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Avaliação da rede de diagnóstico laboratorial na implantação do Programa de Prevenção e Controle das Hepatites Virais no estado de São Paulo, 1997-2012

Avaliação da rede de diagnóstico laboratorial na implantação do Programa de Prevenção e Controle das Hepatites Virais no estado de São Paulo, 1997-2012

Autores:

Cristiano Corrêa de Azevedo Marques,
José da Rocha Carvalheiro

ARTIGO ORIGINAL

Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde vol.26 no.3 Brasília jul./set. 2017

http://dx.doi.org/10.5123/s1679-49742017000300009

Abstract

OBJECTIVE:

to assess the performance of the diagnostic network in the implementation process of the Program for Viral Hepatitis Prevention and Control in São Paulo State, Brazil, from 1997 to 2012.

METHODS:

evaluation study based on documentary research and structured interviews, combined with a historical series analysis of indicators developed to assess the implementation process of the program, using data from the Department of the Brazilian National Health System.

RESULTS:

from 1997 to 2012, the serology, biopsy and molecular biology diagnostic networks showed an increase in the coefficients of coverage of 7.4, 7.3, and 62.0 times, respectively, with an increase in cases detection and treatment access.

CONCLUSION:

despite the effective implementation of the diagnostic network, there is a need to review the search strategy for new cases, and access to liver biopsy, still insufficient to the program demand.

Keywords: Hepatitis Viral Human; Health Programs and Plans; Diagnostic Techniques and Procedures; Evaluation Studies

Resumen

OBJETIVO:

evaluar el desempeño de la red de diagnóstico en el proceso de implementación del Programa de Prevención y Control de la Hepatitis Viral en São Paulo, Brasil, de 1997 a 2012.

MÉTODOS:

estudio de evaluación utilizando métodos mixtos - investigación documental y entrevistas estructuradas -, con análisis de series históricas de indicadores desarrollados para evaluar la implementación del programa, mediante el Departamento de Informática del SUS (Datasus).

RESULTADOS:

las redes de diagnóstico de serología, biopsia y biología molecular tuvieron, entre 1997 a 2012, un aumento de los índices de cobertura en el orden de 7,4; 7,3 y 62,0 veces, respectivamente, con un crecimiento en los informes de los pacientes y acceso al tratamiento.

CONCLUSIÓN:

a pesar de la implementación efectiva de la red de diagnóstico para el programa, hay que revisar la estrategia de búsqueda de portadores, y acceso a biopsia de hígado, aún insuficiente para la demanda del programa.

Palabras-clave: Hepatitis Viral Humana; Planes y Programas de Salud; Técnicas y Procedimientos Diagnósticos; Estudios de Evaluación

Introdução

O controle das hepatites virais constitui um dos grandes desafios para a Saúde Pública. As estimativas da carga global das hepatites B e C alcançam cifras de centenas de milhões de infectados e dezenas de milhões de mortes, causando impacto considerável nos sistemas de saúde dos países.1-3

No último quarto do século XX, o desenvolvimento científico e tecnológico possibilitou uma série de avanços no enfrentamento desse problema, quando novos métodos utilizando biologia molecular e esquemas terapêuticos efetivos passaram a estar disponíveis.4-6 Nesse mesmo período, no Brasil, houve uma série de mudanças políticas e sociais, principalmente com a criação e implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) a partir da década de 1990.

Nesse cenário, a atuação de associações científicas, da academia, e a mobilização da sociedade civil organizada conduziram os gestores no estado de São Paulo (Secretaria de Estado da Saúde [SES/SP]) a implantar, em 2001, o Programa Estadual de Prevenção e Controle das Hepatites Virais (PEHV).7 No ano seguinte, o Ministério da Saúde instituiu o Programa Nacional de Prevenção e Controle das Hepatites Virais (PNHV)8 com o propósito de (i) ampliar a detecção de portadores de HV, (ii) reduzir o aparecimento de novos casos e (iii) reduzir a taxa de mortalidade por hepatites B e C, colocando em evidência o diagnóstico laboratorial é um elemento estratégico para identificar portadores, determinar a forma da doença, prescrever e acompanhar a resposta ao tratamento das hepatites virais.

A estruturação de uma rede de diagnóstico laboratorial, condição fundamental para uma intervenção efetiva nesse sentido, é o tema desta investigação que teve como objetivo avaliar o desempenho da rede de diagnóstico no processo de implantação do PEHV no estado de São Paulo.

Métodos

O presente estudo adotou métodos mistos,9 integrando pesquisa documental e realização de entrevistas com uma análise de séries históricas de indicadores desenvolvidos para avaliar o desempenho da rede de diagnóstico do PEHV no que diz respeito às (i) principais ações/intervenções relacionadas com o processo de implantação do PEHV, (ii) indicadores selecionados e (iii) ampliação da capacidade de detecção de portadores e seu acesso ao tratamento. Na Figura 1, são apresentadas as etapas do método descrito a seguir.

Figura 1 - Algoritmo do método utilizado para avaliação do Programa Estadual de Prevenção e Controle das Hepatites Virais (PEHV), São Paulo, 1997 - 2012 

A primeira etapa teve como ponto de partida uma análise documental, com o levantamento de portarias, resoluções, manuais, normas, publicações e relatórios técnicos, visando à identificação de ações/intervenções estruturantes na implantação do PEHV.

Em um segundo momento, foram conduzidas entrevistas com atores-chave, especificamente gestores, profissionais da academia e membros da sociedade civil organizada (organizações não governamentais [ONG]). Utilizando um roteiro estruturado, as entrevistas foram realizadas para identificar elementos associados a ações técnicas e mobilizações políticas percebidas pelos diversos atores envolvidos com o PEHV, bem como as limitações e entraves encontrados durante o processo. O grupo de entrevistados compôs-se de: cinco técnicos pertencentes ao Centro de Vigilância Epidemiológica ‘Prof. Alexandre Vranjac’, coordenadores das ações do PEHV no período de 1997 a 2012; dois técnicos do Instituto Adolfo Lutz, coordenadores da rede de diagnóstico laboratorial; cinco representantes de duas das 19 ONGs de hepatites virais existentes no estado de São Paulo - uma situada na capital e outra no interior do estado -; e um docente da área de Patologia da Universidade de São Paulo, assessor do programa para diagnóstico histopatológico. Em total, foram realizadas 13 entrevistas, gravadas, transcritas e analisadas.

Na etapa seguinte, para seleção de indicadores, foram identificados três componentes do PEHV: (i) rede de diagnóstico, com três sub-redes (sorologia, biópsia e biologia molecular); (ii) vigilância epidemiológica; e (iii) assistência. Foram utilizados manuais técnicos10-12 e protocolos de tratamento,13,14 e selecionados os procedimentos diagnósticos para detecção de anticorpos contra o vírus da hepatite C (anti-VHC) e de antígeno de superfície do vírus da hepatite B (AgHBs) como representantes da sub-rede de sorologia, utilizados como marcadores de triagem. O exame de reação em cadeia pela polimerase (PCR-VHC) qualitativo foi selecionado como representante da sub-rede de biologia molecular por ser o primeiro procedimento a ser disponibilizado e financiado para o PEHV, até ser substituído pelo PCR-VHC quantitativo em 2011; e a biopsia de fígado foi considerada como representante única dessa sub-rede. Para representar os componentes de vigilância e assistência, foram selecionados, respectivamente, a notificação dos casos e a dispensação de medicamentos para hepatites virais.

Utilizando-se os procedimentos selecionados, foram definidos os seguintes indicadores:

  1. Cobertura de exames por sub-rede diagnóstica - calculada pelo número de procedimentos aprovados no Sistema de Informações Ambulatoriais do Sistema Único de Saúde (SIA/SUS), por Rede Regional de Atenção à Saúde (RRAS) e ano, dividido pela população da RRAS e multiplicado por 100 mil. A cobertura estadual de exames por sub-rede de diagnóstico, por ano, foi calculada de forma idêntica, considerando o total de procedimentos aprovados, registrado no SIA/SUS, por tipo de procedimento e por ano, dividido pela população estimada do estado para cada ano. Os dados populacionais foram obtidos da Fundação Sistema Estadual de Análises de Dados (SEADE). Esses coeficientes constituem uma medida proxy da cobertura real, pois, no cálculo, contabiliza-se os exames realizados e não o total de exames solicitados.

  2. Número total de notificações de hepatites virais - consiste no total de notificações de hepatites virais incluídas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), independentemente de confirmação do caso, com o propósito de avaliar o grau de mobilização da rede de assistência na busca e notificação de novos casos, procedimento vinculado à disponibilidade de diagnóstico sorológico.

  3. Razão de notificação por exames sorológicos realizados - calculado pela divisão do número de notificações de hepatites B e C no Sinan pelo número de sorologias AgHBs e Anti-HCV realizadas, por ano, vezes 1.000. Trata-se de um proxy indicador da taxa de detecção.

  4. Média mensal, por ano de atendimento, de indivíduos na dispensação de medicamentos para hepatites B e C - calculada pela soma do número de indivíduos atendidos por mês, nas farmácias de dispensação de medicamentos excepcionais, dividido por 12, estimado para cada ano da série histórica. Para esse cálculo, procedeu-se da seguinte forma: considerando-se que no período estudado, o tempo de duração de tratamento adotado pelos protocolos do PEHV variava de 24 a 48 semanas, foi utilizada a média mensal de indivíduos em tratamento atendidos nas farmácias de dispensação como um estimador do acesso aos medicamentos. O número de indivíduos em tratamento foi obtido do banco de dados da Autorização de Procedimento de Alta Complexidade (APAC-medicamentos), disponibilizado pela Coordenadoria de Planejamento em Saúde (CPS) da SES/SP, considerando-se os códigos do grupo B-18 da Décima Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10), identificados pelo cartão SUS e/ou Cadastro de Pessoa Física (CPF).

Na etapa final, analisou-se o comportamento dos indicadores da rede diagnóstica ante as ações/intervenções do PEHV identificadas nos documentos e nas entrevistas. Em seguida, verificou-se a correspondência desses indicadores com os indicadores dos componentes de vigilância e assistência: número de notificações de hepatites B e C e número de indivíduos em tratamento. A razão da utilização desta metodologia baseia-se no conceito de Attributional Validity, o qual estabelece a relação entre processo (diagnóstico) e resultado (notificação e tratamento).15

Como fonte auxiliar de informação para o cálculo dos indicadores e a construção das respectivas séries históricas, foi utilizado o banco de dados do Sistema de Gerenciamento da Tabela de Procedimentos, Medicamentos e Órteses, Próteses e Meios Auxiliares de Locomoção do Sistema Único de Saúde (Sigtap). Para a tabulação dos dados e estatística descritiva, foram utilizados os aplicativos Tabwin, versão 3.6b, e Excel® 2007.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Referência e Treinamento em DST/HIV/Aids da SES/SP, sob o Protocolo nº 152.073, em 19 de novembro de 2012, considerando os preceitos da Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) no 196, de 10 de outubro de 1996, vigente à época do início do estudo.

Resultados

Os elementos colhidos dos documentos e dos relatos dos atores permitiram descrever as principais intervenções realizadas pelos gestores estaduais e federais, as ações adotadas pelas ONGs, como também o registro dos entraves e dificuldades do processo de implantação da rede de diagnóstico do PEHV, sintetizados na Figura 2.

Figura 2 - Quadro síntese das principais intervenções relacionadas à implementação do Programa Estadual de Prevenção e Controle das Hepatites Virais (PEHV), 1997 - 2012a 

Foram identificados três momentos distintos na implantação do PEHV: o primeiro, considerado como pré-implantação, situado entre os anos de 1997 e 2000; um segundo período, entre os anos 2001 e 2002; e por último, a pós-implantação, de 2003 a 2012 (Figura 2).

No período pré-implantação do PEHV (1997-2000), verificou-se por parte da sociedade civil uma progressiva organização dos portadores de hepatites virais.16 Juntamente com as sociedades científicas,17 essas organizações reivindicavam políticas públicas para o enfrentamento de seu problema de saúde, cuja demanda era igualmente percebida pelos técnicos da SES/SP. Em resposta a essa mobilização, o estado deu início a um processo de discussão e estruturação de um sistema de vigilância epidemiológica, resultando na produção do ‘Manual de Vigilância Epidemiológica de Hepatites Virais: Normas e Instruções’.10 A SES/SP regulamentou o uso do interferon no tratamento das HV.13 O Ministério da Saúde, por sua vez, incluiu as hepatites virais na lista das doenças de notificação compulsória (DNC),18 ampliou o financiamento de 3 para 10 procedimentos de diagnóstico sorológico na tabela SUS19 e estabeleceu o protocolo de tratamento da hepatite C, no que incluiu o procedimento de diagnóstico de biologia molecular (PCR e genotipagem para VHC).14,20 Essas medidas, de caráter técnico e financeiro, estabeleceram as bases da implantação de ações de diagnóstico, vigilância epidemiológica e tratamento. Duas ações estruturantes merecem destaque nesse período: o laboratório de referência (Instituto Adolfo Lutz) iniciou as atividades de estruturação e capacitação da rede de biologia molecular, implantada em 2002;21 e o Centro de Vigilância Epidemiológica ‘Prof. Alexandre Vranjac’, por meio da coordenação do PEHV, estabeleceu uma rede de referências22 e implementou um ciclo de capacitação mediante treinamentos regionalizados. É importante ressaltar a convergência de ações entre os governos estadual e federal, condição fundamental para a viabilização do PEHV (Figura 2).

O segundo momento (2001-2002) caracterizou-se por uma intensa mobilização de parte do PEHV, envolvendo ONG, membros da academia e gestores municipais, e a criação do Comitê Assessor Permanente de Hepatites Virais da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.7 Em 2002, realizou-se o 1º Encontro das Organizações Não Governamentais de Hepatites Virais, ocasião do lançamento da Carta de Santos23 e entrega do documento ao Ministro da Saúde solicitando maior comprometimento do governo federal no controle das hepatites. Ainda naquele ano, aconteceu o lançamento do PNHV8 e a inclusão, pelo Ministério da Saúde, da biologia molecular como procedimento no Fundo de Ações Estratégicas e Compensação (FAEC),24 propiciando um importante reforço no processo de implantação do PEHV em São Paulo e viabilização da sustentabilidade financeira do diagnóstico molecular (Figura 2).

Após a implantação do PEHV (2003 a 2012), verificaram-se tendências distintas nas sub-redes de diagnóstico. O aumento da procura de diagnóstico, associado à estratégia do PNHV em oferecer exames de hepatites nos Centros de Testagem e Aconselhamento (CTA) integrados ao Programa Nacional de DST/Aids, permitiu que fossem detectados problemas de cobertura na rede de sorologia relacionados com o financiamento desse procedimento. Aparentemente, esses problemas foram equacionados com a atribuição dessa responsabilidade aos municípios, como parte da Atenção Básica à Saúde. De acordo com os entrevistados, a crítica das ONGs à sorologia não se dirigiu ao acesso aos exames, e sim à falta de divulgação e estimulo à procura do diagnóstico por parte do estado (Figura 2).

A rede de biópsia de fígado, ainda nos primeiros anos, tornou-se um fator limitante ao PEHV devido à baixa cobertura do procedimento. O tempo transcorrido entre o agendamento e a biópsia chegava a quase um ano, conforme declarado pelas ONGs e constatado pelos gestores. Na percepção das organizações civis e dos gestores da Saúde, esse atraso deveu-se à falta de patologistas e às características do próprio procedimento: trata-se de um diagnóstico que envolve risco para o paciente, a coleta demanda ambiente hospitalar, e tanto a biópsia quanto o exame anatomopatológico exigem profissionais especializados. Durante as entrevistas, a elastografia hepática transitória foi apontada pelos representantes das ONGs como uma possível solução alternativa. Porém, esse procedimento não estava previsto nas normas do programa e não constava na tabela SUS, no período coberto pelo presente estudo. A verificação desse problema pelos gestores levou à implantação de medidas para estimular o aumento da cobertura no período de 2004 a 2007, tais como aquisição de insumos e equipamentos, aumento do valor do procedimento e estímulo ao faturamento (Figura 2).

A sub-rede de biologia molecular, elemento estratégico do PEHV, começa a operar como tal em 2002, com um único procedimento de PCR-VHC qualitativo. Em poucos anos, já estavam disponíveis na rede o PCR-VHC quantitativo, o PCR-VHB quantitativo e a genotipagem para o vírus da hepatite C. Inicialmente atuando com uma rede de 17 laboratórios coordenados pelo laboratório de referência (Instituto Adolfo Lutz),21 na percepção dos gestores e usuários representados pelas ONGs, essa sub-rede não foi um fator limitante para as atividades do PEHV (Figura 2).

Com relação aos componentes de vigilância epidemiológica e assistência, os coordenadores do programa consideraram que, embora necessite de ajustes, o desempenho do sistema de vigilância tem melhorado ao longo dos anos. O ponto crítico do PEHV concentrou-se na assistência, pois a falta de infectologistas dificulta o encaminhamento dos casos confirmados. Paradoxalmente, no período de estudo, não foi verificada limitação quanto à disponibilidade de tratamento, um provável reflexo do número limitado de especialistas somado à baixa cobertura da biópsia. Quanto à dispensação de medicamentos, verificou-se um fato que merece atenção: tanto as ONGs quanto os gestores identificaram acesso diferenciado aos medicamentos, na comparação entre os usuários atendidos pelo SUS e os usuários atendidos por convênios privados: estes últimos, devido ao diferencial no tempo esperado para a realização de consultas e exames, têm um acesso mais rápido ao tratamento.

Ao longo desse último período avaliado, prosseguiram ações destinadas a assegurar as atividades do PEHV. Com o objetivo de mobilizar a rede de assistência para detecção e atendimentos de portadores, em 2008, a coordenação estadual promoveu o lançamento do Plano Estatual de Prevenção e Controle das Hepatites Virais. O Governo Federal, por sua vez, atualizou os protocolos de tratamento em 2007, 2010, 2011e 2012 (Figura 2). Nessa perspectiva, a atuação constante das ONGs configurou-se como um fator importante para a sustentabilidade do PEHV. As iniciativas tomadas junto ao Congresso Nacional e à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo conduziram à criação de frentes parlamentares em defesa de seus direitos25,26 e à aprovação pelo Congresso de uma lei específica, voltada para a atenção aos portadores de hepatopatias.27

No período de 2000 a 2012, na rede diagnóstica, foram verificados aumentos percentuais dos exames realizados: de 380,8% para sorologia (anti-VHC + AgHBs) (de 1,1 milhão para 4,3 milhões de exames/ano); de 855,0% para biópsias de fígado (de 851 para 7.276 de procedimentos/ano); e de 10.903, 1% para exames de PCR-VHC qualitativo (de 223 para 24.314 exames/ano). Com relação ao indicador de vigilância, verificou-se uma variação de 1.030,8% (de 2.494 para 25.709) no total de notificações/ano no Sinan. Quanto à assistência (tratamento), a variação da média mensal foi de 347,4% (de 3.662 para 12.722 indivíduos atendidos/mês).

Quanto aos coeficientes de cobertura da rede diagnóstica, os exames de sorologia para AgHBs e anti-VHC, disponíveis no SUS desde 1997, aumentaram 7,4 vezes no período de 2000 a 2012, sendo que em 2011 esse aumento atingiu 8,2 vezes, com correspondente aumento da mediana de cobertura das Redes Regionais de Atenção à Saúde - RRAS. Na percepção dos gestores e das ONGs, não ocorreram problemas quanto ao acesso, e a demanda por esses exames só não foi maior devido à ausência de divulgação por parte do PEHV (Tabela 1).

Tabela 1 - Série histórica dos coeficientes de cobertura da rede de diagnóstico do Programa Estadual de Prevenção e Controle das Hepatites Virais (PEHV) por tipo de exame, São Paulo, 1997-2012 

Legenda:

Anti-HCV: anticorpos contra o vírus da hepatite C

AgHBs: antígeno de superfície do vírus da hepatite B

PCR-HCV: técnica de biologia molecular de RNA do vírus da hepatite C

A biópsia de fígado apresentou um aumento de cobertura de até 7,3 vezes (2005). Os esforços empreendidos para aumentar a cobertura de biópsia resultaram na elevação desse coeficiente no período de 2004 a 2007, que não se manteve nos anos seguintes (Tabela 1).

Na sub-rede de biologia molecular, verificou-se um substancial aumento da cobertura - da ordem de 62 vezes, durante o período de implantação, superior ao desempenho da sub-rede de biópsia -, demostrando um forte crescimento na cobertura ao longo do período de implantação. Um fator fundamental, segundo os gestores, foi a inclusão desse procedimento pelo Fundo de Ações Estratégicas e Compensação - FAEC -, garantindo financiamento para a estruturação e manutenção da rede.

Um significativo aumento de notificações foi verificado em função do número de sorologias realizadas nos primeiros anos do PEHV. Contudo, observou-se uma redução na razão de notificação a partir de 2006 (Tabela 2). Os reflexos do processo de estruturação da rede diagnóstica também foram observados na qualidade das notificações no Sinan, em que a proporção das notificações sem diagnóstico laboratorial teve uma redução e manteve-se abaixo de 10% durante o período estudado.

Tabela 2 - Número de exames sorológicos AgHBs e Anti-VHC, número de notificações no Sistema de Informação de Agravos de Notificações (Sinan) e razão de notificações (por 1000 exames), por ano, São Paulo, 2000-2012 

Fontes: Sistema de Informação de Agravos de Notificações (Sinan)/São Paulo e Sistema de Informações Ambulatoriais do Sistema Único de Saúde (SIA/SUS).

Legenda:

AgHBs: antígeno de superfície do vírus da hepatite B

Anti-VHC: anticorpos contra o vírus da hepatite C

A partir do início das atividades do PEHV em 2000, ocorreu um contínuo aumento da média mensal de indivíduos em tratamento das hepatites virais B e C, constatando-se uma considerável diferença entre os números de portadores da hepatite B e da hepatite C em tratamento (Figura 3).

Figura 3 - Média mensal de atendimentos de indivíduos na dispensação de medicamentos para hepatites B e C, por ano, no Sistema Único de Saúde, São Paulo, 2000 - 2012 

Discussão

Como resultado desse estudo, foi possível verificar que as ações/intervenções estruturantes propiciaram aumento de cobertura da rede diagnóstica durante a implantação do PEHV. Contudo, as análises dos indicadores identificaram diferentes perfis de desempenho na rede diagnóstica.

Na sub-rede de sorologia, observou-se um aumento de procedimentos associado a uma maior homogeneidade de cobertura, o que refletiu em um aumento das notificações de hepatites virais.

Tal fato não ocorreu na sub-rede de biópsia de fígado, cuja mediana de cobertura pelas RRAS esteve muito aquém do coeficiente de cobertura geral do estado, indicando uma centralização desses procedimentos. Apesar do aumento na cobertura, esta mostrou-se insuficiente para atender às demandas do PEHV como também indicou consequente dificuldade no acesso dos indivíduos, evidenciando desempenho modesto ante as medidas implementadas. Também é provável que essa baixa cobertura tenha recaído sobre os serviços de anatomia patológica, que não se beneficiaram dessas medidas. Medidas corretivas, implementadas a partir de 2004, tiveram efeito transitório. Esses resultados são coerentes com o estudo de Venâncio et al.,28 que observaram um quantitativo de biópsias muito menor que o esperado ao estudarem os prontuários de usuários cadastrados no sistema de medicamentos excepcionais para tratamento de hepatites virais.

Quanto à biologia molecular, a cobertura por RRAS indicou baixíssima ou quase ausente homogeneidade: na maior parte dos anos observados, a mediana foi zero. Não obstante, esse fato não foi objeto de críticas pelos entrevistados, os quais consideraram a estruturação da rede de biologia molecular bem-sucedida. O aparente paradoxo pode ser explicado pelas características da coleta e preservação das amostras, que possibilitam um sistema de logística e referências e, dessa forma, facilitam o acesso dos usuários aos exames, o que não é possível com a biópsia. Embora seja um procedimento de maior complexidade, a coleta das amostras para exames de biologia molecular não envolve maior risco ao paciente, tampouco exige ambiente e profissionais especializados.

Constatou-se a correlação positiva entre o aumento da cobertura de sorologia e o número de notificações no Sinan, assim como uma redução na relação notificações-exames. Isto implicou a queda da taxa de detecção. A redução da taxa de detecção de portadores aponta para algum problema de comunicação ou de estratégia de busca, em que a população-alvo não está sendo atingida pelo PEHV como deveria, fato também detectado por Coelho et al. em 2015.22

Com relação ao tratamento, algumas explicações podem justificar as diferenças encontradas: a priorização das ações de diagnóstico e tratamento do vírus da hepatite C nos primeiros anos do PEHV, devido a sua magnitude; as soroprevalências, 1,3% para o vírus da hepatite C e 0,3% para o vírus da hepatite B;29 e a vacinação contra hepatite B, instituída no Brasil desde 1996.

Algumas limitações desse estudo devem ser mencionadas, entre elas o uso de dados secundários, sujeitos a erros de registro ou subnotificações, e o uso de dados por conveniência, sem amostragem, podendo não corresponder ao total de casos existentes na população. Outra limitação importante foi a ausência de indicadores de qualidade dos serviços, como ‘tempo de resposta’ dos diversos componente do PEHV.

Quanto à validade interna, o uso combinado de metodologias permitiu estabelecer associações consistentes entre os diversos componentes do PEHV. A validade externa, entretanto, é limitada. Já os aspectos metodológicos adotados podem ser de utilidade para estudos dirigidos a outras regiões.

Para o aprimoramento do Programa de Prevenção e Controle das Hepatites Virais - PEHV -, recomenda-se uma revisão da estratégia de busca de casos, de forma a otimizar os recursos da sub-rede de sorologia, buscar alternativas para solução dos problemas da sub-rede de biópsia e reduzir a dificuldade de acesso ao tratamento pelos portadores de hepatites virais, usuários do Sistema Único de Saúde.

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