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Avaliação da intensidade e desconforto da sede perioperatória

Avaliação da intensidade e desconforto da sede perioperatória

Autores:

Isadora Pierotti,
Isabela Fernanda Larios Fracarolli,
Lígia Fahl Fonseca,
Patrícia Aroni

ARTIGO ORIGINAL

Escola Anna Nery

versão impressa ISSN 1414-8145versão On-line ISSN 2177-9465

Esc. Anna Nery vol.22 no.3 Rio de Janeiro 2018 Epub 21-Maio-2018

http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2017-0375

Introdução

Descrita como um sintoma multifatorial, a sede apresenta elevada prevalência no período pós-operatório imediato (POI), chegando a 75% entre os pacientes adultos.1 Está relacionada às sensações que geram desconforto intenso como boca seca, saliva viscosa e fadiga corporal.2-5 A presença deste sintoma envolve respostas motivacionais como a agradabilidade da ingesta hídrica durante as refeições e estados emocionais, como a ansiedade que desencadeia a redução da produção salivar. Esses fatores impelem o ser humano a buscar por líquidos e são influenciados por condições do ambiente, de saúde e de doença. Sua percepção passa tanto por fatores fisiológicos controlados por um complexo mecanismo regulatório, como também por hábitos pessoais.4,5

A sede é usualmente mensurada na prática clínica e em pesquisas por meio de escalas de autoavaliação. Foram encontradas altas correlações entre a intensidade da sede com os seus atributos3 e com as alterações de osmolaridade e a liberação do hormônio antidiurético (ADH).6 Isso demonstra que a avaliação subjetiva da intensidade da sede pode representar um indicativo das alterações fisiológicas causadas por ela.

Pode-se avaliar a intensidade da sede através de escalas análogas às de mensuração da dor, como: escala visual analógica (EVA), escala verbal numérica (EVN), escala de descritores verbais (EDV) e escala de faces (EF) da dor.7-9

A sede é considerada um dos maiores distressores para o paciente no POI.10 Na tentativa de descrever a magnitude do desconforto que ela causa nesse período, os pacientes utilizam figuras de linguagem, identificando-se como "um camelo atravessando o deserto" ou verbalizando que têm, "a sensação de ter ingerido um tubo de cola". Acresce-se que as sensações descritas pelo paciente cirúrgico diante da falta de perspectiva de saciar a sua sede, devido ao jejum mandatório que envolve o período cirúrgico, são de desespero e até de pensamentos de morte.11 Paradoxalmente para a equipe de enfermagem e anestesiologia, a sede do paciente cirúrgico ainda é um sintoma de menor relevância.12,13

Entre as várias necessidades fisiológicas, uma das mais primárias do ser humano e essencial para a manutenção de seu estado de conforto é a de ingestão de água. Por outro lado, o termo conforto é relacionado com a satisfação de alguma necessidade humana básica, como, por exemplo, o resultado da ausência ou controle da dor, do sofrimento e de preocupação, proporcionando um estado de equilíbrio. Já a presença desses fatores pode se associar ao sentido da palavra desconforto.14 O paciente cirúrgico, em presença da sede, fica em desequilíbrio que se manifesta por sinais e sensações subjetivas e por atributos como boca seca, garganta seca, vontade de beber água, entre outros.2,3,8

Com o propósito de avaliar, de modo intencional, os atributos relacionados à sede no período perioperatório, desenvolveu-se e validou-se uma escala denominada Escala de Desconforto da Sede Perioperatória (EDESP),8 que apresentou altos índices de validade e fidedignidade no tocante ao paciente cirúrgico. O índice de validade de conteúdo dessa escala foi de 0,98 e o de fidedignidade inter-avaliadores foi de 1. O instrumento mostrou-se confiável, com o coeficiente de kappa ponderado de 1 para os itens e alfa de Cronbach de 0,91 para a escala.8

A EDESP avalia os atributos: boca seca, lábios ressecados, língua grossa, saliva grossa, garganta seca, gosto ruim na boca e vontade de beber água em uma escala Likert de três pontos, de fácil utilização no período perioperatório, principalmente quando o paciente está se recuperando da anestesia.8 Estudos a respeito da sede enfocam, via de regra, a intensidade, mas falham em identificar e analisar a presença e intensidade dos desconfortos que ela provoca.

Dentre os fatores considerados preditores para a presença de sede no período perioperatório encontra-se o uso de medicamentos anestésicos, sobretudo opioides e anticolinérgicos e o tempo de jejum pré-operatório.15,16 Há escassez de dados sobre as associações entre essas variáveis preditoras com o desconforto relacionado à sede.

A mensuração da intensidade da sede apresenta correlação positiva com as alterações osmolares e plasmáticas que deflagram a liberação do hormônio antidiurético (ADH), considerado um dos principais hormônios que regulam a sede.6 Dessa forma, embora a avaliação da intensidade por meio de escalas visuais numéricas e analógicas seja subjetiva, ela reflete um estado de alterações sanguíneas que controlam a gênese e a saciedade da sede. Mensurá-la subjetivamente, portanto, é um método prático e largamente utilizado nos estudos laboratoriais e clínicos de avaliação da sede humana.3

Todavia, por ser um sintoma multifatorial não pode ser mensurada, apenas, por sua intensidade. Existe uma lacuna nos estudos que investiguem a relação dessa intensidade com o desconforto que a sede propicia e seus fatores associados no paciente cirúrgico. Esta análise pode ampliar a compreensão sobre esse complexo sintoma, tornando explícitos quais atributos da sede mais incomodam este grupo de pacientes. Desta forma, espera-se responder a seguinte questão: Há relação entre a intensidade de sede e seus desconfortos com os fatores associados à presença deste sintoma no POI?

Este estudo teve, portanto, como objetivo avaliar a intensidade e o desconforto da sede perioperatória e fatores associados durante a recuperação anestésica.

Método

Trata-se de um estudo quantitativo, transversal, descritivo. A população pesquisada compreendeu pacientes cirúrgicos no POI, internados no hospital selecionado para o estudo. A amostra foi não probabilística totalizando 203 participantes. Para o tamanho amostral, não foi realizado o cálculo de amostra mínima, utilizando-se como critério o tempo estabelecido de quatro meses para a coleta.

Os critérios de inclusão estabelecidos foram: pacientes de ambos os sexos com idade superior a 18 anos, submetidos à cirurgias eletivas, de urgência e emergência, que estivessem no POI na Sala de Recuperação Anestésica (SRA), orientados quanto ao tempo e espaço e que verbalizassem sede espontaneamente ou quando questionados. Participaram do estudo, adultos e idosos. No entanto, houve menor participação da população idosa uma vez que a maioria destes pacientes é encaminhada da sala de cirurgia para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI) ao invés da SRA, local onde ocorreu a coleta dos dados. O critério de exclusão foi o relato de dor no momento da coleta, pois esse sintoma pode influenciar na avaliação da sede pelo próprio paciente.

O estudo foi realizado na SRA de um hospital universitário de nível terciário, no estado do Paraná, no período de fevereiro a maio de 2016. Trata-se de um hospital público com 316 leitos, referência regional para atendimento de queimados, transplante de medula óssea, gravidez de alto risco e trauma. Comporta um Centro Cirúrgico (CC) com sete salas operatórias, sendo uma delas específica para cirurgias de urgência/emergência e uma SRA com seis leitos. O CC em questão realiza uma média mensal de 500 cirurgias.

Para a coleta de dados, utilizou-se um roteiro com informações sobre a identificação pessoal e o ato anestésico-cirúrgico, a EVN e a EDESP. Os pacientes eram convidados a participar da pesquisa assim que chegavam à sala de preparo pré-operatório do centro cirúrgico, onde aguardaram até o momento de serem encaminhados à sala cirúrgica. Após o aceite, assinavam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Já no POI, na SRA, a coleta de dados iniciou-se após avaliação dos participantes sendo que deveriam estar, sem auxilio de oxigenoterapia, conscientes e alertas, em condições de responder às perguntas. No primeiro momento, foram questionados quanto à presença de sede e à sua intensidade, por meio da EVN com pontuação de 0 a 10, em que 0 representou a sua ausência e 10 a pior sede. Na presença de sede, procedeu-se à avaliação do desconforto pela EDESP. Aplicou-se a escala perguntando-se ao participante o quanto aquele atributo o incomodava, sendo 0 "nada incomodado(a)", 1 "um pouco incomodado(a)" e 2 "muito incomodado(a)". A pontuação da escala vai de 0 a 14 e quanto maior a pontuação, maior o incômodo.

A coleta foi realizada por duas autoras deste estudo, integrantes do Grupo de Estudo e Pesquisa da Sede (GPS) da instituição em questão, com conhecimento sobre o tema e experiência no cuidado do paciente em POI. Realizou-se um teste piloto com cinco participantes para refinamento do roteiro, sendo que não houve necessidade de alterações. Os participantes do teste piloto foram excluídos desse estudo.

Os dados passaram por dupla digitação em planilha de Excel e foram analisados pelo software Statistical Package for the Social Science (SPSS), versão 20.0. As variáveis qualitativas investigadas (sexo, clínica cirúrgica, classificação do risco cirúrgico pela American Society of Anaesthesiologists (ASA), técnica anestésica, utilização de opioides, anticolinérgico, caráter de atendimento, presença de sede e queixa espontânea) foram descritas pela frequência de distribuição dos participantes entre as categorias existentes.

As distribuições de normalidade das variáveis envolvidas no estudo foram determinadas pelo teste de Shapiro-Wilk. As variáveis numéricas foram apresentadas por meio de média e intervalo interquartílico: idade, tempo de jejum pré-operatório de sólidos e líquidos, intensidade da sede e pontuação da EDESP. Como os dados não apresentaram distribuição normal, para correlacionar idade, tempo de jejum pré-operatório e uso de opioide com a intensidade da sede e seus desconfortos, foi utilizado o teste ρ (rho) de Spearman para amostras independentes. A significância foi estipulada em 5% (p ≤ 0,05).

O estudo atendeu aos requisitos formais contidos nos padrões regulatórios nacionais e internacionais de pesquisa envolvendo seres humanos e iniciou-se após a leitura e a assinatura do TCLE pelos participantes. O projeto recebeu a aprovação de um Comitê de Ética em Pesquisa em fevereiro de 2016, CAAE número: 51012415.3.0000.5231.

Resultados

Dos 203 participantes, 182 apresentaram sede, representando uma prevalência de 89,6%. Destes, 63,7% pertenciam ao sexo feminino. A média de idade foi 41,5 (dp 15.8). Em relação ao caráter de atendimento, 60,9% foram cirurgias eletivas e 39,1% de urgência. As clínicas cirúrgicas mais frequentes foram ginecologia e obstetrícia (31,8%), seguidas da ortopedia (23%) e urologia (15,9%). A maioria dos participantes (52,7%) foi classificada como ASA II. A técnica anestésica mais utilizada foi a raquianestesia (52,7%); 95% dos participantes receberam opioides e 32,4% anticolinérgicos. A Tabela 1 apresenta as variáveis de caracterização da amostra dos pacientes que apresentaram sede.

Tabela 1 Caracterização dos pacientes cirúrgicos que apresentaram sede na Sala de Recuperação Anestésica de acordo com as variáveis clínico-cirúrgicas. 

Variáveis Média Dp
Idade em anos 41,5 15,8
N %
Sexo
Feminino 116 63,7
Masculino 66 36,3
Clínica cirúrgica
Ginecologia e Obstetrícia 58 31,8
Ortopedia 42 23,0
Urologia 29 15,9
Outras 53 29,3
Classificação do risco cirúrgico (ASA)*
I 81 44,5
II 96 52,7
III 5 2,8
Caráter de atendimento
Cirurgias Eletivas 111 60,9
Urgências 71 39,1
Uso de Opioide
Sim 173 95,0
Não 9 5,0
Uso de Anticolinergico
Sim 59 32,4
Não 123 67,6
Técnica Anestésica
Raquianestesia 96 52,7
Geral Balanceada 46 25,2
Raquianestesia + Geral 2 1,0
Bloqueio Peridural + Geral 15 8,2
Outras 23 12,9

*Classificação do risco cirúrgico segundo a American Society of Anaesthesiologists.

Nos resultados da Tabela 2, encontram-se distribuídos os participantes que apresentaram sede e relataram-na espontaneamente, o tempo de jejum pré-operatório para líquidos e sólidos, a intensidade da sede e a do desconforto.

Tabela 2 Caracterização de pacientes cirúrgicos na Sala de Recuperação Anestésica quanto à presença, intensidade e desconfortos da sede.  

Variáveis N %
Presença de Sede
Sim 182 89,6
Não 21 10,4
Relato Espontâneo
Sim 22 12,0
Não 160 88,0
Média DP
Tempo de jejum pré-operatório para líquidos (em horas) 16,2 8,7
Tempo de jejum pré-operatório para sólidos (em horas) 17,3 9,0
Intensidade de Sede (pontos)* 6,9 2,4
Intensidade do Desconforto (pontos)** 7,3 3,7

*Escala verbal numérica, pontuação de 0 a 10;

**Escala de Desconforto da Sede Perioperatória, pontuação de 0 a 14.

Os dados apresentados mostram que dos 182 participantes que apresentaram sede, apenas 22 (12%) verbalizaram-na espontaneamente. Encontrou-se elevado tempo de jejum pré-operatório para líquidos, com média de 16,2 horas, assim como para sólidos, com média de 17,3 horas. A intensidade média de sede foi de 6,9 (dp 2,4), enquanto que a intensidade dos desconfortos apresentados teve média de 7,3 (dp 3,7).

Na Tabela 3 estão discriminados os atributos avaliados pela EDESP e sua intensidade de desconfortos. Com respeito a esses, pode-se observar que os sete atributos avaliados foram citados pelos pacientes. Boca seca e vontade de beber água foram os mais prevalentes (87,3%), seguidos por lábios ressecados (79,1%), garganta seca (75,2%), gosto ruim na boca (63,1%), saliva grossa (56,5%) e língua grossa (43,4%).

Tabela 3 Atributos avaliados pela EDESP* e sua intensidade de desconforto em pacientes cirúrgicos na Sala de Recuperação Anestésica.  

Atributos da EDESP* N % Intensidade de Desconforto
Nada Pouco Muito
N N N
Boca seca 159 87,3 23 79 80
Lábios ressecados 144 79,1 38 78 66
Língua Grossa 79 43,4 103 53 26
Saliva grossa 103 56,5 79 61 42
Garganta seca 137 75,2 45 72 65
Gosto ruim na boca 115 63,1 67 51 64
Vontade de beber água 159 87,3 23 55 104

*Escala de Desconforto da Sede Perioperatória.

A Tabela 4 apresenta a correlação de fatores relacionados à presença de sede com sua intensidade e a de seus desconfortos.

Tabela 4 Correlação entre idade e tempo de jejum para líquidos e sólidos com intensidade da sede e intensidade dos desconfortos da EDESP* em pacientes cirúrgicos na Sala de Recuperação Anestésica.  

Variáveis Intensidade de sede Intensidade de desconforto
Coeficiente** p valor Coeficiente** p valor
Idade -,122 ,101 -,129 ,083
Tempo de jejum pré-operatório para líquidos ,101 ,174 ,028 ,704
Tempo de jejum pré-operatório para sólidos ,076 ,309 ,077 ,300
Uso de opióides ,020 ,793 -,044 ,553
Uso de anticolinérgico -,010 ,987 ,057 ,447

*Escala de Desconforto da Sede Perioperatória;

**Teste ρ (rho) de Spearman.

Não houve relação estatisticamente significativa entre as variáveis idade, tempo de jejum, uso de opioides e anticolinérgicos com a intensidade de sede e seus desconfortos. Porém, esse estudo apresentou correlação positiva e moderada (Spearman = 0,474) entre a intensidade da sede e a pontuação da EDESP.

Discussão

A relevância deste estudo evidencia-se pelo olhar intencional para averiguar a presença e intensidade da sede no paciente cirúrgico no POI e, ainda, para discriminar os atributos que compõem esse desconforto. Na presente pesquisa, observou-se que todos os atributos mensurados pela EDESP foram identificados pelos pacientes, o que indica que essa escala pode ser um instrumento útil para identificar o desconforto causado pela sede perioperatória. Além disso, não foi avaliada, unicamente, a intensidade da sede - usualmente investigada em estudos sobre esse tema - mas também a correlação entre essa intensidade e a mensuração dos atributos referentes ao desconforto provocados por ela, que impactam de forma considerável o momento de recuperação de uma cirurgia.

A sede pode ser definida como o desejo consciente de beber água.17 Sua percepção e o comportamento de ingestão hídrica podem ser motivados por diferentes fatores, dentre os quais aspectos fisiológicos, diferenças individuais, desejo de interromper a sensação de boca seca e características pessoais relacionadas a enterocepção.4,5,18

O paciente cirúrgico vivencia a sede enquanto um fator distressor de acordo com sua cultura, conhecimento, orientações pré-operatórias, experiências anteriores, entre outros fatores.5 A sua percepção, como resultado de estímulos hormonais e neurais, assim como a percepção da dor, apresenta um limiar que varia de acordo com a particularidade de cada indivíduo e com a experiência que vivencia.5

A prevalência da sede foi elevada neste estudo sendo maior que em outra pesquisa em sala de recuperação anestésica.1 A magnitude deste problema, portanto, é grande e merece ser olhada com intencionalidade. Alguns desafios precisam ser superados ao se avaliar a sede, sendo o primeiro deles a relevância conferida a esse sintoma por parte da equipe. No momento da recuperação anestésica, considera-se que outros sintomas como dor, náusea e hipotermia requerem maior atenção por indicar possíveis complicações.12,13

A prevalência da sede neste estudo e os relatos do próprio paciente demostram o quanto esse sintoma pode ser perturbador no POI. Considerada um sintoma multifatorial, a sede pode ser desencadeada por fatores individuais, emocionais e fisiológicos.4,19 Destaca-se que o tempo em que o paciente permanece em jejum operatório, o uso de opioides e anticolinérgicos podem estar associados aos mecanismos que deflagram a sede em pacientes cirúrgicos.15,16

Estudos realizados com pacientes em pós-operatório de cirurgias cardíacas em UTI citaram a sede como importante estressor. É considerada por eles angustiante e estressora, interferindo em sua recuperação.20 Esse grupo de pacientes classificou "ter sede" como o primeiro estressor dentre os 50 avaliados.10

O jejum pré-operatório foi uma variável avaliada neste estudo. Essa conduta é indicada para prevenir a aspiração pulmonar do conteúdo gástrico, devido à perda de reflexos protetores da via aérea em consequência dos medicamentos anestésicos.21,22 A aspiração pulmonar é uma complicação temida pela equipe cirúrgica e este pode ser outro fator associado ao elevado tempo de jejum usualmente praticado. No entanto, esta não é uma conduta adequada, pois o jejum prolongado aumenta a produção de suco gástrico e diminui ainda mais seu pH, resultando em maior risco de complicações como broncoaspiração.22

A recomendação de jejum para procedimentos cirúrgicos é de duas horas para líquidos claros e de seis horas para alimentos sólidos não gordurosos.21 No presente estudo não foi evidenciado qualquer correlação entre tempo de jejum e intensidade e o desconforto da sede. No entanto, obteve-se como resultado uma média de jejum muito acima da recomendada, cerca de 14 horas a mais para líquidos e 11 horas a mais para alimentos sólidos.

Todos os participantes, portanto, apresentaram um mínimo de oito horas de jejum, podendo esse ser um dos fatores que dificultou a analise das variáveis em relação ao tempo de jejum menor. Esse achado corrobora os resultados de estudo anterior em que foi encontrado uma variação de 8 a 37 horas de jejum pré-operatório.1 Dentre os fatores que podem ter contribuído para os resultados em relação ao jejum no presente estudo, é que a coleta de dados realizou-se em um hospital escola com elevadas taxas de suspensão cirúrgica,23 o que resulta na manutenção do jejum por períodos prolongados.

Outra variável avaliada foi a utilização de opioides e anticolinérgicos. Um dos efeitos adversos desses medicamentos é o desencadeamento da sede por diminuição da produção de saliva, que resulta no ressecamento da cavidade oral.15,16 Neste estudo não houve correlação significativa entre o uso de anticolinérgicos e opioides com a intensidade da sede e seus desconfortos. Sugere-se que outras investigações comparativas sejam conduzidas entre grupos semelhantes, grupo controle e experimental, para avaliar de maneira fidedigna se há associação de seu uso com a intensidade da sede e seus desconfortos, assim como para investigar se há relação dose-dependente na associação desses fatores.

Dentre as condições individuais que possam influenciar na sensação de sede, tem-se a idade do participante. O envelhecimento altera a percepção da sede,4 uma vez que, em condições de calor, exercício e trauma, idosos relatam menos sede e demandam tempo maior para recuperar o equilíbrio de fluidos.24 Mesmo em situações em que é permitido beber livremente, os idosos ingerem menor quantidade de água. Esse fato pode acontecer devido ao medo de incontinência, à inacessibilidade aos banheiros e imobilidade.3 Neste estudo, não houve associação estatística da idade e intensidade da sede e seus desconfortos. Para melhor compreensão dessa variável, são necessários estudos com cálculo de tamanho amostral que permita elucidar essa questão. Nesta pesquisa, devido à amostra pequena de idosos, não foi possível analisar a sede em pessoas com mais idade.

Observou-se que a intensidade de sede foi elevada. Em outro estudo em que os autores avaliaram a utilização de picolé de gelo em comparação com a água em temperatura ambiente para alívio da sede em sala de recuperação anestésica, a intensidade média de sede entre os grupos estudados foi de 6,7 e 6,3 para o grupo experimental e controle,25 assemelhando-se aos achados dessa pesquisa.

Dentre os fatores que contribuem para a elevada intensidade da sede no paciente cirúrgico estão os aspectos emocionais como a ansiedade, presente desde o pré-operatorio. Como consequência, ocorre a diminuição do fluxo salivar e ressecamento da cavidade oral, contribuindo para o desencadeamento da sede.5 Adicionalmente, desequilíbrios osmóticos e volêmicos inerentes ao ato cirúrgico, contribuem para que o paciente cirúrgico componha o grupo de maior risco para o desenvolvimento de sede. Este quadro é, portanto, evidenciado por meio de sede intensa quando o paciente recupera-se da anestesia.5

Neste estudo, os atributos avaliados pela EDESP evidenciaram que boca seca e vontade de beber água são os mais presentes e resultam em maior incômodo para o paciente, corroborando os fatores mais incidentes relacionados à sede e apresentados pela literatura. Indivíduos que experienciam-na descrevem a boca seca como o fator mais aversivo4 e sua percepção é um dos atributos mais frequentemente associados a ela.3,18,26

A escala que avalia o desconforto, EDESP, foi criada e validada recentemente, seu uso ainda não foi amplamente divulgado na literatura. Por esse motivo, não foram encontradas pesquisas que corroborassem os presentes achados, dificultando discussões comparativas. Estes resultados, no entanto, são relevantes pois explicitam atributos que os paciente cirúrgicos realmente experienciam. Essa perspectiva amplia o olhar em relação a mensuração da sede, indo além da intensidade como único fator de identificação.

A relação positiva entre a intensidade de sede e a pontuação nos desconfortos avaliados pela EDESP indicou que há uma correlação entre a intensidade relatada pelo paciente por meio da EVN e a EDESP. Um estudo de revisão6 reuniu ensaios clínicos relacionando a sede com os principais fatores fisiológicos e medidores. Em todos os ensaios analisados, houve estreita associação do escore obtido nas escalas de avaliação da sede com o aumento dos níveis de osmolaridade e vasopressina, que estão relacionados à fisiologia da sede. Portanto a EVN pode, de alguma maneira, representar as alterações osmóticas do paciente e, por meio da EDESP, é possível constatar o aumento do desconforto causado pela sede no paciente cirúrgico, tornando explícitos os atributos que mais o incomodam.

Diante da magnitude da sede e dos desconfortos dela decorrentes, evidencia-se a importância do cuidado prestado pela equipe de enfermagem ao paciente cirúrgico. O cuidado integra a essência da enfermagem, particularmente em uma área tão sensível para o ser humano.

A sede é um dos sintomas que refletem uma das necessidades primárias do indivíduo.14 Portanto, não estamos atentando para suas necessidades ao permitir que o paciente permaneça com esse intenso desconforto no POI sem que haja um cuidado intencional, visando mensurar e aliviar esse sintoma. Estratégias efetivas para manejo da sede25,27 e protocolo que avalia a segurança28 para sua utilização já estão disponíveis para a prática clínica permitindo o seu alívio e dos seus desconfortos, particularmente na SRA.

Conclusões e implicações para a prática

A prevalência da sede e de seus desconfortos, assim como sua intensidade, foi elevada nos pacientes que estavam no POI, na SRA. Houve relação positiva entre essa intensidade e a pontuação na EDESP, permitindo observar que, quanto maior a pontuação da intensidade da sede, mais o paciente percebe os desconfortos dela provenientes. Isso mostra quão prevalente e intenso esse sintoma é vivenciado, sobretudo por este grupo de pacientes.

Todos os atributos relacionados à sede, presentes na EDESP, foram evidenciados permitindo-se inferir que este instrumento consegue medir, adequadamente, tais atributos. A sede precisa ser olhada de maneira intencional pela equipe de saúde que atua na SRA, com a finalidade de ser mensurada e apropriadamente tratada.

Uma das limitações dessa investigação compreendeu a não realização de cálculo de tamanho amostral, o qual poderia elucidar a relação das variáveis preditoras e o desfecho. Outra limitação foi o pequeno número de idosos, o que não possibilitou que essa faixa etária pudesse ser avaliada separadamente.

Entretanto, o estudo revelou dados pouco conhecidos sobre os desconfortos que a sede causa, suas características e a relação com a intensidade relatada em um período quando usualmente nem é considerada como parte do cuidado. Espera-se que as informações evidenciadas favoreçam a ampliação das reflexões sobre a prática realizada em recuperação anestésica, visando a melhoria na assistência prestada ao paciente cirúrgico. Incluir a verificação da sede como necessidade básica do ser humano, contribuirá, portanto, para a humanização do cuidado ao paciente cirúrgico.

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