versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.113 no.4 São Paulo out. 2019 Epub 02-Set-2019
https://doi.org/10.5935/abc.20190176
A cardiomiopatia hipertrófica (CMH) é a doença cardíaca de origem genética mais frequente na população mundial, com prevalência de, pelo menos, 1/500. A associação com hipertensão arterial sistêmica (HAS) não é incomum, uma vez que esta acomete aproximadamente 25% da população mundial. A maioria dos estudos objetiva o diagnóstico diferencial entre essas doenças, mas pouco se sabe sobre a magnitude dessa associação.
Comparar o strain longitudinal global (SLG) do ventrículo esquerdo em pacientes portadores de CMH com e sem HAS associada.
Estudo transversal retrospectivo que incluiu 45 pacientes portadores de CMH e fração de ejeção preservada, com diagnóstico confirmado por ressonância magnética, sendo 14 hipertensos. Realizada avaliação ecocardiográfica transtorácica com ênfase na análise da deformação miocárdica do ventrículo esquerdo por meio do SLG. Valores de p < 0,05 foram considerados estatisticamente significativos.
A deformação do ventrículo esquerdo foi significativamente menor nos hipertensos quando comparada aos normotensos (-10,29 ± 2,46 vs. -12,35% ± 3,55%, p = 0,0303), indicando maior comprometimento da função ventricular naquele grupo. A média de idade também foi significativamente maior nos hipertensos (56,1 ± 13,9 vs. 40,2 ± 12,7 anos, p = 0,0001). A disfunção diastólica foi melhor caracterizada nos pacientes hipertensos (p = 0,0242).
A deformação miocárdica foi significativamente menor no grupo de pacientes com CMH e HAS, sugerindo maior comprometimento da função ventricular. Esse achado pode estar relacionado a um pior prognóstico com evolução precoce para insuficiência cardíaca. Estudos prospectivos são necessários para confirmar essa hipótese.
Palavras-chave: Função Ventricular Esquerda; Cardiomiopatia Hipertrófica; Hipertensão; Strain; Insuficiência Cardíaca
Hypertrophic cardiomyopathy (HCM) is the most common heart disease of genetic origin in the world population, with a prevalence of at least 1/500. The association with systemic arterial hypertension (SAH) is not uncommon, as it affects approximately 25% of the world population. Most studies aim at the differential diagnosis between these diseases, but little is known about the magnitude of this association.
To compare left ventricular global longitudinal strain (GLS) in HCM patients with and without associated SAH.
Retrospective cross-sectional study that included 45 patients with HCM and preserved ejection fraction, with diagnosis confirmed by magnetic resonance imaging, including 14 hypertensive patients. Transthoracic echocardiography was performed, with emphasis on left ventricular myocardial strain analysis using GLS. In this study, p < 0.05 was considered statistically significant.
Left ventricular strain was significantly lower in hypertensive individuals compared to normotensive individuals (-10.29 ± 2.46 vs. -12.35% ± 3.55%, p = 0.0303), indicating greater impairment of ventricular function in that group. Mean age was also significantly higher in hypertensive patients (56.1 ± 13.9 vs. 40.2 ± 12.7 years, p = 0.0001). Diastolic dysfunction was better characterized in hypertensive patients (p = 0.0242).
Myocardial strain was significantly lower in the group of patients with HCM and SAH, suggesting greater impairment of ventricular function. This finding may be related to a worse prognosis with early evolution to heart failure. Prospective studies are required to confirm this hypothesis.
Keywords: Ventricular Function, Left; Cardiomyopathy, Hypertrophic; Hypertension; Strain; Heart Failure
Os primeiros casos de cardiomiopatia hipertrófica (CMH) foram publicados na década de 1860, na França, relacionados à obstrução do trato de saída do ventrículo esquerdo.1 Em 1957, Brock foi o autor do primeiro relato baseado em achados hemodinâmicos, cirúrgicos e de necropsia, descrevendo a doença como estenose aórtica subvalvar com obstrução funcional do ventrículo esquerdo, podendo estar relacionada à hipertensão arterial sistêmica (HAS).2 Em 1958, Teare publicou a primeira descrição histopatológica da CMH obstrutiva.3 A forma não obstrutiva foi descrita por Braunwauld et al., em 1963, e confirmada por estudos subsequentes.4,5
Atualmente, a CMH é definida como a doença miocárdica primária de origem genética com a maior prevalência na população mundial (pelo menos 1/500), sem distinção de raça, sexo ou faixa etária, sendo a principal causa de morte súbita em jovens.5,6 Decorre da mutação de um ou mais genes do sarcômero, apresentando significativa diversidade na expressão fenotípica e curso clínico. Caracteriza-se pelo aumento da espessura da parede ventricular que não possa ser explicada somente por uma condição de sobrecarga, sendo mais frequente a forma não obstrutiva da doença.5,7
A HAS acomete aproximadamente 25% da população mundial. Dados do VIGITEL (2006 a 2014) e da Organização Mundial de Saúde confirmam essa prevalência na população brasileira.8,9 Devido à alta prevalência de HAS, não é incomum a associação de HAS e CMH.
O diagnóstico diferencial entre CMH e cardiopatia hipertensiva tem sido um desafio em muitas situações onde a expressão fenotípica destas doenças se assemelha.10 Neste contexto, o ecocardiograma tornou-se uma importante ferramenta, notadamente com o advento de novas tecnologias, como a análise da deformação miocárdica (strain), que auxilia no diagnóstico diferencial. Além disso, a análise do strain longitudinal global (SLG) detecta alterações precoces da função ventricular antes que haja comprometimento da fração de ejeção.11,12 O objetivo deste estudo foi comparar o SLG do ventrículo esquerdo em pacientes portadores de CMH, com e sem HAS, e avaliar o impacto dessa associação na função ventricular.
Realizado um estudo transversal retrospectivo entre setembro de 2014 e abril de 2016 em pacientes acompanhados no ambulatório de cardiologia do Hospital Universitário Pedro Ernesto - UERJ - com diagnóstico de CMH. Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa, com o Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) número 23561113.2.0000.5259, estando de acordo com a Declaração de Helsinki de 1975, atualizada em 2013. Todos os pacientes que aceitaram participar do estudo leram e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.
Os critérios de inclusão foram: diagnóstico de CMH confirmado por ressonância magnética (RM), idade superior a 18 anos, fração de ejeção (FE) ventricular esquerda preservada (>55%), ausência de intervenções para redução septal e ausência de marca-passo ou desfibrilador. Foram excluídos pacientes com fibrilação atrial e doença arterial coronariana conhecida.
A confirmação diagnóstica pela RM com gadolínio foi baseada na distribuição da hipertrofia e no padrão de realce tardio.13 Uma amostra de conveniência foi, então, composta por 45 pacientes, sendo 22 (48,9%) do sexo masculino, com idade média de 45,1 ± 13,9 anos. Nesse grupo, 14 (31,1%) apresentavam HAS previamente diagnosticada segundo as diretrizes brasileiras de HAS.8 O fluxograma com a seleção de pacientes está demonstrado na Figura 1.
O exame ecocardiográfico transtorácico foi realizado no equipamento da Philips® iE33 Matrix, utilizando o transdutor matricial na frequência de 3-1 MHz por um examinador experiente. A análise do ecocardiograma unidimensional, bidimensional e Doppler foi realizada seguindo as recomendações da Sociedade Americana de Ecocardiografia.14
Para definição do tipo de hipertrofia ventricular esquerda, foi utilizada a classificação ecocardiográfica de Maron et al.,15 que divide a hipertrofia em tipos I, II, III e IV (Figura 2). O padrão obstrutivo foi considerado para gradientes, na via de saída do ventrículo esquerdo, maiores que 30 mmHg, mensurados ao Doppler contínuo, em repouso e após manobra de Valsalva.5 A abordagem da função diastólica e das pressões de enchimento ventricular seguiu as recomendações da Sociedade Americana de Ecocardiografia para pacientes portadores de CMH.16
Maron BJ. et al. Am J Cardiol. 1981 Sep;48(3):418-28.
Figura 2 Classificação fenotípica originalmente descrita por Maron. Tipo I: hipertrofia envolvendo o septo basal; Tipo II: hipertrofia envolvendo todo o septo; Tipo III: hipertrofia envolvendo o septo e ao menos parte da parede livre do ventrículo esquerdo (posterior, anterior ou lateral); Tipo IV: outras localizações isoladas (posterior, apical ou lateral).
Na análise da deformação miocárdica, foi utilizada a técnica de strain baseada no rastreamento de pontos (speckle tracking). O strain é calculado para cada segmento do ventrículo esquerdo como a média relativa da deformação entre dois pontos. Em sendo uma medida de deformação, é expresso em percentuais negativos (-%); quanto mais próximo do 0, menor a deformação. Foram considerados normais valores de deformação menores que -18%. Analisou-se somente o SLG por ser mais amplamente utilizado e considerado um índice robusto para estudos clínicos. Além disso, o SLG é primeiro a ser comprometido na maioria das cardiopatias, incluindo a CMH, quando a fração de ejeção ainda está preservada.12
O protocolo ecocardiográfico para a realização do SLG incluiu os cortes apicais 4 câmaras, 3 câmaras e 2 câmaras. A análise do SLG foi processada offline, utilizando o software QLab 9.0 da Philips®. Esses resultados foram traduzidos em forma de curvas, uma para cada segmento ventricular, e a visão geral, com a quantificação das velocidades, foi expressa em um mapa (Bull’s eye), exemplificado na Figura 3.
Figura 3 Curvas do pico sistólico do strain longitudinal global no corte apical quatro câmaras (à esquerda) e a imagem paramétrica do ventrículo esquerdo no bulls-eye (à direita), em paciente com CMH e HAS.
Os exames ecocardiográficos foram armazenados e as imagens revisadas, sendo o examinador e o revisor autores do estudo. A análise do strain foi repetida pelo revisor em todos os exames. A variabilidade intraobservador e interobservador foi avaliada utilizando-se o coeficiente de variação (CV = 100 (s/x) (%)). Obtivemos uma boa concordância e os coeficientes foram considerados baixos (<10%).
Os dados coletados foram alocados em uma tabela do Microsoft Excel™, sendo posteriormente analisados no programa R Studio, versão 1.0.143. As distribuições das variáveis contínuas foram expressas utilizando-se a média e o desvio padrão como medidas de tendência central e de dispersão, para cada um dos grupos analisados. Para avaliar se existia diferença entre os grupos, o teste t de Student (não pareado) foi utilizado, após atender ao pressuposto de igualdade de variâncias pelo teste de Levene. Para as variáveis categóricas, optou-se por abordagem não paramétrica, onde a diferença entre proporções foi avaliada pelo teste de X 2 (com correção de Yates) e pelo teste exato de Fisher. Nos casos onde havia mais de duas categorias, utilizou-se o teste de Kruskal-Wallis. Valores de p < 0,05 foram considerados estatisticamente significativos.
De 55 pacientes consecutivos, inicialmente elegíveis, 10 foram excluídos: 6 por fibrilação atrial, que prejudica a análise do SLG, 2 por doença arterial coronariana conhecida, que também interfere na análise do strain, e 2 cujo diagnóstico de CMH não foi confirmado pela RM. As características gerais dos pacientes estão resumidas na Tabela 1. Um conjunto de gráficos com os principais resultados estão demonstrados na Figura 4. A média de idade foi maior no grupo de hipertensos, assim como o índice de massa corporal (IMC) e a média das pressões sistólica e diastólica foram maiores nesse grupo. Não foram observadas diferenças significativas em relação ao sexo e classe funcional entre os grupos.
Tabela 1 Características dos pacientes com CMH nos diferentes grupos
Variáveis | Normotensos (n = 31) | Hipertensos (n = 14) | p |
---|---|---|---|
Idade (anos) | 40,16 ± 12,73 | 56,14 ± 13,87 | 0,0001 |
Sexo masculino | 15 (48 %) | 7 (50%) | 0,9323 |
IMC (kg/m2) | 25,6 ± 3,97 | 29,2 ± 2,93 | 0,0045 |
PAS (mmHg) | 113 ± 12 | 128 ± 12 | 0,0004 |
PAD (mmHg) | 71 ± 9 | 81 ± 9 | 0,0027 |
Classe Funcional (NYHA) | 0,1110 | ||
I | 12 (38,7%) | 2 (14,3%) | |
II | 19 (61,29%) | 11 (78,57%) | |
III | 0 (0%) | 1 (7,14%) | |
Tipo de hipertrofia | 0,1492 | ||
I | 5 (16,1%) | 2 (14,3%) | |
II | 12 (38,7%) | 2 (14,3%) | |
III | 12 (38,7%) | 6 (42,9%) | |
IV | 2 (6,5%) | 4 (28,5%) | |
Obstrução TSVE | 9 (29%) | 6 (43%) | 0,5133 |
Medicamentos | |||
Betabloqueador | 22 (70%) | 12 (86%) | 0,4578 |
IECA | 2 (6,45%) | 4 (28,57%) | 0,0651 |
BRA | 1 (3,23%) | 11 (78,57%) | < 0,0001 |
Antagonista de cálcio | 2 (6,45%) | 5 (35,71%) | 0,0226 |
Nitrato | 1 (3,23%) | 1 (7,14%) | 0,0503 |
Hidralazina | 0 (0%) | 1 (7,14%) | 0,3111 |
Diurético | 0 (0%) | 8 (57,14%) | < 0,0001 |
Valores expressos em média±desvio padrão ou em proporção, quando indicado. IMC: índice de massa corporal; PAS: pressão arterial sistólica; PAD: pressão arterial diastólica; NYHA: New York Heart Association; IECA: inibidor da enzima de conversão de angiotensina; BRA: bloqueador do receptor de angiotensina.
Figura 4 Gráficos com os principais resultados dos pacientes com cardiomiopatia hipertrófica (CMH) com e sem hipertensão arterial sistêmica (HAS) associada. O STRAIN analisado é o strain longitudinal global. HVE se refere aos tipos de hipertrofia ventricular esquerda (I, II, III e IV) e função diastólica se refere aos tipos I, II e III.
Em relação aos achados ecocardiográficos, destacam-se menor deformação nos hipertensos (-10,29% ± 2,46) em relação aos normotensos (-12,35% ± 3,55), indicando maior comprometimento da função ventricular naquele grupo (p = 0,0303). Embora todos os pacientes apresentassem a FE preservada, a média do diâmetro sistólico do ventrículo esquerdo (DSVE) foi maior nos hipertensos, mas ainda dentro dos limites normais.
A disfunção diastólica foi mais evidente nos pacientes hipertensos (p = 0,0242), com menor número de casos indeterminados. Observou-se, nos hipertensos, maior tempo de relaxamento isovolumétrico (TRIV), menor relação E/A no fluxo mitral, assim como uma menor relação E/e’ septal ao Doppler tecidual do anel mitral. A média do volume atrial esquerdo estava aumentada em ambos os grupos, porém sem diferença significativa entre eles (Tabela 2).
Tabela 2 Dados ecocardiográficos
Variáveis | Normotensos (n = 31) | Hipertensos (n = 14) | p | |
---|---|---|---|---|
Medidas | ||||
DDVE (cm) | 4,56 ± 0,66 | 4,76 ± 0,60 | 0,3485 | |
DSVE (cm) | 2,42 ± 0,49 | 3,45 ± 0,46 | 0,0008 | |
S/PP | 2,03 ± 0,65 | 1,63 ± 0,44 | 0,0425 | |
Volume AE (ml/m2) | 37,76 ± 17,14 | 38,97 ± 16,79 | 0,8245 | |
VD (cm) | 1,70 ± 0,43 | 1,71 ± 0,31 | 0,9757 | |
FE% (Teichholz) | 80,18 ± 5,76 | 74,01 ± 9,90 | 0,0116 | |
E (cm/s) | 78,23 ± 16,30 | 76,13 ± 26,83 | 0,7465 | |
A (cm/s) | 50,92 ± 16,92 | 80,70 ± 22,71 | < 0,001 | |
E/A | 1,57 ± 0,56 | 0,96 ± 0,25 | 0,0003 | |
TDE (ms) | 241,90 ± 79,15 | 261,00 ± 66,23 | 0,4363 | |
TRIV (ms) | 119,94 ± 24,90 | 141,50 ± 35,08 | 0,0228 | |
e’ septal (cm/s) | 5,75 ± 1,30 | 4,43 ± 0,95 | 0,0015 | |
e’ lateral (cm/s) | 8,37 ± 2,79 | 7,21 ± 3,47 | 0,2386 | |
E/e’ septal | 13,98 ± 4,26 | 17,45 ± 6,21 | 0,0327 | |
E/e’ lateral | 10,18 ± 3,81 | 12,90 ± 6,81 | 0,0926 | |
E/e’ média | 12,40 ± 3,73 | 15,71 ± 6,21 | 0,0696 | |
Classificação da função diastólica | ||||
Indeterminada | 41,9% | 7,1% | 0,0242 | |
Grau 1 | 12,9% | 50,0% | ||
Grau 2 | 41,9% | 42,9% | ||
Grau 3 | 3,2 % | 0,0% |
Valores expressos em média ± desvio-padrão ou em proporção, quando indicado. DDVE: diâmetro diastólico do ventrículo esquerdo; DSVE: diâmetro sistólico do ventrículo esquerdo; S/PP: relação septo interventricular/parede posterior; AE: átrio esquerdo; VD: ventrículo direito; FE: fração de ejeção; TSVE: trato de saída do ventrículo esquerdo; E: onda E do fluxo mitral; A: onda A do fluxo mitral; TDE: tempo de desaceleração da onda E; TRIV: tempo de relaxamento isovolumétrico; e’: onda e do Doppler tecidual do anel mitral.
Na análise do tipo de hipertrofia, na amostra geral, o tipo III foi o mais frequente (40%), seguido pelo tipo II (31%), I (15,7%) e IV (13,3%), mas não foi observada diferença significativa entre os grupos em relação ao tipo de hipertrofia. Nesta amostra, não havia nenhum caso de hipertrofia concêntrica. Também não foi observada diferença significativa entre os grupos em relação à obstrução do trato de saída do ventrículo esquerdo, sendo maior o percentual da forma não obstrutiva na amostra geral (66,7%).
A média pressórica foi maior no grupo de hipertensos. Nesse grupo, nove pacientes (64%) apresentavam aumento da pressão arterial antes da realização do exame, sendo o valor máximo aferido de 144x92 mmHg. No grupo sem hipertensão, seis pacientes (19%) apresentavam pequena elevação da pressão arterial, sendo o maior valor aferido de 135x84 mmHg.
Em relação às medicações utilizadas, nota-se o emprego de maior número de medicações pelo grupo de hipertensos, com destaque para os bloqueadores do receptor de angiotensina, antagonistas do cálcio e diuréticos. Nenhum paciente estava em uso de drogas cardiotóxicas ou que interferissem na função ventricular.
O achado da redução significativa da deformação miocárdica, no grupo de hipertensos, sugere que esses pacientes apresentam maior comprometimento da função ventricular. A detecção precoce da disfunção ventricular esquerda com fração de ejeção preservada só foi possível pelo emprego da técnica de strain, não utilizada em estudos anteriores. Antes do advento do strain, não eram observadas alterações significativas na comparação entre esses grupos. Em um estudo realizado em 1989 por Karan et al.,17 foram avaliados 78 pacientes com diagnóstico de CMH ao ecocardiograma e por cateterismo cardíaco, sendo 39 hipertensos. O achado mais relevante foi maior hipertrofia nos pacientes hipertensos, sugerindo que a HAS possa incrementar a hipertrofia na CMH. Esse estudo foi importante para definir a existência da cardiomiopatia hipertrófica com hipertensão, a qual era descrita anteriormente como cardiomiopatia hipertrófica hipertensiva.
Em 1998, Dimitrow et al.18 publicaram um estudo com 123 pacientes com CMH, sendo 19,5% hipertensos, em que foi avaliada somente a classe funcional, e se observou que a associação de HAS foi mais frequente nos idosos, porém não rara nos jovens, e estes apresentavam pior classe funcional. Em outro trabalho, que não utilizou a técnica de strain, os achados ecocardiográficos foram semelhantes entre os grupos e a HAS também foi mais frequente nos idosos.19
Em 2014, Gonçalves et al.20 realizaram a análise do SLG em um grupo de 229 hipertensos puros, sem CMH e com FE preservada, e observaram uma redução do SLG em 15,3% dos pacientes. Contudo, não foram encontrados estudos na literatura utilizando a técnica de strain para comparar pacientes com CMH com e sem HAS associada. Além de detectar alterações precoces da função ventricular, o comprometimento do strain pode ser um preditor de arritmia ventricular. Em uma publicação com 400 pacientes com CMH, os que apresentavam SLG >-10% tiveram quatro vezes mais chance de eventos que pacientes com SLG ≤-16%.21 Alterações regionais do strain na CMH também podem ser preditoras de arritmia, como demonstrado por Correia et al.22 Em um estudo com 32 pacientes, observou-se que o strain médio septal >-10% teve sensibilidade de 89% e especificidade de 74% para o desenvolvimento de taquicardia ventricular não sustentada, independentemente da idade ou espessura máxima da parede. Essas alterações regionais do strain podem estar relacionadas a áreas com maior percentual de fibrose na ressonância magnética, sendo um potencial substrato para o desenvolvimento de arritmias.23,24
A disfunção diastólica foi mais evidente nos pacientes hipertensos nesta amostra. Os hipertensos apresentaram maior percentual de disfunção grau I ou II e menor percentual de casos indeterminados, segundo as recomendações mais recentes para avaliação da função diastólica.15 Deve-se ressaltar que o volume atrial esquerdo, um importante parâmetro na avaliação da função diastólica,15,25,26 estava aumentado em ambos os grupos na média, sem diferença significativa entres eles. Isto traduz, a princípio, que a maioria dos pacientes apresentava algum grau de disfunção diastólica, porém esta foi melhor definida nos hipertensos.
Em relação ao tipo de hipertrofia, na classificação proposta por Maron et al.,14 que avaliou 125 pacientes, o tipo mais frequente foi o tipo III (52%), seguido pelos tipos II (20%), IV (18%) e I (10%). Em outro estudo, Reant et al.27 avaliaram 271 pacientes utilizando essa classificação, e o tipo mais frequentemente observado foi o II (47%), seguido pelos tipos III (35%), I (11%) e IV (7%). Encontramos um percentual semelhante à classificação de Maron em relação aos tipos mais frequentes de hipertrofia, ou seja, tipos III e II, seguidos pelos tipos I e IV.
No grupo de hipertensos, foi maior a média de idade, o que pode ter influenciado na avaliação da função diastólica e, talvez, na análise do strain. Alguns estudos demostram que a deformação miocárdica apresenta pequena redução com a idade.28,29 Outros não observaram uma relação clara entre deformação miocárdica e idade.30,31
Observamos que a média pressórica foi maior no grupo de hipertensos, porém ainda não existe definição na literatura sobre se a elevação da pressão arterial no momento do exame pode influenciar a análise do strain.
A técnica de strain necessita de ritmo cardíaco regular para que possa ser empregada, o que limita sua utilização em algumas situações, como na fibrilação atrial, o que levou à exclusão de alguns pacientes. No grupo de hipertensos, a média de idade foi maior e pode ter interferido na análise do strain e na análise da função diastólica. Por fim, um seguimento a longo prazo poderia fornecer mais informações sobre o comportamento da função ventricular, uma vez que nosso estudo foi transversal.
Os pacientes com CMH e HAS apresentaram menor deformação miocárdica, sugerindo maior comprometimento da função ventricular esquerda, mesmo com fração de ejeção preservada. Este achado pode estar relacionado a um pior prognóstico, com evolução precoce para insuficiência cardíaca e/ou surgimento de arritmias ventriculares. Estudos prospectivos são necessários para confirmar essa hipótese.