crônica.37
Vale ressaltar algumas limitações do presente estudo, como sendo de delineamento transversal que retratou os pacientes em um único momento não seguindo as Diretrizes de DRC,8 que definem como doença renal crônica duas medidas de taxa de filtração glomerular inferior a 60 ml/min/1,73 m2 em duas verificações com pelo menos 3 meses de intervalo. Contudo, como triagem ambulatorial em amostra populacional, este estudo contribui para retratar a realidade local, e pode revelar que os idosos de fato apresentam declínio das funções renais, sendo necessária a atenção e o acompanhamento da saúde desta população para que as medidas preventivas e terapêuticas possam ser iniciadas precocemente. A literatura permanece escassa quanto ao grau de função renal, principalmente em idosos.
O presente estudo concluiu que a grande maioria dos idosos estudados tinha alguma alteração de taxa de filtração renal, sendo que 13,6% tinha disfunção de grau moderado ou superior. A idade mais avançada, tabagismo, HAS e obesidade se associaram positivamente e de forma independente à diminuição da taxa de filtração glomerular.