versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.8 no.4 São Paulo out./dez. 2010
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082010ao1731
A produção de espécies reativas derivadas do oxigênio (EROs) e do nitrogênio (ERN) pode ser observada durante o metabolismo humano em diversas reações fisiológicas. O organismo dispõe de um eficiente sistema antioxidante que consegue controlar tais reações. Após o desequilíbrio entre os sistemas pró- e antioxidantes, pode ocorrer o estresse oxidativo, conduzindo a danos estruturais e/ou funcionais(1).
O organismo humano sofre ação constante de radicais livres. As principais EROs distribuem-se em dois grupos, os radicalares: hidroxila (HO−•), superóxido (O2•−), peroxila (ROO•) e alcoxila (RO•); e os não radicalares: oxigênio, peróxido de hidrogênio e ácido hipocloroso. Dentre as ERN, temos o óxido nítrico (NO•), óxido nitroso (N2O3), ácido nitroso (HNO2), nitritos (NO2−), nitratos (NO3−) e peroxinitritos (ONOO−). Enquanto alguns deles podem ser altamente prejudiciais ao organismo, lesionando membranas dos eritrócitos, proteínas e DNA, outros reagem apenas com os lipídeos, produzindo peroxidação lipídica(2–5). Dentre as classes de moléculas que podem ser lesadas pelas EROs, os lipídeos são os mais suscetíveis à oxidação. A degradação dos lipídeos de membrana e os produtos finais da peroxidação lipídica, como malonaldeído (MDA) e outros aldeídos, são especialmente danosos, reduzindo a viabilidade das células durante a anemia falciforme (AF)(6).
A AF é uma doença hereditária da síntese de hemoglobina determinada pela homozigose da hemoglobina S (Hb SS), e pode ser caracterizada pela elevada taxa de morbidade e mortalidade devido à elevada frequência de episódios vaso-oclusivos(7).
A Hb S é menos solúvel quando desoxigenada e se polimeriza em fibras rígidas, provocando oclusão da microcirculação. Além disso, a Hb S é menos estável, ocasionando altas concentrações de EROs durante AF. As células falciformes são mais frágeis do que os eritrócitos normais e, por essa razão, apresentam menor tempo de vida(8).
Pacientes com AF são frequentemente expostos a um estresse oxidativo devido ao desequilíbrio entre a produção de EROs e as enzimas antioxidantes. A doença também é caracterizada pelo dano na membrana celular caracterizada pelo aumento dos produtos da peroxidação lipídica (MDA e nitrito) e no aumento do consumo de óxido nítrico (NO)(7,9).
O paciente com AF apresenta vasculopatia devido à produção de radicais livres e pela diminuição da biodisponibilidade de óxido nítrico (NO)(9). Recentemente, tem sido investigado o papel fisiopatológico do NO. Devido à disfunção endotelial nos pacientes falciformes, os níveis de endotelina são maiores do que os níveis de NO, contribuindo para a vasoconstrição. Dados da literatura sugerem que o NO pode ter um papel importante na fisiopatologia da AF, particularmente durante o estresse oxidativo(7,10).
A hidroxiureia (HU) vem sendo utilizada no tratamento da AF com a finalidade de elevar os níveis de hemoglobina fetal (Hb F) e, com isso, diminuir as crises vaso-oclusivas(11). Cokic et al., em 2008, demonstraram níveis de GMPc significativamente elevados em pacientes com AF em uso de hidroxiureia(11). Outros estudos demonstraram propriedades antioxidantes da HU por meio da inibição da peroxidação lipídica induzida pela formação de meta-hemoglobina, justificando seu uso no tratamento da AF(12,13).
Investigar os níveis de séricos de MDA e de nitrito em pacientes com AF em tratamento ou não com a HU e em acompanhamento ambulatorial, correlacionando esses parâmetros ao conteúdo de MDA e de nitrito e com as variáveis clínicas observadas nos pacientes com AF.
O estudo foi do tipo transversal descritivo e realizado em Fortaleza (CE), Brasil, com pacientes adultos com AF atendidos no ambulatório do Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC), no período de Abril de 2008 a Janeiro de 2009. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Ceará (n° 113.12.07).
No total, 65 pacientes foram recrutados e estudados de forma randomizada, de acordo com critérios de inclusão e exclusão. Os critérios de inclusão foram: adultos com diagnóstico de AF confirmado por biologia molecular que fizeram uso ou não de HU durante seis meses de tratamento. Foram excluídos do estudo crianças com AF. adultos que tenham realizado terapêutica transfusional nos últimos três meses ou em uso de quelante de ferro e aqueles que se recusaram a participar do estudo. O grupo foi estratificado de acordo com o uso de HU, sendo o Grupo 1 (n = 51) de pacientes com AF que não fizeram uso da HU e o Grupo 2 (n = 14) de pacientes que fizeram uso de HU. O Grupo 3 ou controle (n = 20) foi constituído por indivíduos sem hemoglobinopatias. As variáveis clínicas foram obtidas nos prontuários dos pacientes, assim como as informações sobre o uso ou não da HU em dose habitual de 20 mg/kg.
Foram colhidas amostras de sangue venoso de cada paciente em tubo contendo anticoagulante heparina, isolando-se o plasma para as dosagens de MDA e nitrito e em EDTA para a confirmação de Hb SS por meio de PCR-AE(14) nos pacientes com anemia falciforme e para confirmação de Hb AA por HPLC nos indivíduos sem hemoglobinopatias.
O método empregado para determinar o MDA baseou-se em sua reação com ácido tiobarbitúrico (TBARS)(15). A concentração de nitrito foi determinada segundo o método de Green(14).
Os dados obtidos foram expressos como média ± EPM e analisados por meio do programa estatístico SPSS 15.0. Também foi utilizado o teste t de Student para comparar as variáveis clínicas com os níveis de MDA e do nitrito. O critério de significância utilizado foi de p < 0,05.
Verificou-se um predomínio do sexo feminino (n = 33) e média de idade de 31,37 ± 11,29 anos nos pacientes com AF. O Grupo Controle possuía menor e mais homogênea concentração dos níveis de MDA em relação aos outros grupos. Os resultados do Grupo 1 (p < 0,0001) e do Grupo 2 (p < 0,0001) mostraram valores aumentados dos níveis de malonaldeído quando comparados ao Grupo Controle (Figura 1). Quando comparados os valores dos Grupos 1 e 2, não foram observadas alterações significativas nos níveis de MDA (p = 0,3154) (Figura 1).
Quando comparados os níveis de MDA com as variáveis clínicas nos pacientes com AF, observou-se que no Grupo 1 houve uma correlação com as crises vaso-oclusivas (p < 0,0051). Já no Grupo 2, a correlação foi estatisticamente significativa com as variáveis clínicas: duas ou mais transfusões no decorrer do ano (p < 0,0469), presença de úlcera de perna maleolar (p < 0,0400) e a ocorrência de três ou mais crises vaso-oclusivas (p < 0,0031) (Tabela 1).
Tabela 1 Comparação dos fatores das variáveis clínicas em relação ao nível de malonaldeído (MDA)
Variáveis clínicas | MDA | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Grupo 1 | Grupo 2 | Grupo 3 | |||||
Média ± EPM | Valor p | Média ± EPM | Valor p | Média ± EPM | Valor p | ||
Sexo | Feminino | 0,50 ± 0,14 | 0,0934 | 0,59 ± 0,07 | 0,1233 | 0,54 ± 0,11 | 0,1233 |
Masculino | 0,44 ± 0,11 | 0,49 ± 0,15 | 0,45 ± 0,12 | ||||
Transfusões por ano | 0 a 1 | 0,47± 0,14 | 0,2711 | 0,54 ± 0,12 | < 0,0469* | 0 | - |
2 ou mais | 0,52 ± 0,10 | 0,63 ± 0,04 | 0 | ||||
Crises vaso-oclusivas | 1 ou 2 | 0,43 ± 0,12 | < 0,0051** | 0,43 ± 0,14 | < 0,0031* | 0 | - |
3 ou mais | 0,53 ± 0,13 | 0,6 ± 0,05 | 0 | ||||
Úlceras de perna/maleolar | Não | 0,47 ± 0,12 | 0,3292 | 0,54 ± 0,06 | < 0,0400* | 0 | - |
Sim | 0,51 ± 0,15 | 0,64 ± 0,12 | 0 | ||||
Infecções recorrentes | Nenhuma | 0,46 ± 0,15 | 0,3790 | 0,54 ± 0,11 | 0,1114 | 0 | - |
Pelo menos 1 | 0,50 ± 0,11 | 0,64 ± 0,02 | 0 |
Grupo 1: Pacientes com AF que fizeram tratamento com HU; Grupo 2: Pacientes com AF que não fizeram tratamento com HU; Grupo 3: Indivíduos sem hemoglobinopatias (grupo controle); MDA: malonaldeído; AF: anemia falciforme; HU: hidroxiureia; EPM: erro padrão da média.
p<0,05 (ANOVA e Teste t de Student).
*Significativo.
Em relação aos níveis séricos de nitrito, verificou-se uma razoável assimetria positiva para os três grupos. Não foram observadas alterações significativas no conteúdo de nitrito do Grupo 1 (p = 0,2015) e do Grupo 2 (p = 0,1305) quando comparados ao Grupo Controle. Por sua vez, também não foi detectada alteração significativa nos níveis de nitrito entre os Grupos 1 e 2 (p = 0,0966). Os níveis séricos de nitrito para ambos os grupos não apresentaram nenhuma correlação significativa com as variáveis clínicas.
A análise dos dados obtidos revelou que todos os pacientes com AF apresentaram níveis elevados de MDA, porém os que fizeram tratamento com a HU apresentaram menor e mais homogênea concentração de MDA em relação aos pacientes com AF que não fizeram tratamento com HU e ao Grupo Controle. Estes resultados sugerem que houve dano oxidativo em todos os pacientes, independentemente do tratamento com a HU. Em pesquisa realizada em 2008 por Manfredini et al., foi constatada a presença de níveis elevados de MDA em pacientes com AF sem uso de HU quando comparados aos pacientes do grupo controle(16). Os resultados do presente estudo demonstraram que, nesses pacientes, a HU não exerceu ação inibitória da peroxidação lipídica. Pode-se sugerir que essa discrepância se deva a vários fatores, dentre eles o curto período de tratamento com a HU(3,4).
Ao se avaliar a correlação dos níveis de MDA com a quantidade de crises vaso-oclusivas no último ano, observou-se um aumento de MDA estatisticamente significativo nos dois grupos de pacientes com AF que tiveram três ou mais crises de vaso-oclusão (p < 0,005 para Grupo 1 e p < 0,0031 para o Grupo 2). O mesmo ocorreu em relação aos níveis de MDA com as variáveis duas ou mais transfusões no decorrer do ano (p < 0,0469) e com presença de úlcera de perna maleolar (p < 0,0400) nos pacientes com AF que fizeram tratamento com a HU. Esses resultados são relevantes, pois demonstram que os níveis de MDA são diretamente proporcionais aos moduladores de prognóstico na AF. Em 2007, Fasola et al. avaliaram a relação entre a frequência de crises vaso-oclusivas e o status total antioxidante (TAS), observando que a média de TAS em 25 pacientes com AF foi menor para aqueles que apresentaram três ou mais crises de vaso-oclusão no último ano(17).
Estudos recentes sugerem que pacientes com AF sofrem decréscimo das reservas de NO principalmente durante as crises vaso-oclusivas e na síndrome de sequestro agudo(3,4), sendo os níveis de NO inversamente proporcionais aos sintomas dolorosos, de forma que a diminuição da biodisponibilidade do NO pode contribuir para a fisiopatologia da AF(18).
A estimativa dos níveis de NO, neste estudo, foi realizada por meio da dosagem sérica de nitrito, um produto de degradação do NO que apresenta boa sensibilidade e estabilidade. A avaliação dos níveis séricos de nitrito nos três grupos estudados não demonstrou diferença estatisticamente significativa entre os grupos, provavelmente devido ao fato de se tratar de pacientes assintomáticos. Verificou-se que o uso da HU pode não modificar o conteúdo sérico do nitrito, provavelmente devido ao curto período de tratamento. Este achado difere de alguns trabalhos que demonstram um aumento transitório de NO durante as crises vaso-oclusivas em pacientes com AF que fizeram tratamento com a HU(2,19,20). Morris et al. demonstraram um aumento dos níveis de NO em pacientes com AF assintomática em uso de HU, sendo que esse aumento foi potencializado pela associação com a arginina durante o tratamento(21). Por sua vez, Lopez et al., em 2003, observaram baixos níveis de L-arginina e de NO em pacientes adultos com AF durante crises vaso-oclusivas quando comparados com pacientes com AF assintomáticos(22).
Sabe-se que existem três possíveis mecanismos para a redução da disponibilidade de NO em pacientes com anemia falciforme: primeiro, os baixos níveis plasmáticos de L-arginina; segundo, o aumento do consumo de NO pelas EROs; e terceiro, o consumo de NO por meio da hemoglobina liberada no plasma durante a hemólise. Estudos recentes indicam que 50% dos pacientes com anemia falciforme apresentam disfunção endotelial devido principalmente ao consumo de NO pela hemoglobina livre no plasma(18).
Com base nesses resultados, demonstrou-se que há uma real importância na realização dos estudos com pacientes portadores de AF, uma vez que é considerada atualmente como uma doença inflamatória crônica, possuindo peculiaridades quanto a alterações no estresse oxidativo. Ressalta-se, ainda, a relevância dos achados apresentados que não corroboram com a literatura, no entanto, são raros os trabalhos que abordam a temática do presente estudo. Espera-se, então, contribuir para a melhor compreensão do envolvimento do processo de peroxidação lipídica e nos níveis séricos de nitrito em pacientes adultos com anemia falciforme. Estes dados podem fornecer subsídios para que outros estudos verifiquem os efeitos crônicos do tratamento com a HU durante a patogênese do estresse oxidativo observado durante a anemia falciforme, contribuindo para diminuir os impactos desse grave problema de saúde pública.
Não pudemos comprovar o efeito inibidor da HU no estresse oxidativo por estarmos comparando dois grupos de pacientes, um assintomático e outro com evolução desfavorável da doença com indicação de uso da HU, sendo que esses últimos apresentam quadro mais crítico da doença, comprovados por maiores níveis de MDA. Estudos sequenciais avaliando apenas os pacientes em tratamento crônico com HU e em diferentes momentos devem ser realizados, a fim de esclarecer o mecanismo de ação da HU na anemia falciforme.
Os resultados revelaram que, durante o estabelecimento da patogênese da AF, pode ser observado um aumento na peroxidação lipídica. Por outro lado, durante o tratamento com a HU, não foi detectada nenhuma alteração nos parâmetros oxidativos, provavelmente devido ao curto período de tratamento dos pacientes em estudo.