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Avaliação da qualidade dos serviços de Atenção Primária à Saúde para crianças: reflexões sobre a viabilidade do uso rotineiro do Primary Care Assessment Tool-Brazil

Avaliação da qualidade dos serviços de Atenção Primária à Saúde para crianças: reflexões sobre a viabilidade do uso rotineiro do Primary Care Assessment Tool-Brazil

Autores:

Liz Ponnet,
Sara Willems,
Veerle Vyncke,
Aylene Emilia Moraes Bousquat,
Ana Luiza d’Ávila Viana,
Guilherme Arantes Mello,
Marcelo Demarzo

ARTIGO ORIGINAL

Einstein (São Paulo)

versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385

Einstein (São Paulo) vol.17 no.1 São Paulo 2019 Epub 07-Fev-2019

http://dx.doi.org/10.31744/einstein_journal/2019ao4333

INTRODUÇÃO

Ao longo dos últimos 20 anos, o Brasil, país tradicionalmente caraterizado por desigualdades regionais, socioeconômicas e de assistência à saúde,(1)tem progredido em relação à provisão de um assistência à saúde mais equitária.(2)Um importante passo neste progresso foi a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), que disponibiliza acesso universal e gratuito aos serviços de saúde para todos os cidadãos.(3)A Atenção Primária à Saúde (APS) é a porta de entrada preferencial para o sistema nacional de saúde,(4)uma política que mostra redução das iniquidades nesta assistência.(5)Quando um cidadão brasileiro sente a necessidade de procurar um médico, ele pode visitar um centro de APS público, onde é atendido por um enfermeiro, um clínico geral (adulto), um pediatria (criança) ou ginecologista (mulheres). Este modelo é o tradicional de APS e ainda atende 38% da população brasileira.(6)A maioria dos brasileiros (62%) é inscrita no modelo da Estratégia Saúde da Família (ESF), em que uma equipe multidisciplinar composta por um médico de família, uma enfermeira, um técnico de enfermagem, quatro agentes comunitários de saúde e uma equipe de saúde bucal é responsável por uma população adscrita em um área geográfica delineada.(7)Neste modelo, um agente comunitário de saúde visita cada família uma vez por mês e estabelece um elo entre a comunidade e a unidade da ESF para todas as questões relacionadas à saúde. Se um usuário do SUS expressa a necessidade de marcar uma consulta médica, o atendimento pode ser realizado no ESF, no qual o médico da família atende a maioria dos problemas de saúde, e ele pode ser encaminhado para outras especialidades se o médico julgar necessário. Além do cuidado médico, o usuário pode contar com outros serviços de APS como vacinações, curativos, assistência odontológica e ações de promoção de saúde.

Cada município é responsável por organizar seus próprios serviços públicos de APS,(4)que são gerenciados pela Secretaria Municipal de Saúde, com participação ativa dos usuários do SUS. Ao longo do tempo, municípios evoluíram de modelos tradicionais de APS para o modelo de ESF baseando-se em sólidas evidências de que este último modelo reduz as iniquidades na assistência à saúde e também as taxas da mortalidade infantil.(2,8,9)

O Brasil conta com 5.570 municípios; 70% destes são pequenos e compostos de menos de 20 mil habitantes.(10)Uma extensa variedade de modelos de APS pode ser encontrada, especialmente em municípios rurais ou remotos, em que o desafio é garantir o acesso aos serviços de APS próximos as casas dos cidadãos, devido às longas distâncias da unidade de saúde, vias sem asfalto inacessíveis durante estações de chuva e mesmo a falta de comunicação, como falta de sinal de rede de telefone móvel.

A APS, por natureza, disponibiliza uma resposta às barreiras mencionadas. Os atributos essenciais(11)da APS podem ser definidos como: acesso do primeiro contato e utilização dos serviços de saúde, o que significa que o usuário procura a unidade de APS para cada nova necessidade de saúde; longitudinalidade do cuidado, que significa que o usuário é cuidado ao longo do tempo em seu centro de saúde regular ou unidade de ESF para qualquer problema de saúde; integralidade dos serviços, ou opções de serviço de saúde disponibilizados aos usuários, incluindo serviços de saúde preventivos e curativos, e encaminhamentos à outros especialistas; e coordenação do cuidado, envolvendo a unidade APS como um parceiro-chave no gerenciamento de problemas de saúde de seus usuários, por meio do prontuário médico e do bom relacionamento entre a pessoa e o profissional de saúde.

Outros três atributos derivados definem a APS:(11)(1) a orientação familiar, referindo-se à compreensão de influências complexas de uma família na necessidade de saúde de um individuo; (2) a orientação comunitária, significando que a unidade de APS entende as necessidades de saúde (não atendidas) da comunidade da qual o usuário faz parte e entende as características de saúde relacionadas a uma comunidade específica; e (3) competência cultural, quando um usuário se relaciona com um profissional de APS que respeita seus medos e crenças de saúde, reconhece sua influência na saúde, e pode se fazer entender e expressar questões técnicas em uma linguagem totalmente compreendida pelo usuário.

Diversos instrumentos têm sido desenvolvidos para avaliar os atributos da APS, incluindo a Primary Care Assessment Tool (PCAT),(12)que foi traduzido e adaptada para uso em diferentes países,(13-15)incluindo da América Latina, como Uruguai,(16)Argentina(17)e Brasil.(18)Sua confiabilidade transcultural é uma das principais vantagens. O Ministério da Saúde incentiva o uso da PCAT-Brazil para avaliação e monitoria da qualidade dos serviços de APS.(19)Muitos estudos nacionais têm sido realizados para avaliar os atributos da APS utilizando PCAT-Brazil. A maioria deles, porém, foi conduzida em grandes cidades, e alguns fazem parte do estudo financiado pelo Ministério da Saúde e pelo Banco Mundial por meio do Projeto de Expansão e Consolidação da Saúde da Família (PROESF) em municípios com mais de 100 mil habitantes.(20,21)

OBJETIVO

Avaliar a qualidade dos serviços de Atenção Primária à Saúde oferecidos às crianças de um pequeno município rural e a viabilidade de usar o PCAT-Brazil como ferramenta rotineira de avaliação de qualidade.

METÓDOS

Local do estudo

O estudo foi conduzido em Joanópolis, um pequeno município rural de 12.610 habitantes, localizado nas montanhas da Serra da Mantiqueira no Estado de São Paulo.(10)A incidência de pobreza na área é alta, com 31,30% da população do município com renda mensal de até meio salário mínimo.(10)A renda mensal per capita é de R$607,00 (US$190.7), equivalente a 1,2 salário mínimo.(10)A maioria da população com mais de 25 anos (76,3%) tem menos de 8 anos de ensino.(10)Metade da população vive no centro da cidade, e a outra metade, na área rural montanhosa. O território é extenso (374.28km 2 ),(10)com algumas pessoas morando a mais de 30km do centro da cidade, onde todos os serviços de saúde concentram-se. Não há transporte público disponível. O município conta com um centro de saúde público que oferece serviços de APS e um pronto-socorro, mantido por uma organização filantrópica, que disponibiliza atendimento de emergência por 24 horas. Além disso, há um consultório médico privado. O coeficiente de médicos prestando serviços de saúde no SUS é de 0,72 por 1.000 habitantes.(22)O quadro de profissionais de saúde no centro de saúde inclui dois enfermeiros, três técnicos de enfermagem (2,2 equivalentes a tempo integral − ETI), três clínicos gerais (2ETI), 2 pediatras (1ETI), 2 ginecologistas (1ETI) e outros especialistas, como um cirurgião ortopedista (1/6ETI), um psiquiátrica (1/5ETI) e um cardiologista (1/5ETI). Há provisão esporádica de atividades nas áreas rurais.(22)A ESF, com equipe multidisciplinar que atende população adscrita, ainda não estava em prática quando este estudo foi conduzido.(22)A maioria da população (79,9%) não tinha plano de saúde e era dependente exclusivamente do SUS.(22)

Considerações éticas

Esse estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo, CAAE: 02244812.0.0000.5505, e também foi aprovado pelo Comitê de Ética da Ghent University , sob número BE670201420498.

Desenho

Trata-se de estudo transversal por meio da aplicação da PCAT-Brazil às crianças e aos profissionais de um centro de saúde público no Brasil.

Ferramenta de avaliação

A PCAT-Brazil versão criança é ferramenta adaptada à realidade brasileira disponível como questionário cliente-consumidor aplicado aos responsáveis legais de crianças e como pesquisa dos profissionais de saúde. Conta com 55 itens na versão consumidor e 77 na versão profissional. O formulário mede o grau de afiliação à unidade de saúde, o uso dos serviços de saúde e os atributos da APS. Os quatro atributos essenciais da APS são o acesso de primeiro contato aos serviços de saúde, a longitudinalidade (“os cuidados ao longo do tempo”), a coordenação da atenção (integração e sistema de informações) e a integralidade dos serviços disponíveis e ofertados. Os dois atributos derivados de APS são a orientação familiar e orientação comunitária. Para cada atributo, um escore pode ser calculado em uma escala variando de zero a 10. A soma de todos os atributos, calculada seguindo regras predeterminadas,(19)resulta num escore geral de APS. Se apenas quatro dos principais atributos foram considerados, o escore essencial da APS pode ser calculado, refletindo o desempenho dos atributos essenciais dos serviços de APS oferecidos.

PCAT-Brazil versão criança: responsáveis legais

Participantes: seleção de respondentes

Foram elegíveis pais ou responsáveis legais de crianças com idade entre zero e 12 anos, que procuraram o centro de saúde público para assistência médica não urgente à criança. O pai/responsável foi abordado na sala de espera e convidado a participar do estudo. Após a leitura das explicações do estudo e a assinatura do Termo de Consentimento, a PCAT-Brazil versão criança foi administrada oralmente.

Foram excluídos país/responsáveis com distúrbios mentais. No caso de país/responsáveis procurando assistência para duas ou mais crianças, a PCAT-Brazil foi aplicada somente à criança mais jovem.

Amostra

A amostra de responsáveis legais das crianças foi calculada em n=319. Utilizou-se nível de confiança de 95%, considerando-se a população de 1.861 crianças, com idade de zero a 12 anos, residentes em Joanópolis, em 2012.

Coleta de dados

Dos 508 responsáveis abordados para participar no estudo, 6 recusaram a participação (taxa de resposta de 98,9%). Os dados de 502 cuidadores foram coletados utilizando a PCAT-Brazil versão criança entre outubro 2013 e agosto de 2014.

Variáveis de resultados e medidas

Os escores para cada atributo, geral e essencial de APS, representam as variáveis do resultado.

Quanto mais alto o escore, melhor, com 6,6 sendo o ponto de cut-off para assistência de alta qualidade.(18)

Análise de dados

Os dados foram incluídos no Excel por um pesquisador e revisado por outro. Statistical Package for Social Sciences (SPSS) versão 23,0 para Windows foi adotado para o processamento de dados. Os resultados mostraram os escores de média e os respectivos intervalos de confiança de 95%.

PCAT-Brazil versão profissional de saúde

Participantes

Todos os profissionais de saúde que trabalhavam no serviço de APS em Joanópolis, na assistência infantil, e dois gerentes locais de saúde (n=8) foram convidados a participar do estudo. Com a exceção de um, os demais aceitaram o convite. Um dos profissionais não respondeu o PCAT-Brazil por ter sido recentemente empregado no serviço, reduzindo o número de respondentes a sete. Todos os incluídos tinham um diploma universitário (médico ou enfermeiro padrão).

Variáveis de resultados e medidas

A PCAT-Brazil versão profissional permite calcular os escores para cada atributo, além dos escores geral e essencial de APS, indicando o desempenho dos serviços

de APS do ponto de vista do profissional de saúde.

O escore numérico varia de zero a 10, com 6,6 sendo o cut-off para um serviço de APS com bom desempenho.(18)

Principais resultados medidos

O escore numérico varia de zero a 10, com 6,6 sendo o cut-off para um serviço de APS com bom desempenho.(18)

Coleta de dados

Após dar o consentimento, os profissionais de saúde preencheram a PCAT-Brazil versão profissional de saúde e enviaram ao pesquisador.

Análise de dados

Os dados foram incluídos no Excel por um pesquisador e revisados por outro pesquisador. O SPSS versão 23,0 para Windows foi adotado para processamento dos dados. Os resultados mostraram o escore média e os respectivos intervalos de confiança de 95%.

Viabilidade do estudo PCAT

Para avaliar a viabilidade da PCAT-Brazil, o tempo investido de mão de obra, orçamento e cronograma foi documentado também como fator capacitante e incapacitante, descrito pelo pesquisador principal.

RESULTADOS

Avaliação da qualidade dos serviços de Atenção Primária a Saúde disponibilizados às crianças do ponto de vista dos responsáveis

Os responsáveis avaliaram a qualidade geral dos serviços de APS disponibilizados para seus filhos como insatisfatório: o escore geral de APS foi de 5,62. Quando apenas os atributos essenciais de APS foram considerados, os responsáveis atribuíram um escore melhor: o escore essencial de APS foi de 6,92.

A maioria dos responsáveis considerou o centro de saúde como local onde normalmente levava seus filhos para tratar uma necessidade de saúde. O grau de afiliação para centro de saúde foi de 7,96. Eles também relataram usar o centro de saúde, em geral, para o primeiro contato de assistência à saúde, com escore de 9,57. A acessibilidade foi considerada baixa (4,09), como a longitudinalidade (5,48). A coordenação do cuidado (8,54) e os sistemas de informação (7,58) foram considerados satisfatórios do ponto de vista do responsável. O atributo de integralidade foi positivo para o componente de serviços disponíveis (7,20) e quase positivo para os serviços oferecidos (6,23). A orientação familiar apresentou escore menor (2,04) e a orientação comunitária estava quase ausente (0,01). A tabela 1 mostra a média de escore para atributos com intervalo de confiança, baseado na experiência dos responsáveis.

Tabela 1 Atributos de Atenção Primária à Saúde (APS), escore médio e intervalo de confiança 95% para usuários infantis 

Atributos APS n Escore IC95%
Grau de afiliação 502 7,96 7,77-8,15
Primeiro contato aos serviços de saúde
Uso dos serviços 502 9,57 9,46-9,69
Acessibilidade 502 4,09 3,93-4,26
Longitudinalidade 502 5,48 5,39-5,58
Coordenação/integração de cuidados 100 8,54 7,88-9,20
Coordenação/sistemas de informação 502 7,58 7,44-7,73
Integralidade/serviços disponíveis 448 7,20 7,09-7,32
Integralidade/serviços oferecidos 495 6,23 5,89-6,57
Escore essencial de APS 6,92 6,82-7,01
Orientação familiar 500 2,04 1,83-2,26
Orientação comunitária 502 0,01 -0,01-0,02
Escore geral de APS 5,62 5,53-5,70

Avaliação da qualidade dos serviços de Atenção Primária à Saúde para crianças do ponto de vista dos profissional de saúde

Os profissionais de saúde avaliaram os serviços de APS ofertados às crianças como insatisfatórios ( cut-off <6,6). O escore geral de APS foi de 5,52. Mesmo se apenas os atributos essenciais da APS forem considerados, o escore essencial de APS ainda foi negativo (5,67). A acessibilidade do primeiro contato alcançou boa pontuação (7,20). Foram considerados negativos a longitudinalidade (5,57), a coordenação do cuidado (5,32), a coordenação dos sistemas de informação (4,44), a integralidade dos serviços disponíveis (5,95) e serviços oferecidos (5,56). A orientação familiar (5,71) e a orientação comuntária (4,44) obteve pontuação baixa. A tabela 2 sintetiza os atributos, os escores gerais e essenciais de APS do ponto de vista dos profissionais de saúde.

Tabela 2 Atributos da Atenção Primária à Saúde (APS) pela Primary Care Assessment Tool , versão profissional 

Atributos APS Escore (n=7)
Primeiro contato de assistência à saúde. Acessibilidade 7,20
Longitudinalidade 5,57
Coordenação do cuidado/integração de cuidados 5,32
Coordenação do cuidado/sistemas de informação 4,44
Integralidade/serviços disponíveis 5,95
Integralidade/serviços oferecidos 5,56
Escore essencial de APS 5,67
Orientação familiar 5,71
Orientação comunitária 4,44
Escore geral de APS 5,52

Viabilidade do uso da Primary Care Assessment Tool-Brasil como ferramenta de avaliação de rotina

Neste estudo, pelo menos 1.241 horas de trabalho foram investigadas, sendo 39% delas relacionadas ao desenho do estudo, 21% à coleta de dados, e 13% a análise de dados, escrita e relato de divulgação de resultados preliminares. O estudo se iniciou em 2012, e os resultados foram distribuídos em março de 2016. O orçamento estimado foi de R$12.900,00 (equivalente a US$3,953.73). A tabela 3 resume a investigação das horas trabalhadas, do orçamento e do cronograma da PCAT-Brazil em Joanópolis.

Tabela 3 Mão de obra, orçamento e cronograma investido da Primary Care Assessment Tool-Brazil PCAT-Brazil 

Mão de obra (horas) Orçamento (R$) Cronograma

Dada inicial Data final
Escrever o protocolo de estudo 480 0 1/4/2012 30/7/2012
Obtenção de aprovação ética 48 0 30/7/2012 18/2/2013
Obtenção de aprovação de autoridades locais de saúde 30 0 1/8/2012 1/7/2013
Informar profissionais de saúde e colaboradores do centro de saúde 24 0 1/6/2013 20/7/2013
Preparar a coleta de dados (xerocar questionários e consentimentos) 8 1.800,00 1/6/2013 25/7/2013
Treinamento de entrevistadores 56 0 1/7/2013 30/7/2013
Coleta de dados da PCAT-Brazil 265 5.100,00 25/7/2013 11/8/2014
Transporte e comunicação 1.000,00
Incluir dados (revisão) 160 4.000,00 1/5/2014 1/12/2014
Análise de dados 40 0 5/1/2015 11/1/2015
Escrever os resultados 50 0 12/1/2015 5/2/2015
Divulgação de resultados 80 1.000,00 12/1/2015 Em andamento
Total 1.241 12.900,00

A motivação dos profissionais de saúde e o suporte do gerente local dos serviços de saúde foram considerados facilitadores para realização da PCAT-Brazil neste contexto particular.

Apesar de o Ministério da Saúde providenciar a PCAT-Brazil on-line e enfatizar a importância do uso desta ferramenta como instrumento de medida de qualidade dos serviços de APS rotineiramente, os pesquisadores encontraram algumas dificuldades. Primeiro, o Ministério da Saúde não previu financiamento para tais estudos e, mesmo em escala menor como nosso estudo, este tipo de estudo teve um custo razoável. Segundo o Ministério da Saúde disponibilizou a ferramenta, mas não o programa para calcular os escores. Ademais, calcular os escores foi factível, mas envolveu tempo e constante medição da qualidade. Outros autores(23)também apontaram que uma versão mais curta da PCAT-Brazil poderia facilitar o uso da ferramenta, em avaliação de rotina. Além disso, realizar pesquisa em área rural foi um desafio: a comunicação pode ser difícil (conexão de internet ruim ou inexistente, ou mesmo falta de energia durante as estações de chuva), a distância até a universidade ou centro de pesquisa é longa, o transporte público não estava disponível etc. Também, problemas práticos tiveram de ser resolvidos, como o espaço pequeno dentro do centro de saúde, que teve ser dividido entre os pesquisadores e os profissionais de saúde. Durante o estudo, houve mudança na gerência local de saúde, devido às mudanças de mandato político; isso foi considerado um fator impactante, um desafio para a continuidade do projeto de pesquisa.

DISCUSSÃO

Avaliação da qualidade da Atenção Primária à Saúde ofertada às crianças em área rural

Escores geral e essencial da Atenção Primária à Saúde

Tanto os responsáveis como os profissionais de saúde avaliaram a qualidade dos serviços de APS oferecidos às crianças como insatisfatório, conforme o escore geral de APS. Se os responsáveis consideram apenas os atributos essenciais, eles avaliam os serviços de APS como adequados. Se as orientações familiar e comunitária não foram consideradas, o escore dos profissionais de saúde não mudaria em relação à qualidade dos serviços de APS, permanecendo avaliadas como inadequadas.

Orientação familiar e comunitária

Embora seja verdadeiro o fato de a ESF não ter sido implementada no município durante o período do estudo, esse fato isoladamente não pode explicar os resultados extremamente baixos. A maioria dos estudos no Brasil mostra orientação deficiente à família e à comunidade, mesmo se os escores para estes atributos derivados de APS tendem a ser melhores nas unidades de ESF comparados às unidades tradicionais de APS.(20,23,24)Uma das explicações para tal é o fato de a orientação à família ser desafiadora nos grandes centros urbanos ou grande metrópoles,(25)porém este estudo sugere que, mesmo em áreas rurais, a orientação é falha. Talvez, parte da explicação seja que poucos profissionais de saúde trabalhando na APS são treinados em Medicina de Família e Comunidade,(26,27)e eles têm uma visão curativa tradicional hospitalocêntrica. Por esta razão, eles tratam os sintomas dos pacientes com medicamentos(28)e não integram aspectos da família ou da comunidade no manejo dos pacientes.

Grau de afiliação, uso e acessibilidade de primeiro contato ao centro de saúde

Apesar de os responsáveis considerarem o centro de saúde a porta de entrada no sistema de saúde e o usarem muito frequentemente, eles avaliaram a acessibilidade como baixa, como em outros estudos no Brasil.(20-24)Porém este foi o único atributo que os profissionais de saúde avaliaram como bom. Esse fato pode ser explicado pela densidade médica reduzida durante o período de estudo: 5,37 médicos para cada 10 mil crianças com idade de zero a 12 anos, e 1,59 enfermeiro para 10 mil usuários (adultos e crianças). Em uma típica cidade pequena brasileira, a densidade de profissionais de saúde é muito menor que 23 profissionais de saúde (médicos, enfermeiros e enfermeiros obstétricos) por 10 mil habitantes, número considerado adequado pela Organização Mundial da Saúde para a oferta de assistência essencial de saúde materno-infantil.(29)Além do número de profissionais, os aspectos organizacionais, como número limitado de consultas, podem ser responsáveis pela baixa acessibilidade.

Longitudinalidade

A longitudinalidade alcançou pontuação baixa, tanto pelos responsáveis quanto pelos profissionais de saúde. A literatura mostra resultados divergentes neste atributo.(20,21,23)Em nosso estudo, este resultado pode ser explicado pela conhecida alta rotatividade de médicos atendendo crianças no município, também pelo fato de muito poucos médicos serem treinados em oferecer cuidados ao longo do tempo.(26,27)

Coordenação do cuidado: serviços integrados e sistemas de informação

O responsáveis, em discordância com os profissionais de saúde, consideraram a coordenação do cuidado de boa qualidade. Os escores para estes atributos são mais altos do que os mencionadas na literatura.(20,21,23)

Reflexões da viabilidade de utilizar a Primary Care Assessment Tool- Brazil como ferramenta de avaliação de rotina

A avaliação da qualidade dos serviços de APS disponibilizados para crianças neste pequeno município mostra que, em geral, os serviços de saúde são considerados inadequados, com escore extremamente baixo para orientação familiar e comunitária.

Assim, não parece ser viável o uso da PCAT-Brazil como ferramenta de avaliação de rotina em uma pequena cidade rural. Algumas recomendações foram formuladas a partir desta experiência: (i) prever um orçamento para avaliar a qualidade dos serviços de APS disponibilizados a todos os usuários rotineiramente, com o objetivo de planejar e avaliar as intervenções em APS; (ii) reduzir o número de itens da avaliação longa de PCAT-Brazil que pode facilmente ser utilizado pelo gestor de saúde; (iii) disponibilizar alternativas para a versão clássica de PCAT-Brazil em papel, como formulários com dados que possam ser lidos por máquinas, validados automaticamente e armazenados em bases de dados disponíveis para análise, ou disponibilizados na versão para dispositivos móveis − em que dados podem ser armazenados e transferidos para uma base de dados central, quando a conexão sem fio não está disponível; (iv) disponibilizar plataformas de análise de dados automáticas ou softwares de programas gratuitos, em que as conversões de escores atribuídos possam ser recodificados automaticamente em escores entre zero a 10, possibilitando que os escores geral e essencial de APS sejam calculados automaticamente; (v) reunir dados de todos os estudos utilizando PCAT-Brazil em uma plataforma, permitindo comparar os escores obtidos entre municípios e regiões de saúde; (vi) auxiliar profissionais de saúde e gestores municipais com uma avaliação da qualidade dos serviços de saúde, especialmente em áreas rurais remotas, expandindo, por exemplo, a telemedicina ou outras plataformas remotas, para ajudar planejar as atividades de APS; (vii) fortalecer a colaboração das instituições de educação médica com serviços de APS remotos, para facilitar tais avaliações; e (viii) expandir os programas de formação em Medicina da Família e Comunidade, incluindo estágios em centros de saúde rurais e capacitando os novos médicos especialistas com ferramentas de avalição adequadas.

A PCAT-Brazil pode ser usada de modo rotineiro e como ferramenta de planejamento, em particular em ambiente não acadêmico rural, com o principal objetivo de disponibilizar serviços de APS de qualidade para os usuários.

CONCLUSÃO

Este estudo disponibiliza ideias em relação aos serviços de Atenção Primária à Saúde em uma pequena cidade rural brasileira. Há possibilidade de melhoria, especialmente em relação à orientação à família e à comunitária. O uso da PCAT-Brazil como ferramenta de avaliação de rotina parece não ser viável devido aos altos custos, à falta de profissionais capacitados e pelo grande número de horas de trabalho exigido.

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