versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.16 no.2 São Paulo 2018 Epub 21-Jun-2018
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082018ao4205
O sono é um estado comportamental reversível de desligamento da percepção e de relativa irresponsividade ao ambiente.(1) Os processos neurobiológicos que ocorrem no sono são necessários em virtualmente todas as espécies, para a manutenção da saúde física e cognitiva. Os transtornos do sono podem trazer prejuízos no desempenho dos estudos, no trabalho, nas relações familiares e sociais, além de estarem associados ao maior risco de acidentes, tanto de trabalho quanto automobilísticos.(2)
Para a investigação adequada dos transtornos do sono, podem-se utilizar, além da avaliação clínica, medidas objetivas e subjetivas. Entre as medidas objetivas, a polissonografia é um exame de grande importância, pois permite a avaliação tanto do sono normal quanto do alterado.(3) A polissonografia é feita durante uma noite de sono, com monitorização contínua de variáveis eletrofisiológicas, como eletroencefalograma, movimentos oculares, movimentos tóraco-abdominais, fluxo aéreo e tônus da musculatura submentual, a fim de caracterizar a quantidade e a qualidade do sono. São feitos o eletrocardiograma, para registro de frequência e ritmo cardíacos, e a medida da saturação arterial de oxigênio.(4) Para a realização deste exame, é necessário um local com estrutura física adequada e recursos humanos com treinamento específico, o que, muitas vezes, restringe seu uso no cotidiano.(5)
Os instrumentos para medidas subjetivas podem ser utilizados tanto na rotina clínica quanto em protocolos de pesquisa.(5) Alguns deles avaliam o sono em seus aspectos gerais, enquanto outros são mais direcionados para determinadas alterações, como os utilizados na avaliação da sonolência diurna excessiva (SDE). O Índice de Qualidade do Sono de Pittsburgh (PSQI - Pittsburgh Sleep Quality Index)(6) fornece um índice de gravidade e natureza do transtorno, ou seja, uma combinação de informação quantitativa e qualitativa sobre o sono. Já a Escala de Sonolência de Epworth (ESS - Epworth Sleepiness Scale)(7) foi desenvolvida para avaliar a ocorrência de SDE, referindo-se à possibilidade de cochilar em situações cotidianas. Por ser considerada simples, de fácil entendimento e preenchimento rápido, esta escala é amplamente utilizada.(5)
Em sua última publicação, a International Continence Society define a incontinência urinária como toda perda involuntária de urina.(8) É relativamente comum, com prevalência que varia de 5% em mulheres jovens a cerca de 50% nas idosas.(9) A incontinência urinária de esforço (IUE) é a forma mais comum de queixa urinária entre as mulheres, seguida pela urgeincontinência, particularmente na transição menopausal.(10)
Os fatores de risco citados para o desenvolvimento de IUE incluem idade avançada; raça branca; obesidade; partos vaginais quando, na passagem do feto, podem ocorrer danos à musculatura e inervação locais; partos traumáticos, com o uso de fórceps e/ou episiotomias; multiparidade; gravidez em idade avançada; deficiência estrogênica; condições associadas ao aumento da pressão intra-abdominal; tabagismo; diabetes; doenças do colágeno; neuropatias e histerectomia prévia.(11)
Para a mulher, além do desconforto higiênico, a IUE determina problemas sociais, sexuais, psíquicos e econômicos.(12)
Alguns sintomas associados à incontinência urinária afetam a qualidade do sono das mulheres, como a noctúria (levantar-se da cama mais de uma vez à noite para urinar) e a enurese noturna (perda involuntária de urina durante o sono).(13)
A má qualidade do sono em idosos pode estar associada à noctúria, que é a causa mais frequente de distúrbios do sono entre os idosos institucionalizados e afeta 70% desta população.(14)
Dentre as modalidades terapêuticas existentes para esta condição, a abordagem cirúrgica é a que oferece os melhores resultados. Exercícios perineais visando ao fortalecimento da musculatura do assoalho pélvico, eletroestimulação perineal e uso de fármacos têm sido descritos na literatura, porém com resultados pouco animadores.(15)
O objetivo das cirurgias para a correção da IUE é prover um suporte suburetral adequado, reconstituindo a função dos elementos músculo-fásciais responsáveis pela estabilização uretral durante as manobras de esforço abdominal.(16)
Os slings vêm sendo usados há quase um século para o tratamento da incontinência urinária em mulheres. Considera-se que, além do suporte promovido pelo material disposto na região suburetral, o sling promove um arcabouço sobre o qual se desenvolve um processo de fibrose, que representará o principal elemento de sustentação uretral a longo prazo, substituindo funcionalmente os ligamentos pubouretrais e uretropélvico, cuja função considera-se estar comprometida na insuficiência esfincteriana intrínseca da uretra.(17)
Estudos publicados para investigar possíveis implicações da incontinência urinária na qualidade do sono de mulheres portadoras de disfunções do assoalho pélvico são ainda escassos.
Avaliar a qualidade do sono em mulheres com incontinência urinária antes e depois de correção cirúrgica do tipo sling.
Com o objetivo de assegurar os direitos e deveres que dizem respeito à comunidade científica, aos sujeitos da pesquisa e ao Estado, este estudo observou as diretrizes da Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), sendo previamente submetido à avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina do ABC, Santo André, SP e aprovado sob o parecer 38.253, CAAE: 00800512.5.0000.0082. Todas as pacientes foram esclarecidas e assinaram Termo de Consentimento para participação no estudo.
Trata-se de um estudo prospectivo, do tipo série de casos, realizado com pacientes do sexo feminino e que apresentavam o diagnóstico urodinâmico de IUE.
Com o propósito de avaliar a qualidade subjetiva do sono, foram utilizados dois questionários específicos e validados para a língua portuguesa por Bertolazi:(5) ESS e PSQI.
O PSQI(18) avalia a qualidade do sono em relação ao último mês, sendo clinicamente útil na avaliação de vários transtornos do sono que afetam a qualidade do sono.(19) Consiste de 19 questões autoadministradas e 5 questões respondidas por seus companheiros de quarto. Estas últimas são utilizadas somente para informação clínica. As 19 questões são agrupadas em 7 componentes, com pesos distribuídos em uma escala de zero a 3. São eles: (1) qualidade subjetiva do sono, (2) latência para o sono, (3) duração do sono, (4) eficiência habitual do sono, (5) transtornos do sono, (6) uso de medicamentos para dormir e (7) disfunção diurna. As pontuações destes componentes são, então, somadas para produzirem um escore global, que varia de zero a 21, no qual quanto maior a pontuação, pior a qualidade do sono.
A ESS(20) foi desenvolvida por meio da observação da natureza e da ocorrência da sonolência diurna. É um questionário autoadministrado e se refere à possibilidade de cochilar em oito situações cotidianas. Para graduar a probabilidade de cochilar, o indivíduo utiliza uma escala de zero a 3, sendo que zero corresponde a nenhuma e 3 a grande probabilidade de cochilar. Utilizando uma pontuação total >10 como ponto de corte, é possível identificar indivíduos com grande possibilidade de SDE.(21) Já pontuações maiores de 16 são indicativas de sonolência grave, mais comumente encontrada nos pacientes com síndrome da apneia obstrutiva do sono moderada ou grave, narcolepsia ou hipersonia idiopática.
A cirurgia realizada no tratamento da IUE foi o sling transobturatório (Safyre T Plus® Promedon®).
Os questionários PSQI e ESS foram aplicados pelo pesquisador principal antes e 6 meses depois da correção cirúrgica por meio do procedimento de sling. Todas as pacientes incluídas no estudo faziam acompanhamento no Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (CAISM) do município de São Bernardo do Campo (SP), vinculado à Faculdade de Medicina do ABC, e foram acompanhadas entre janeiro e dezembro de 2013.
Posteriomente, os dados foram exportados para análise estatística em software específico GraphPadPrism versão 6.0. Para os propósitos da comparação dos resultados dos questionários antes e depois dos procedimentos cirúrgicos, foi utilizado o teste não paramétrico de Mann-Whitney. Adotou-se como nível de rejeição da hipótese de nulidade p=0,05 ou 5%.
Foram incluídas 36 pacientes do sexo feminino, com média de idade de 48,2±6,8 anos e que apresentavam o diagnóstico urodinâmico de IUE. Foram excluídas as pacientes que não responderam completamente os questionários.
Ao analisar a ESS, observou-se melhora da qualidade do sono (p=0,0401) 6 meses após a realização do procedimento para a correção da IUE. A mediana do escore antes da cirurgia foi 12 e após, 5,5, como demonstrado no figura 1.
Figura 1 Mediana do escore para a Escala de Sonolência de Epworth antes e após a cirurgia para a qualidade do sono
Ao utilizar o PSQI, foram analisados seus sete parâmetros (domínios). Para o domínio transtornos do sono, observou-se melhora da qualidade do sono após os procedimentos cirúrgicos (p=0,0127). A mediana do escore antes da cirurgia de sling foi de 1,5 e, após, de 1,0. O resultado pode ser visto na figura 2.
Figura 2 Mediana do escore antes e após a cirurgia de sling, pelo teste não paramétrico de Mann-Whitney, para o domínio transtorno do sono
Ao se avaliarem os demais domínios, não houve significância estatística antes e após a cirurgia, com mediana dos escores de 1,0 antes e após a cirurgia: duração do sono (p=0,9740), latência para o sono (p=0,9690), disfunção diária devido à sonolência (p=0,1739), eficiência do sono (p=0,8943), qualidade subjetiva do sono (p=0,4490) e necessidade de medicações para dormir (p>0,9999). Finalmente, para avaliação do escore total do PSQI, foi encontrado p=0,3643. Apenas nesse último, a mediana do escore antes da cirurgia de sling foi de 3,0 e, após o procedimento, 2,5. O comportamento desse domínio pode ser visto na figura 3.
Alterações no sono podem ocasionar significativos prejuízos cognitivos, ou seja, dificuldade de fixar e manter a atenção, perda de memória, diminuição da capacidade de planejamento estratégico, prejuízo motor, dificuldade de controlar impulsos e raciocínio obnubilado. Estas alterações, além de causarem aumento no risco de acidentes de trabalho e automobilísticos, também resultam em prejuízos no desempenho dos estudos, no trabalho, nas relações familiares e sociais.(22)
Em um estudo realizado em Lavras, MG, Brasil 73,3% das mulheres apresentaram qualidade do sono ruim e 20% já apresentavam distúrbios do sono. Deve-se lembrar que a população estudada era idosa, e o sono já é alterado nela; além disso, grande parte dessas pessoas tomava medicamentos que poderiam também alterar o sono.(14)
Um estudo que entrevistou 1.424 idosas encontrou 53% delas com noctúria, sendo que 75% relataram insônia e 71%, redução da qualidade do sono. Também foi encontrada uma relação da noctúria com o aumento de cochilos diurnos.(23)
Todas estas alterações tendem a causar envelhecimento precoce e a diminuir a expectativa de vida.(23) A adoção de medidas de prevenção em indivíduos jovens adultos é hoje reconhecida como de grande importância para a prevenção de doenças cardiovasculares, como a hipertensão. Tais medidas incluem melhora no estilo de vida das pessoas, assim como na qualidade de sono.(24)
Uma vez que mulheres com disfunções urinárias são suscetíveis a transtornos de sono como consequência do excesso de idas ao banheiro para o esvaziamento vesical e/ou pela necessidade de trocas de absorventes higiênicos, consideramos de grande importância a avaliação dos hábitos de sono dessas pacientes.
Conhecer a qualidade do sono de mulheres com IUE deve permitir apresentar contribuições para o desenvolvimento de atividades educativas e de conscientização voltadas para a valorização da saúde da mulher. Muitas das pacientes com IUE acreditam que a perda urinária faz parte do envelhecimento e que as formas disponíveis de tratamento em nada contribuem para o incremento da qualidade de vida.
Os dados deste estudo são inequívocos em demonstrar que a correção cirúrgica pode amenizar as disfunções do sono de mulheres com incontinência urinária. A cirurgia permite a melhora da perda urinária e contribui para a prevenção de doenças que têm prevalência elevada nas mulheres com distúrbios do sono, especialmente as cardiovasculares.
Para mulheres portadoras de incontinência urinária submetidas à correção cirúrgica por meio de slings, houve melhora tanto na qualidade do sono (quando realizada a avaliação pela Escala de Sonolência de Epworth) como também nos transtornos do sono: insônia, síndrome da apneia obstrutiva do sono e ronco (avaliado pelo questionário de Pittsburgh).