versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.6 Rio de Janeiro jun. 2019 Epub 27-Jun-2019
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018246.08332019
Ampliação do tempo de vida e melhora em indicadores de saúde são fenômenos mundiais, embora sua distribuição não seja percebida de maneira equânime1. No Brasil, de modo diferente ao observado em nações desenvolvidas, esse envelhecimento tem sido muito rápido2. Em cinco anos, a população idosa cresceu 18%3 e, em 2017, havia 30,2 milhões de idosos no Brasil, o que correspondia a 15,6% da população3, aumentando-se demandas econômicas e sociais, pois o perfil de mortalidade passou para um quadro com enfermidades complexas e onerosas, próprias de faixas etárias avançadas2. Além das particularidades da idade, o idoso possui mais doenças crônicas e limitações funcionais, gerando mais custos e dispendendo mais recursos sociais e financeiros4.
Essas necessidades de saúde específicas precisam ser consideradas na organização da oferta de serviços de saúde e na determinação do modelo de atenção que irá suportar esta oferta, com coordenação de cuidados ao longo do percurso assistencial numa lógica de rede5. A Rede de Atenção à Saúde (RAS) é definida como “arranjos organizativos de ações e serviços de saúde, de diferentes densidades tecnológicas, que integradas por meio de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado”6. A integralidade, aqui compreendida como “resposta governamental a necessidades de saúde de grupo específico que deve incorporar possibilidades de prevenção e assistenciais”7, requer essa organização em redes que encontra bases na macro e na microgestão8. A microgestão envolve a elaboração de plano de cuidados individualizado, enquanto que a macrogestão se concentra no percurso necessário à implementação desse plano, cabendo ao gestor articular os componentes da rede para garantir a integralidade do cuidado8.
No Brasil, há várias inciativas que buscam priorizar e garantir a atenção integral à saúde de idosos, a exemplo da Política Nacional de Saúde do Idoso (PNSI), voltada à promoção do envelhecimento com qualidade9. Essa priorização está em consonância com o Relatório Mundial de Envelhecimento e Saúde que traz a compreensão de que a funcionalidade sofre perdas e de que escolhas e intervenções feitas ao longo da vida do indivíduo nela interferem10.
Além da PNSI, a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) aponta a Saúde da Família (ESF) como estratégia prioritária para a expansão e a consolidação da atenção básica, para a ampliação da resolutividade e do impacto na situação de saúde, o que requer reorientação de processos de trabalho para se alcançar a integralidade da atenção11. A atenção básica à saúde, aqui referida como Atenção Primária à Saúde (APS), inclui ações de saúde individuais e coletivas em todos os níveis de prevenção de doenças, “desenvolvidas por meio de práticas gerenciais e sanitárias realizadas em equipe e dirigidas a populações de territórios bem delimitados, sobre as quais as equipes assumem responsabilidade”12. Nesse sentido, em 2017, considerando seu perfil demográfico e de morbimortalidade e a necessidade de avanços na qualidade da atenção à saúde, o Distrito Federal (DF) estabeleceu sua própria Política de APS e disciplinou o processo de conversão desse nível de atenção ao modelo da ESF12,13.
Além disso, o adequado funcionamento da APS é essencial à atenção ao idoso devido a seu papel de coordenadora da RAS em que a Unidade Básica de Saúde (UBS), base das ações da APS, é porta de entrada do sistema de saúde e deve gerenciar o cuidado deste usuário por meio da elaboração de plano de cuidados individualizados, com provimento de orientações ao autocuidado, suporte à família e cuidadores, ações de educação em saúde e atividades de convivência que possibilitem sociabilização e interação com outros recursos14-16. Nesse contexto, fazer a gestão da clínica, com a aplicação de tecnologias de microgestão nos serviços de saúde é relevante, para garantir padrões clínicos ótimos e aprimorar a qualidade da atenção à saúde dessa população17.
Revisão de literatura sobre avaliação da efetividade de redes de saúde para idosos concluiu que há pequeno número de estudos relacionados a programas de prestação de serviços à saúde dos idosos ou estes são de baixa qualidade quanto à metodologia. O autor concluiu que a abordagem de assistência a idosos que envolve APS e a integração dos pontos da rede, tais como hospitais, atenção domiciliar e serviços sociais de apoio, em que se garante a longitudinalidade da atenção com base em um plano de cuidados, é efetiva na redução de internações e proporciona economia ao sistema, sendo mais vantajosa, ainda, para pacientes e familiares5.
Pesquisa avaliativa conduzida em região de saúde no estado de São Paulo revelou que a incorporação de ações voltadas à gestão da saúde da pessoa idosa em serviços de APS ainda é embrionária. Destacou que há poucos estudos que avaliam a organização do processo de trabalho focado nessa população e que os instrumentos avaliativos utilizados são gerais (incluem todo o escopo das ações da APS) e são inespecíficos para ações direcionadas a idosos. A autora sugere realização de novos estudos de avaliação em diferentes localidades do país, colaborando com o aprimoramento da gestão e com a implantação e a utilização de tecnologias de cuidado para a atenção ao idoso, fortalecendo o papel da APS18.
Considerando que a literatura aponta poucas pesquisas relacionadas à avaliação de serviços à saúde de idosos5, a necessidade de adequação destes às especificidades dessa população, e que a APS é coordenadora de cuidados na RAS, fez-se necessário avaliar a microgestão de UBS, identificando como se dá a oferta das ações e serviços e se estes favorecem a integralidade da atenção e a garantia de acesso oportuno e resolutivo para a população idosa neste nível de atenção.
Assim, este estudo se propôs a realizar avaliação normativa da microgestão em UBS em ações voltadas a idosos na Região de Saúde Oeste do DF, ampliando a compreensão de como a linha de cuidado ao idoso ocorre na APS para posterior proposição de melhorias, auxiliando a gestão no cumprimento de suas funções.
Trata-se de avaliação normativa, de corte transversal e de caráter exploratório. Essa metodologia foi escolhida por ser ferramenta inicial útil para se conhecer determinada realidade visando futuras intervenções19. A avaliação normativa, por “fazer julgamento sobre uma intervenção e comparar recursos utilizados e sua organização (estrutura), serviços ou bens produzidos (processo), e resultados obtidos, com base em normas e critérios”20, torna-se dispositivo útil para a produção de informações e tomadas de decisão, empoderando os atores que a envolvem, neste caso, gestores20. Enfatizou-se o “processo”, pois aprimoramentos oportunos no mesmo, sem necessidade de se aguardar “resultados”, possibilitam a garantia da acessibilidade ao potencializar a APS enquanto porta de entrada do sistema21.
A Região de Saúde Oeste do Distrito Federal (RSO) inclui duas Regiões Administrativas (RA): Ceilândia e Brazlândia. Ceilândia é a RA IX e possui população estimada em 489.351 habitantes, com 17% de idosos. Em Brazlândia, RA IV, esses números são, respectivamente, 52.287 habitantes e 14%22. A seleção da RSO deu-se porque em Ceilândia há idosos bastante vulneráveis, com maior risco de declínio funcional e de morte, com a maior taxa de autopercepção de saúde regular e ruim, e que mais necessitam de auxílio para viver23.
No período do estudo, março a setembro de 2018, havia 22 (vinte e duas) UBS na RSO e a avaliação foi conduzida em 4 (quatro) delas, todas em Ceilândia, selecionadas por conveniência a partir dos seguintes critérios de inclusão: estar com equipe da ESF em funcionamento há mais tempo12 e possuir densidade populacional idosa.
Para avaliar a utilização de ferramentas de microgestão pelos gestores das UBS, foi utilizada Matriz de Avaliação da Gestão24, subdividida em dimensões, subdimensões e critérios, conforme o Quadro 1.
Quadro 1 Dimensões, sub-dimensões, critérios e conceito operacional utilizados na Matriz de Avaliação da Gestão.
Dimensões | Sub-dimensões | Critérios Observados | Conceito Operacional |
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Gestão da Condição de Saúde | Modelo de atenção |
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Implica na mudança de um modelo de atenção à saúde focado no indivíduo, curativista e reabilitador, para abordagem de base territorial, com identificação de indivíduos em risco, foco em ações de promoção e proteção à saúde, com intervenção precoce para alcance de melhores resultados e menores custos. |
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Integralidade da atenção |
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Gestão de Caso | Humanização |
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Relação dinâmica e personalizada estabelecida entre profissional responsável pelo caso e usuário do serviço de saúde para planejar, monitorar e avaliar ações e serviços, de acordo com suas necessidades, para promover atenção qualificada e humanizada. |
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Coordenação do cuidado |
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Planejamento, monitoramento e avaliação de ações e serviços |
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Auditoria Clínica | Auditoria implícita |
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Análise crítica e sistemática da qualidade da atenção à saúde, incluindo aspectos relacionados a diagnóstico e tratamento, utilização de recursos e resultados em todos os pontos de atenção, observada a utilização dos protocolos clínicos estabelecidos. |
Auditoria explícita |
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Listas de Espera | Racionalização do acesso |
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Envolve a normatização do uso de serviços em alguns pontos de atenção à saúde, em que há critérios para ordenamento com base em necessidades e riscos. Visa promover equilíbrio entre oferta e demanda. |
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Fonte: Adaptado de Cabral-Bejarano et al.27.
A pontuação máxima na Matriz foi de 100 pontos, com maior pontuação àquelas sub-dimensões relacionadas aos atributos da ESF, considerando que é modelo de atenção afim ao uso de ferramentas de microgestão e que a legislação apontou a necessidade de homogeneização na organização e funcionamento de sua APS com base na ESF12. A classificação da microgestão, partindo-se das evidências observadas para cada dimensão estudada, foi feita com base na comparação da pontuação nela obtida com a máxima possível, resultando em: a) Microgestão Avançada (> 66,6%), Intermediária (> 33,3% e ≤ 66,6%) e Incipiente (≥ 0 e ≤ 33,3%)24. As dimensões da Matriz emergiram da Portaria nº 4.279/2010, que estabelece diretrizes para a organização das RAS no âmbito do Sistema Único de Saúde6. O Quadro 2 sumariza esta classificação.
Quadro 2 Dimensões, sub-dimensões, critérios e conceito operacional utilizados na Matriz de Avaliação da Gestão.
Dimensões | Sub-dimensões | Pontuação Máxima | Classificação |
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Gestão da Condição de Saúde | Modelo de atenção | 25 | Avançada: > 66,6% |
Integralidade de atenção | 10 | ||
Gestão de Caso | Humanização | 10 | |
Coordenação do cuidado | 15 | ||
Planejamento, monitoramento e avaliação de ações e serviços | 15 | Intermediária: > 33,3% e ≤ 66,6% | |
Auditoria Clínica | Auditoria implícita | 5 | |
Auditoria explícita | 10 | Incipiente: ≤ 33,3% | |
Listas de Espera | Racionalização do acesso | 10 | |
Total | 100 |
Fonte: Elaboração própria, 2018.
As UBS receberam nomes de ipês, árvore símbolo do Brasil, com floração após período de seca (cada uma a seu tempo). Assim, foram codinominadas na sequência em que suas flores brotam, em analogia a seus processos de gestão, em que algumas têm despertado primeiro que outras: Ipê-Roxo, Ipê-Amarelo, Ipê-Rosa e Ipê-Branco25.
O estudo foi aprovado em Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde da Secretaria de Saúde do DF (FEPECS) e da Faculdade de Ceilândia da Universidade de Brasília (FCE/UnB). Os dados foram consolidados e tabulados em planilha eletrônica (Excel 2014, Microsoft®) e analisados com base na estatística descritiva.
A população idosa no Brasil é de 20.590.599 habitantes, o que corresponde a 10,8% dos residentes no território nacional. Na Região Centro-Oeste esse percentual é de 8,8% da população residente total, enquanto que no DF é de 7,7%26. No DF, seguindo-se a tendência nacional, observa-se aumento da população idosa, com elevadas taxas de morbidade e mortalidade por doenças crônico-degenerativas28,29. Dados de projeção populacional mostram que em 2.060 a proporção entre idosos (≥ 60 anos) e jovens de até 15 anos no DF será a segunda maior do Brasil, cerca de dois para um, e chegará a 207,1% (atualmente é de 33,6%). Esse valor estará acima do nacional, para o qual se prevê 173,4%. Além disso, a esperança de vida ao nascer aumentará de 74,9 (homens) e 81,9 (mulheres) para 79,5 e 85,6, respectivamente30.
O DF possui 31 Regiões Administrativas (RA). Ceilândia tem a maioria de seus habitantes (46,1%) entre 25 e 59 anos, e os de zero a 14 anos totalizam 20,8%. Idosos correspondem a 17%. Evidenciam-se taxa de analfabetismo de 3,6% (17.510 habitantes analfabetos), sendo que em idosos esse índice chega a 22,5%. Há ampla predominância de idosos egressos da Região Nordeste (66,2%), com 50,7% (4º lugar no DF) de domicílios chefiados por mulheres idosas. A renda domiciliar mensal da região é de R$ 3.076,00 e a per capita é R$ 915,8122, e predominando, ainda, o número de idosas pensionistas (20,8%)31.
Essas características sociodemográficas, aliadas às consequências das transições demográfica e epidemiológica, exigem respostas adequadas e oportunas na forma como o sistema de saúde do DF se organiza, na distribuição e formação de seus recursos humanos (RH), nas tecnologias, e na organização do trabalho e da oferta de serviços28,29. Nesse contexto, é fundamental que gestores da APS conheçam a realidade sanitária dessa população e se utilizem de estratégicas que lhes auxiliem a se aproximar de seu território e sanar as demandas da população32.
As práticas de gestão são espaços privilegiados para a introdução de mudanças nos serviços e para a reorganização dos processos de trabalho, ampliação e qualificação das ofertas em saúde33. Entretanto, os serviços de saúde mostram-se como organizações complexas que, em sua maioria, estruturam-se numa lógica piramidal, de ações hierarquizadas, e onde coexistem tecnologias de diferentes tipos34.
As ferramentas de microgestão, tais como a gestão da condição de saúde, a gestão de casos, a auditoria clínica e as listas de espera, fazem parte da gestão da clínica e são um pressuposto para o adequado funcionamento das redes de atenção à saúde. Assim, a gestão da clínica, enquanto tecnologia leve e estratégia para a gestão de organizações de saúde, pode servir de base para a reorganização dos serviços de saúde35 e prescinde de relação dialógica na atenção à saúde do idoso, com a compreensão das dimensões culturais, sociais, econômicas, históricas e ambientais que envolvem o cuidado36.
Na APS do DF, a partir de 2017 foi dado início à conversão do modelo tradicional para o modelo ESF e, na RSO, esse processo alcançou sua plenitude no início de 2018, quando todas as UBS tiveram suas equipes transformadas em ESF12. Entretanto, quando aplicada a Matriz de Avaliação, observou-se que mais de um ano após a publicação da legislação que disciplina a organização da APS no DF, elas ainda não têm sido utilizadas e/ou são desconhecidas pelos gestores das UBS, conforme Gráfico 1.
Fonte: Elaboração própria, 2018.
Gráfico 1 Classificação Geral das Unidades Básicas de Saúde segundo pontuação obtida na Matriz de Avaliação da Gestão, Região de Saúde Oeste (Ceilândia/DF), 2018.
Os resultados mostraram que nenhuma UBS está em estágio Avançado em relação à utilização de ferramentas de microgestão, 1 (uma) em estágio Intermediário e 2 (duas) em estágio Incipiente. No Brasil, considerando o histórico de falta de escuta entre usuários, trabalhadores e gestores, a prestação de serviços é fragmentada e mecanizada, com desajustes na coordenação de cuidados e sem adequada responsabilização profissional37. A essa falta de responsabilização, agrega-se formação profissional especializada (com necessidade de múltiplos profissionais para se atingir a resolutividade do cuidado), o que dificulta, também, o estabelecimento de vínculo profissional-usuário e a adesão destes às ações propostas38.
Embora não tenha sido localizada na literatura avaliação normativa que tenha partido das mesmas dimensões, subdimensões, pontuação e critérios utilizados neste estudo na área de saúde do idoso, e embora este tenha sido de corte transversal e estado restrito a quatro UBS de uma única região de saúde, o que não permite a generalização dos resultados, os achados vão ao encontro do que já fora concluído por outros autores39,40. Contatou-se, em pesquisa avaliativa feita no município de São Paulo, certo desvio entre as exigências requeridas pela transição demográfica e a resolutividade da APS, evidenciando a não efetivação de ações direcionadas à saúde do idoso neste nível de atenção. Percebeu-se, ainda, que os domínios que obtiveram melhor desempenho na atenção à saúde da pessoa idosa foram aqueles em que houve absorção e utilização de sugestões resultantes de avaliações internas no serviço de APS, reforçando a necessidade de uma cultura avaliativa para além das doenças crônicas18.
Quanto às subdimensões, 3 (três) destas estavam em estágio Avançado, 3 (três) em estágio Intermediário e 2 (duas) Incipientes. As sub-dimensões “Integralidade da Atenção”, “Coordenação do Cuidado” e “Auditoria Implícita” foram classificadas como Avançadas em 100% das UBS, como pode ser visto no Gráfico 2.
Fonte: Elaboração própria, 2018.
Gráfico 2 Percentual de Unidades Básicas de Saúde por escores da graduação das sub-dimensões, Região de Saúde Oeste (Ceilândia/DF), 2018.
Embora a Integralidade da Atenção e a Coordenação do Cuidado estivessem presentes em todas as UBS, a base de evidências mostrou que há falta de ciência e acompanhamento dos usuários pelas UBS quando eles retornam de outros níveis de atenção. Estudo que analisou a implementação de redes integradas de serviços de saúde e de estratégias para a coordenação do cuidado pela APS no sistema de saúde do Chile considerou as guias de referência e contrarreferência instrumentos delicados por não serem informatizados e porque, na maioria dos casos, a APS só tem ciência do retorno do usuário por meio deles mesmos ou de seus familiares41. Além disso, esses princípios vêm sendo cumpridos, maiormente, em situações de violência familiar, quando é necessária articulação com setores relacionados à assistência social, o que demonstra necessidades de avanço nesse sentido. É na intersetorialidade que se oportuniza a aplicação do conceito ampliado de saúde e, em que se apoiam ações da promoção da saúde, imprescindíveis a trabalho da ESF42. Considerando idosos, a APS deve ir além da saúde e da assistência social, para se ter ganhos na resolutividade das ações e, de fato, sanar problemas, já que a velhice incorpora grande variedade de demandas e requer nova lógica de gestão, com olhar interdisciplinar e partilha de funções entre diversas áreas43.
Numa avaliação que incluiu atributos da ESF e a utilização do PCATool-Brasil versão adulto, conduzida no Rio Grande do Norte, na perspectiva do idoso quanto à qualidade do cuidado na APS, mostrou barreiras na acessibilidade que repercutem na resolutividade e a necessidade de se ampliar os horários de funcionamento das UBS e a importância no aumento de ações que impactam na integralidade da atenção que sigam além de doenças mais prevalentes, tais como incremento nas orientações para o autocuidado e o suporte social ao idoso e ao cuidador, e a realização de práticas relacionadas à nutrição e à atividade física40.
A auditoria implícita, que inclui a opinião de especialistas em processos de trabalho, também foi evidente em todas as UBS, que afirmaram serem acompanhadas pela Diretoria de Atenção Primária (DIRAPS/RSO) e terem livre espaço de comunicação, proposição e auxílio para os ajustes necessários à adequada prestação de serviços aos usuários. A evidência mais clara foi a utilização do checklist da Carteira de Serviços da APS, em que algumas ações e serviços são pactuadas com o Gerente da UBS por meio do Acordo de Gestão, e sobre o qual a DIRAPS/RSO faz auditorias e, não só acompanhando a métrica, mas desenvolvendo “papel do apoiador”, de escuta qualificada às fragilidades e necessidades da UBS, exercendo mediação de conflitos e possibilitando reflexão sobre os processos de trabalho para a identificação de obstáculos e soluções, e estimulando protagonismo dos envolvidos44.
As sub-dimensões classificadas como “Intermediária” estiveram relacionadas ao Modelo de Atenção (verificado ser maiormente tradicional), à Racionalização do Cuidado (pela falta de transparência nas listas de espera), e à Auditoria Explícita (pela incipiência de avaliação com base em diretrizes clínicas). As evidências demonstraram que há utilização de diretrizes clínicas, mas que a maioria dos procedimentos ainda são pontuais, curativos e/ou reabilitadores. Destaca-se que a estratificação de risco foi observada em apenas uma UBS, o que dificulta a compreensão do perfil de risco da população adstrita, o planejamento das ações pelas equipes, e a adequada coordenação do cuidado. Para a gestão da clínica, deve-se gerir riscos coletivos e ambientais por meio da identificação de problemas de saúde, bem como de seus determinantes e condicionantes na população, de modo a se propor medidas de controle e melhoria na qualidade da atenção à saúde6.
Dentre os dificultadores para o alcance da pontuação nestas subdimensões, verificou-se a estrutura física deficitária (incluindo ausência de veículo para locomoção aos territórios, insuficiência no número de consultórios em relação ao número de profissionais e demanda, e falta de insumos, medicamentos e equipamentos); o absenteísmo de profissionais da ESF (independente da categoria profissional); a falta de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e de profissionais do NASF, e a resistência de profissionais em aderir ao modelo de atenção proposto. Resultado semelhante foi encontrado em avaliação normativa da implantação da ESF no Brasil, conduzida pelo Departamento de Atenção Básica (DAB) entre 2001 e 2002, que envolveu questões relacionadas à estrutura física, gestão e processos de trabalho das UBS e foi feita por meio de questionário. Apontaram-se inadequações em consultórios de enfermagem e quantidade abaixo do requerido de equipamentos, insumos e medicamentos, restringindo a carteira de serviços ofertada na APS. Também se observou que profissionais, sobretudo médicos e dentistas, não cumpriam a carga horária contratada, denotando falta de adesão ao modelo de atenção proposto45.
Estudo avaliativo conduzido em Minas Gerais e no Espírito Santo mostrou que a reordenação do modelo assistencial proposto pela ESF ainda tem sido distante, predominando o trabalho na lógica hospitalocêntrica na APS, com predomínio de ações curativas46. De forma semelhante, outra avaliação da qualidade dos serviços de APS, segundo modelo de atenção, em uma região de saúde de São Paulo, também indicou deficiência na qualidade da atenção prestada, mesmo naquelas organizadas com base na ESF47.
Nas UBS estudadas, as listas de espera estão, principalmente, relacionadas à regulação de encaminhamentos a outros níveis de atenção, mas estas não são transparentes à população, pois os usuários têm ciência do avançar da lista apenas em contatos presenciais com a UBS, gerando deslocamentos desnecessários, especialmente em se tratando de idosos. As evidências mostraram que as UBS somente possuem listas de espera para a área de saúde bucal, cujo tempo para o atendimento pode chegar a até 3 anos. Para os demais atendimentos, as UBS da RSO conseguem incluir os usuários eletivos em intervalo aproximado de 60 dias. No Chile, de modo semelhante, embora existam ferramentas de coordenação do cuidado, tais como prontuário eletrônico e protocolos, o cuidado é fragmentado e as filas de espera são elevadas, demonstrando a necessidade de maior protagonismo da APS para que se incorpore o papel de coordenadora de uma RAS41.
As sub-dimensões “incipientes” foram Humanização (especialmente pela fragmentação do cuidado e inexistência de projeto terapêutico singular) e Planejamento, Monitoramento e Avaliação dos Serviços de Saúde (pela ausência da utilização de planejamento de forma regular enquanto instrumento de gestão). A longitudinalidade, enquanto princípio da APS, requer acompanhamento contínuo do usuário e fortalecimento do vínculo entre população e equipe, com vigilância ativa e consequente redução no número de agravos por meio de condutas personalizadas14. Entretanto, sem a adequada dotação de profissionais nas equipes, principalmente de ACS, e sem a construção do Projeto Terapêutico Singular, usuários idosos não têm sido acolhidos em todas as suas necessidades, como propõe a clínica ampliada38.
De modo geral, no DF, é perceptível o avanço teórico-metodológico que demonstram os novos caminhos a percorrer e fornecem opções de combinações tecnológicas para a promoção do envelhecimento e para o enfrentamento das situações e dos diferentes problemas que dele emergem. Contudo, os desafios persistem, uma vez que as tecnologias estão relacionadas ao “saber fazer” e a um “ir fazendo”48, pois suas ações estratégicas são processos de intervenção e se estruturam como tecnologias relacionais, de encontros e de subjetividades. Isso faz com que seja necessário um “trabalho vivo”, voltado às necessidades dos indivíduos e construído em relações de confiança entre eles e os profissionais-serviço, que substitua o “trabalho morto”, médico-centrado e produtor de procedimentos49.
Apesar dos avanços, é necessário superar os modelos de gestão verticalizados; aprimorar a formação dos profissionais de saúde, capacitando-os para um olhar humanístico da atenção e da gestão; vencer as barreiras da fragmentação, da mecanização do cuidado e da oferta em linhas de produção; e considerar as subjetividades que envolvem os processos de trabalho em saúde, pois a gestão em saúde é campo de saber e de atuação multifacetada, que demanda contínuo “des-re” construir “do fazer em saúde”, num movimento cíclico de se repensar os processos de trabalho para a constante promoção de melhorias.
Assim como no Brasil, o DF apresenta mudanças em seu perfil de demográfico, o que aponta para a necessidade de adequação da APS à promoção da qualidade de vida na velhice. Em 2017, o DF implantou ESF em todas as UBS, entretanto a gestão ainda necessita de avanços na utilização de ferramentas de microgestão de modo a qualificar o cuidado ofertado à população idosa e de fato transicionar de modelo de atenção tradicionalmente biomédico, baseado na demanda espontânea, para a ESF, com organização da oferta e responsabilização do território. A base de evidências verificada para a pontuação na Matriz de Avaliação mostrou que, apesar de alguns dificultadores relacionados à estrutura física e aos recursos humanos, houve ampliação do acesso a esse ciclo de vida, o que pode aumentar a satisfação desses usuários e, a longo prazo, a melhora clínica a partir da longitudinalidade do cuidado. Há necessidade de avanços na instrumentalização das equipes ESF já existentes, na contratação de novas equipes e de mecanismos que concedam autonomia gestora em casos de ausência de profissionais para a contratação de substitutos e/ou que regulem de modo mais eficiente o absenteísmo, identificado com unanimidade como um dos principais dificultadores na relação com a equipe ESF e comprometedor dos processos de trabalho na APS, para que se cumpram as demandas da legislação atual, e se garanta a integralidade da atenção aos usuários idosos.