versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.8 no.1 São Paulo jan/mar. 2010
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082010rw1311
O choque circulatório é um problema comum a diferentes afeccções clínicas e cirúrgicas e continua associado à alta mortalidade(1). A reanimação de pacientes em choque é um grande desafio, pois as variáveis hemodinâmicas globais proporcionam apenas uma estimativa aproximada da perfusão orgânica. Como a função do órgão está diretamente relacionada ao grau de perfusão, garantir a perfusão tecidual ótima é o principal objetivo na terapia de reanimação do choque.
O uso de marcadores hemodinâmicos globais pode não ser suficiente para evitar a consequente falência de órgãos(2). Isso pode ser explicado, pelo menos em parte, pelo fato de a perfusão orgânica ser determinada principalmente pela perfusão microvascular, que pode ser comprometida independentemente da perfusão global e/ou regional. O uso de alguns substitutivos da função da microcirculação para orientar o tratamento parecem mais precisos do que os parâmetros clássicos como sinais vitais para indicar o grau de perfusão tissular(3). Entretanto, a avaliação da microcirculação era possível apenas em condições experimentais até recentemente. Graças aos recentes avanços tecnológicos, a anatomia microvascular e o metabolismo tecidual podem ser avaliados à beira do leito(4).
Nesta revisão, apresentaremos as principais técnicas propostas para avaliar a microcirculação à beira do leito e discutiremos as suas limitações e possível utilidade clínica para o clínico geral.
Microcirculação é definida como uma rede de pequenos vasos (arteríolas, capilares e vênulas) com diâmetro inferior a 100 µm(5). A microcirculação tem a função vital de fornecer oxigênio e outros substratos essenciais às células e também de remover os seus produtos do metabolismo celular(6) (Figura 1). Ocupando uma extensão de cerca de 350 m2 e contendo a maior superfície endotelial do corpo humano, a microcirculação também tem outras funções fisiológicas(7). Assim, ela tem um papel no controle da resistência vascular, coagulação sanguínea, processos inflamatórios e barreira imunológica(7). Pode-se intuitivamente considerar que a falência orgânica está relacionada à disfunção microcirculatória. De fato, os graus de alterações microvasculares correlacionam-se com disfunção orgânica e mortalidade em diferentes estados patológicos(8–11). Além disso, as alterações microcirculatórias já podem ser detectadas na fase bastante inicial da doença e podem persistir independentemente do estado macro-hemodinâmico(12–13). É interessante observar que alguns autores relataram que as variáveis microvasculares são capazes de prever mais precisamente o desenvolvimento de disfunção orgânica e a morte do que os parâmetros hemodinâmicos tradicionais(11,14). Esses achados sugerem que a “terapia guiada por parâmetros microcirculatórios” pode ser uma melhor estratégia de reanimação em pacientes críticos do que a reanimação baseada em parâmetros clínicos tradicionais usada na prática diária, mas as intervenções eficazes para melhorar a microcirculação ainda aguardam comprovação por estudos clínicos bem desenhados.
A regulação do fluxo sanguíneo capilar e, consequentemente, da perfusão tecidual, é um fenômeno complexo que inclui pressão de perfusão capilar, tônus arteriolar, hemorreologia e permeabilidade capilar(5). As células endoteliais têm a capacidade de perceber as forças mecânicas (força de cisalhamento) produzidas pelo fluxo sanguíneo e estímulos locais, como pH, lactato, concentração tecidual de O2 e CO2, e as substâncias neuro-humorais. Como resultado, o endotélio pode modular o número de capilares bem perfundidos, isto é, a densidade capilar funcional, por meio da transmissão ascendente e descendente às arteríolas e vênulas para suprirem as exigências metabólicas teciduais(4,15).
A maior parte da massa endotelial (aproximadamente 110 g) reveste a microcirculação distal(7), e a ativação das células endoteliais é uma importante causa de insuficiência microcirculatória(16). Vários fatores podem desencadear a ativação do endotélio, incluindo a interação com leucócitos, plaquetas, componentes da parede celular de bactérias, ativação da via da coagulação e vários mediadores inflamatórios plasmáticos. Uma vez ativadas, as células endoteliais sofrem mudanças estruturais, como edema citoplasmático e descamação, e adquirem novas funções como a expressão e liberação de substâncias que permitem ao hospedeiro enfrentar o estresse(17). Entretanto, a disfunção endotelial pode ocorrer em condições extremas, como sepse grave e trauma, seguida pela migração de leucócitos e extravasamento de fluidos ao interstício, hipovolemia, hipotensão e coagulação não-controlada, resultando em disfunção da perfusão tecidual, hipóxia e finalmente a falência orgânica(18).
Outros mecanismos podem adicionalmente ter um papel na regulação do fluxo sanguíneo capilar. Um desequilíbrio entre os efeitos dos agentes vasodilatadores e vasoconstritores, como óxido nítrico (NO) e catecolaminas, angiotensina II e endotelina-1, podem exacerbar a área de shunt(19). Além disso, o glicocálix, uma fina camada de glicolipídeos e proteoglicanos que reveste a superfície luminal das células endoteliais tem importantes funções, como controle da permeabilidade vascular, resistência do fluxo sanguíneo, adesão de leucócitos e ativação plaquetária. O glicocálix ganhou grande atenção recentemente após alguns relatos sobre sua ruptura e a disfunção endotelial na sepse e em outras doenças inflamatórias(20–21). Finalmente, e ainda controversa, a disfunção mitocondrial pode estar associada aos sinais de insuficiência microcirculatória, mas se é uma causa ou consequência da deficiência de extração de oxigênio ainda é uma questão a ser discutida, embora os dados experimentais sugiram que a alteração da microcirculação preceda (e possa induzir) a disfunção mitocondrial(22).
A perfusão da microvasculatura pode ser avaliada à beira do leito por meio da fluxometria por laser Doppler, microscopia intravital e técnica de imagem espectral por polarização ortogonal (OPS). A oxigenação tecidual pode ser avaliada pela medida transcutânea de PaO2 e pela técnica de espectroscopia near-infrared (NIRS).
O laser Doppler é uma técnica baseada na luz de laser refletida pelas hemácias em movimento, que permite quantificar o fluxo sanguíneo microcirculatório global em um pequeno volume de tecido de 0,5 mm3. As imagens de perfusão com laser Doppler e as imagens com laser speckle são técnicas variantes mais novas daquela anterior, o que permite a avaliação repetitiva de áreas maiores em imagens bidimensionais(4). Entretanto, deve-se mencionar que dados adicionais sobre a microvasculatura podem ser obtidos por meio de testes de desafio para isquemia/hiperemia ou sondas térmicas.
A microscopia intravital (IVM) é considerada o padrão-ouro para a exploração da microcirculação in vivo. Essa técnica permite a visualização da maioria das estruturas vasculares e células circulantes (hemácias, leucócitos e plaquetas) em animais. Quando usada com corantes, ela pode visualizar os vasos contendo apenas plasma e glicocálice, e medir a tensão de oxigênio, espécies reativas de oxigênio, óxido nítrico, etc. Em humanos, a região da prega ungueal é o único local em que a IVM pode produzir imagens sem corantes, pois a espessura dos capilares da prega ungueal permite a transiluminação. Por razões de segurança, os corantes não podem ser usados em humanos. Como essa área é muito sensível às mudanças da temperatura e agentes vasopressores, este técnica não pode ser usada em pacientes críticos.
A técnica de imagem espectral por polarização ortogonal (OPS) é um método não-invasivo relativamente novo desenvolvido para a avaliação da microcirculação humana, ideal para estudar os microcapilares sob uma fina camada mucosa, como na região sublingual, conjuntiva e serosa. Esse dispositivo consiste em uma pequena câmera de vídeo conectada a uma fonte de luz, com filtros que captam imagens por uma sonda ligada a um computador por meio de um conector de fibra óptica e de uma placa de vídeo. O tecido examinado é iluminado com luz polarizada (comprimento de onda de 548 nm com absorção luminosa pela molécula de hemoglobina), o que permite melhor imagem dos microvasos contendo hemácias. No tecido, até a profundidade de quase 300 µm, a luz é despolarizada e refletida para a câmera. A técnica OPS foi validada em vários estudos em animais e comparada à microscopia intravital por fluorescência. O sistema sidestream dark-field (SDF) é um avanço posterior da técnica OPS baseada em princípios ligeiramente diferentes com outro comprimento de onda e isolamento de luz de emissão e iluminação. Isto permite a melhor resolução e nitidez no mesmo tipo de microscópio portátil fácil de ser usado à beira do leito(23). Em humanos, OPS e SDF foram aplicadas com sucesso para investigar a microcirculação na língua, pele, no fígado e cérebro (Figura 2). Várias medidas podem ser obtidas com essas imagens(24), inclusive a densidade capilar funcional (densidade dos capilares perfundidos), densidade total do vaso e uma estimativa semi-quantitativa dos parâmetros de fluxo. Embora semi-quantitativas, essas pontuações têm boa reprodutibilidade para estimativa do fluxo em diferentes locais(12–14,25–27), com boa concordância das medidas de fluxo com programa (software) em condições experimentais(28), apesar de a análise ser algumas vezes mais complexa no intestino(29). Hoje em dia, alguns programas para análise de imagens estão disponíveis, mas o procedimento técnico ainda é relativamente semiautomático e permite apenas medidas de fluxos menores que 1 mm/sec.
Figura 2 Imagens pelo sistema sidestream dark-field de capilares sublinguais de pacientes com microcirculação normal (A) e anormal (B). Observa-se uma diferença nítida na densidade capilar na imagem estática, e as discrepâncias nos padrões de fluxo (maior frequência ou ausência de fluxo, ou vasos com perfusão intermitente) podem ser detectadas apenas nas sequências dinâmicas
NIRS é um método não-invasivo para avaliar a oxigenação tecidual usando a espectroscopia de infravermelho próximo (Figura 3). É uma forma especial de espectroscopia de reflectância, que permite a medição da saturação tecidual de oxigênio (StO2), geralmente na eminência tenar. Esse termo, embora amplamente usado, é apropriado uma vez que a técnica mede principalmente a saturação de oxigênio da hemoglobina, em um volume de tecido iluminado com um comprimento de onda próximo ao infravermelho. Portanto, mede a saturação da hemoglobina em vasos sanguíneos (predominantemente em vasos com menos de 1 mm de diâmetro, portanto referentes mais à micro do que à macrocirculação)(30), encontrados em um fragmento de tecido, mas não a saturação de O2 do tecido em si. A distinção entre os compartimentos arterial, capilar e venoso da oxihemoglobina medida obviamente não é possível, e o valor de StO2 representa uma média ponderada da StO2 em todos esses vasos. Diferentes fabricantes usam diferentes equações, de maneira que a profundidade e a proporção das arteríolas e vênulas podem variar, o que pode influenciar o valor da StO2 e, algumas vezes, dificultar a comparação entre os estudos. O sítio tenar é escolhido por ser menos sensível ao edema, mas outros locais também podem ser estudados. É importante notar que a StO2 variará de acordo com o sítio usado para um determinado paciente em certo momento. Uma correlação entre a saturação venosa de oxigênio (ScvO2) e a StO2 foi contestada(31–32). Os testes dinâmicos com período isquêmico de três minutos com torniquete produzem informações mais interessantes do que a medida inicial da StO2. Realmente, a inclinação descendente do sinal da StO2 é influenciada em grande parte pelo consumo de oxigênio tecidual e pela quantidade de sangue no tecido, enquanto a inclinação ascendente (após o final da isquemia até a fase hiperêmica) reflete a recrutabilidade máxima da microcirculação, um índice da resposta microvascular.
Figura 3 Representação esquemática das curvas de StO2 e IHT (índice de hemoglobina total) durante o teste dinâmico de oclusão com a técnica de espectroscopia próximo ao infravermelho (NIRS). UA, unidades arbitrárias para a curva IHT
A pressão transcutânea de oxigênio (TcPO2) tem sido usada como substituto dos gases sanguíneos arteriais em neonatos há muito tempo. Utiliza-se em adultos em que a TcPO2 correlaciona-se com a PaO2 durante a normovolemia e hipoxemia, e mais com débito cardíaco durante o choque hipovolêmico de baixo fluxo(33). De maneira semelhante, observou-se que a PtcCO2 acompanha a evolução da tensão arterial de dióxido de carbono (PaCO2) durante o débito cardíaco adequado, mas tornou-se dependente do fluxo durante o choque com baixo fluxo. Como fornece o valor médio da PO2 no volume da amostra e é mais influenciada pela PO2 arteriolar, ela não mede a oxigenação tecidual ou microvascular. Além disso, o período de aquecimento do eletrodo e a calibração são as principais preocupações relacionadas ao monitoramento à beira do leito.
Os estudos sobre a microcirculação de pacientes com sepse contribuíram muito para a compreensão dos principais mecanismos da disfunção metabólica celular. A sepse grave e o choque séptico são particularmente suscetíveis às alterações microcirculatórias (Figura 3), que são mais acentuadas do que em outros tipos de choque(34). Muitos fatores poderiam predispor aos defeitos microcirculatórios na sepse, incluindo o aumento da secreção de citocinas inflamatórias, a ativação endotelial e da coagulação, disfunção hemorreológica, alterações do glicocálice e altos níveis de substâncias vasoconstritoras e a secreção alterada de NO(35).
Vários estudos clínicos e experimentais relataram insuficiência microcirculatória associada à sepse. Com o uso da técnica OPS, nosso grupo demonstrou que a perfusão capilar sublingual reduzida em pacientes com sepse grave e choque séptico e a persistência dessas alterações estavam associadas à maior mortalidade(11–12). Outros autores também demonstraram que estas alterações estão presentes nas fases bastante iniciais da sepse e que sua evolução, em resposta aos procedimentos de reanimação, estava associada às mudanças nas pontuações da falência orgânica(13–14).
Até agora, a avaliação microcirculatória tem sido útil principalmente para compreender a fisiopatologia da sepse (choque distributivo) e para identificar os pacientes que podem ter alterações persistentes da perfusão tecidual após a correção das variáveis hemodinâmicas globais, destacando que os protocolos de reanimação baseados nos parâmetros macro-hemodinâmicos não são suficientes para prevenir a mortalidade e a falência orgânica associada à sepse. Entretanto, ainda não se tem certeza se a implementação de um “tratamento com reanimação dirigido à meta microcirculatória” provará ser útil na sepse. Antes de conduzir este estudo, precisamos definir melhor como as intervenções terapêuticas podem afetar a microcirculação em diferentes contextos clínicos (veja abaixo).
A insuficiência cardíaca é um problema clínico comum responsável por um ônus significativo nos sistemas de saúde e por altas taxas de morbidade e mortalidade, apesar dos avanços contínuos nos tratamentos farmacológicos(36). Os pacientes com insuficiência cardíaca descompensada e choque cardiogênico normalmente apresentam aumento da resistência vascular sistêmica, alta pressão de enchimento cardíaco, baixo débito cardíaco e SvO2 reduzida. Além disso, a incidência de anormalidades microcirculatórias (Figura 3) é elevada nesse grupo de pacientes e independentemente correlacionada com maior risco de morte(9). Os vasodilatadores são o tratamento essencial para a insuficiência cardíaca, pois reduzem a pós-carga, melhoram o desempenho cardíaco e reduzem a morte de causa cardíaca. Além disso, os vasodilatadores também podem agir na microcirculação reduzindo as áreas de shunt e melhorando a perfusão dos órgãos. Recentemente, den Uil et al. demonstraram que a nitroglicerina, um vasodilatador conhecido com propriedades doadoras de NO, era capaz de reverter as anormalidades microcirculatórias em pacientes com insuficiência cardíaca aguda(37). Entretanto, ainda não está confirmado se a correção da disfunção microcirculatória está associada à melhora dos resultados do paciente na abordagem guiada pela microcirculação.
A espectroscopia de infravermelho próximo tem sido usada para detectar hematomas subdural e epidural(38) com sensibilidade de 0,87, mas não é útil para detectar hematomas pós-operatórios. O grupo de Ince, nos Países Baixos, relatou achados interessantes com o uso das técnicas OPS na hemorragia subaracnoide, onde examinam os microvasos durante procedimentos neurocirúrgicos. A densidade capilar funcional estava diminuída após hemorragia subaracnoide (HSA)(39). Ainda mais importante, os espasmos microvasculares podiam ser observados no momento da cirurgia, enquanto o vasoespasmo ainda não havia sido detectado pelas técnicas habituais. Outro estudo(40) revelou aumento das respostas contráteis das arteríolas cerebrais na presença de sangue subaracnoide (e induzidas por hipocapnia), o que sugere aumento do tônus microvascular.
A angiografia com fluoresceína permite a avaliação da microcirculação retiniana(41) em pacientes com síndromes de hiperviscosidade: síndrome de Waldenström, crioglobulinemia e plasmocitoma. Observou-se aumento do tempo de trânsito arteriovenoso em pacientes que tinham um aumento de duas vezes na viscosidade plasmática. De modo inesperado, nenhuma mudança no fluxo sublingual microvascular pode ser detectada no exame OPS em pacientes durante a crise dolorosa de anemia falciforme(42).
A OPS tem sido usada para analisar os efeitos do tratamento antivascular de tumores em um modelo com hamster, além de avaliar o carcinoma espinocelular oral em humanos(43).
Um recente relato de caso(44) mostrou imagens de interrupção do fluxo em um paciente com leucemia, a qual desapareceu quando a contagem de leucócitos retornou ao normal. Não fomos capazes de observar achados semelhantes em vários pacientes com contagens de leucócitos acima de 100.000/mm3 (observações não publicadas); portanto, o papel da avaliação microvascular em pacientes com leucostase ainda deve ser avaliado.
Vários fatores podem ter impacto na microcirculação durante e após a intervenção cirúrgica: hipoperfusão relacionada a perdas de grandes volumes de sangue no intraoperatório, inflamação devido à incisão e manipulação do mesentério, inflamação, estimulação simpática (constrição arteriolar e redução do fluxo microvascular). A integridade do endotélio pode estar alterada, levando ao extravasamento capilar, e a rolagem e adesão de leucócitos aumentam após a cirurgia. O TNF-± parece – pelo menos em alguns modelos animais – ser um mediador essencial implicado nessas anormalidades. As seletinas – molécula de adesão vascular-1 e molécula de adesão intercelular-1 – também parecem contribuir nesta disfunção microvascular. O sequestro de leucócitos, vasoconstrição e edema tecidual nos leitos microcirculatórios podem causar aumento no gradiente de oxigênio levando à hipóxia tecidual e disfunção orgânica. Há uma boa revisão deste tópico em outra referência(45).
Bauer et al. estudaram os efeitos da circulação extracorpórea na microcirculação sublingual. A densidade capilar funcional (DCF) reduziu enquanto o diâmetro vascular e a velocidade do fluxo sanguíneo não foram afetados. A DCF normalizou uma hora após descontinuação da CEC e se correlacionou com o nível de hemoglobina e a temperatura corporal. A aderência e o rolamento de leucócitos sobre o endotélio triplicou uma hora após a interrupção da CEC(46). Outros estudos sugerem que estas alterações podem ainda persistir por um maior período de tempo(47).
As alterações microvasculares também podem ser observadas nos pacientes submetidos à cirurgia de alto risco. Recentemente, Jhanji et al.(27) relataram que os pacientes que apresentavam complicações após a cirurgia abdominal de grande porte tinham alterações da microcirculação sublingual no período perioperatóro e no período pós-operatório inicial. É interessante notar que o transporte total de oxigênio, os níveis de lactato, a pressão transcutânea de oxigênio e mesmo o fluxo de hemácias na pele, medido pela fluxometria com laser Doppler, não foram capazes de identificar os pacientes que desenvolveriam complicações. Isso está em conformidade com os dados demonstrando que os parâmetros hemodinâmicos globais não estão correlacionados aos parâmetros macro-hemodinâmicos. Infelizmente, algumas vezes esses parâmetros macro-hemodinâmicos são os únicos dados exatos que talvez tenhamos para avaliar a gravidade ou realizar a intervenção terapêutica. O campo da avaliação perioperatória da microcirculação é bastante amplo e com perspectivas promissoras.
A otimização hemodinâmica global é um pré-requisito para a boa microcirculação. Entretanto, ainda podemos encontrar anormalidades microcirculatórias mesmo após os parâmetros hemodinâmicos globais estarem relativamente estabilizados. Algumas doenças podem particularmente ser consideradas durante o tratamento das anormalidades microcirculatórias.
Os agentes anestésicos podem ter impacto na microcirculação. Em condições experimentais, os gases halogenados, benzodiazepínicos, agentes opioides e o propofol alteram a microcirculação(48–49). Em humanos, o impacto desses agentes não foi tão bem estudado. Dois estudos recentes relataram alterações microcirculatórias após a administração de agentes sedativos-anestésicos comumente usados; Lamblin et al. demonstraram piora da resposta da microcirculação após a sedação com midazolam e/ou sulfetanil em pacientes críticos(50). Além disso, o propofol estava associado à redução da densidade da perfusão capilar em pacientes durante a anestesia geral(51). Em comparação às alterações descritas nos processos patológicos graves, como sepse, estas alterações são geralmente menores. Entretanto, é possível que estas deteriorem ainda mais a microcirculação nestes pacientes, e esta pode ser uma das razões pelas quais os intervalos sem sedação melhoram o resultado.
Deve-se ter cautela ao usar sedativos para realizar registros de boa qualidade com as técnicas de videomicroscopia e com a fluxometria por Laser Doppler. Sempre que possível, as doses destes agentes devem ser mantidas constantes durante a avaliação da microcirculação.
Como as alterações microvasculares coincidem com a ativação da coagulação em vários estados patológicos, inclusive sepse, sugeriu-se uma associação entre as duas. Embora seja difícil dissociar os fatores, a microtrombose é rara, mas não descarta a implicação de vias da coagulação ativadas na disfunção microvascular. Como vários agentes com propriedades anticoagulantes foram usados no tratamento de pacientes com sepse, vários estudos avaliaram o impacto desses agentes na microcirculação.
Todos os estudos em animais que avaliaram os efeitos da proteína C ativada na microcirculação relataram um efeito benéfico(20,52,53). Demonstramos a evidência do impacto benéfico na proporção de capilares perfundidos, já a partir de quatro horas após o início da infusão de proteína C ativada em pacientes com sepse, com padrão liga/desliga(54). Vale notar que as propriedades anticoagulantes do fármaco podem não estar implicadas nestes efeitos microvasculares. A melhora na rolagem e adesão dos leucócitos, assim como a preservação do glicocálice, também podem estar implicadas(20,52,53).
Outros anticoagulantes também podem melhorar a microcirculação. No choque por endotoxinas, a antitrombina também atenuou as alterações microcirculatórias(55). Aqui o mecanismo também pode ser independente das propriedades anticoagulantes, uma vez que o fármaco inibe a rolagem de leucócitos e, ainda mais importante, a infusão de antitrombina modificada com propriedades anticoagulantes preservadas, mas sem o seu sítio de ligação ao endotélio não foi capaz de afetar a perfusão microvascular e a rolagem de leucócitos. Finalmente, a hirudina, um inibidor puro da trombina, piora a perfusão microvascular em animais com sepse, sugerindo que a anticoagulação isoladamente pode não ser eficaz para melhorar a microcirculação(56).
Como a ativação do mecanismo inflamatório está intimamente relacionada às anormalidades da microcirculação, poder-se-ia considerar que os efeitos anti-inflamatórios poderiam ser benéficos para tratar ou prevenir esses distúrbios capilares. Por exemplo, o pré-tratamento com dexametasona em um modelo experimental de sepse em roedores foi capaz de prevenir a hipotensão, vasodilatação e disfunção vasomotora arteriolar após a administração de lipopolissacarídeos (LPS)(57). Em um estudo prospectivo bastante recente, Büchele et al. demonstraram que a dose de estresse de hidrocortisona estava associada à melhora dos defeitos da perfusão capilar em pacientes com choque séptico, e esse efeito já estava presente após a primeira hora de tratamento com corticosteroide(58).
A aplicação tópica de acetilcolina demonstra reverter totalmente as alterações microvasculares nos pacientes com sepse(12,20) assim como em pacientes com insuficiência cardíaca grave(9). Pode-se perguntar se os agentes vasodilatadores sistêmicos também podem melhorar a microcirculação.
Já foi demonstrado que os inibidores da enzima conversora de angiotensina (ECA) melhoravam a vasodilatação dependente do endotélio por meio de um mecanismo dependente de NO, em um modelo de choque por endotoxina em coelhos(59). Entretanto, nenhum efeito pode ser observado na lesão histológica endotelial ou expressão do fator tecidual neste mesmo modelo.
Os efeitos da nitroglicerina nos transtornos da microcirculação foram testados na insuficiência cardíaca(37) e sepse(60). Na insuficiência cardíaca aguda, baixas doses de nitroglicerina (33 µg/min) aumentaram a densidade de capilares perfundidos (avaliada por SDF) em cerca de 15%(37).
O verapamil induz dilatação arteriolar significativa, aumento do fluxo microvascular e densidade capilar funcional, e reduz a diferença de pO2 transmural na parede arteriolar no modelo de preparação de câmara subcutânea em hamsters(61).
Nesse estágio, é bastante difícil sugerir que agentes vasodilatadores sejam usados para tratar a microcirculação afetada. O impacto da hipotensão induzida não pode ser negligenciado. Isso foi bem ilustrado em um estudo experimental realizado por Nakajima et al.(62), quando observaram que a arginina, uma doadora de NO, aumentou a perfusão microvascular em animais com sepse quando a pressão arterial era normalizada com agentes vasopressores mas não quando era administrada isoladamente em animais com hipotensão. Além disso, os efeitos a longo prazo destes agentes, que também frequentemente apresentam importantes efeitos metabólicos e celulares, não podem ser negligenciados.
Na sepse, a redução do volume intravascular associado ao aumento do líquido intersticial tem sido considerada como responsável por agravar a oxigenação tecidual e o transporte de substratos de energia para as células.
O tipo e o volume de fluidos usados para reanimar os pacientes são muito importantes. Não devemos focar apenas em suas propriedades restauradoras de volume, mas também no endotélio, na microvasculatura e inflamação. Embora os amidos tenham aumentado a perfusão microvascular em investigações de curto prazo em animais(63), o estudo VISEP(64) ilustrou muito bem que as doses altas e repetidas de amidos podem ter efeitos prejudiciais na função renal e na coagulação.
Os fluidos hipertônicos podem ser úteis, pois podem aumentar o débito cardíaco (efeito pré-carga e inotropismo positivo), promovem a vasodilatação arterial (hiperosmolaridade) e reduzem o edema tecidual (gradiente osmótico) e podem, em consequência, diminuir as distâncias de difusão do oxigênio. Foi relatado que o uso de soluções hipertônicas melhora a perfusão microvascular em numerosos estados patológicos(65).
A transfusão de hemácias apresenta vários efeitos na microcirculação sublingual(66) que parecem ter um impacto favorável na microcirculação quando esta se encontra acentuadamente alterada antes de transfusões; mas podem até mesmo prejudicar a microcirculação quando a perfusão capilar está normal. Isso ilustra porque uma avaliação direta da microcirculação pode ser útil, uma vez que esses efeitos divergentes na perfusão tecidual foram observados pelas ferramentas clássicas de monitoramento.
Dobutamina tem efeitos benéficos sobre a microcirculação em pacientes com choque séptico(67). Dobutamina pode aumentar o débito cardíaco e transporte de oxigênio enquanto mantém a pressão arterial média constante. Aumenta a densidade capilar e a proporção de capilares perfundidos. Essa melhora microcirculatótia foi inversamente correlacionada à redução dos níveis de lactato, mas não apresentou correlação com o débito cardíaco ou a pressão arterial média. Entretanto, a dobutamina não recrutou todos os capilares e o impacto global deste fármaco foi bastante limitado.
Os agentes vasopressores podem teoricamente ter efeitos nocivos potenciais no leito microvascular media-dos pela vasoconstrição. A vasopressina e a noradrenalina alteram de maneira semelhante a perfusão microvascular em animais não-hipotensos(68). Por outro lado, nenhum dos agentes foi capaz de impedir a perfusão microvascular quando administrados para corrigir a hipotensão em animais com sepse(62).
Embora essas tecnologias sejam atraentes e interessantes à primeira vista, há algumas limitações que devem ser levadas em consideração. Nas imagens de SDF, a captura de vídeo é uma das etapas mais importantes em que os problemas podem ocorrer. Por exemplo, a presença de secreções, o controle do movimento, o ajuste correto do foco e a intensidade da luz devem ser realizados sistematicamente para obter imagens de boa qualidade. Além disso, deve-se tomar bastante cuidado para prevenir os artefatos de pressão, pois levariam à estagnação artificial do fluxo, mesmo nas grandes vênulas(24). Finalmente, as imagens são analisadas offline e este processo demanda muito tempo, impedindo a avaliação em tempo real de tratamentos à beira do leito. Foi demonstra-do recentemente que a avaliação à beira do leito pode avaliar satisfatoriamente a microcirculação(69), abrindo algumas oportunidades para o uso nesta situação.
Quanto à NIRS, as medidas da StO2 sem o teste de oclusão são de valor limitado, pois representam a média da saturação de oxigênio da hemoglobina em todos os segmentos vasculares (arteríolas, vênulas e capilares) no volume de tecido analisado, e as contribuições relativas de cada parte não puderam ser determinadas. Em segundo lugar, a NIRS não é uma medida direta do fluxo sanguíneo microcirculatório; portanto, a elevação observada da StO2 tecidual não reflete necessariamente um aumento local da liberação após o teste desafio de isquemia. Em terceiro lugar, a qualidade das medições pode ser influenciada pela temperatura e espessura do tecido subcutâneo.
A técnica Laser Doppler que mede o fluxo sanguíneo médio em volume tecidual pequeno é incapaz de diferenciar a contribuição de cada segmento microcirculatório e também não detecta mudanças do hematócrito. Uma revisão mais abrangente das limitações técnicas da microcirculação pode ser encontrada em outras referências(70–71).
O choque hemodinâmico é uma situação de emergência comum a ser abordada pelo clínico geral. A reanimação hemodinâmica baseada nos parâmetros macrocirculatórios tem se mostrado ainda insuficiente, tendo em vista uma mortalidade ainda inaceitavelmente alta por choque séptico. Uma possível explicação é a persistência da disfunção microcirculatória e mitocondrial que estão dissociadas dos sinais vitais tradicionais e dos avaliadores grosseiros da perfusão tecidual como lactato e SvO2. Graças às técnicas relativamente simples que permitem a avaliação da microcirculação anatômica e funcional à beira do leito, novas possibilidades de guiar a reanimação de pacientes em choque podem surgir na prática clínica - o conceito de ressuscitação guiada por parâmetros microcirculatórios. Além disso, essas técnicas podem ser úteis em outras situações clínicas, como período perioperatório, choque cardiogênico, hipertensão arterial, traumatismo crânio-encefálico e síndromes de hiperviscosidade.