versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.14 no.4 São Paulo out./dez. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082016ao3752
O paciente consente a ser submetido a um procedimento cirúrgico baseado na confiança depositada em seu cirurgião. Confia que o cirurgião é suficientemente experiente para o procedimento e o julga tecnicamente competente para entregar esta tarefa em suas mãos. Nas relações interpessoais médico-paciente, médico-médico e mesmo entre pacientes, surge uma questão: como definir competência cirúrgica?. “O que faz um cirurgião competente?”. Competência cirúrgica é difícil de definir.(1)
Durante décadas, o treinamento em cirurgia foi baseado no famoso modelo “veja, faça, ensine”, desenvolvido por William Halstedt em 1904. Esse modelo vem produzindo uma geração de bons cirurgiões.(2) Porém, com a evolução das cirurgias minimamente invasivas, com aparecimento de novas tecnologias, a aquisição de habilidades exige um treinamento fora da sala cirúrgica para obtermos uma curva de aprendizado menor e, posteriormente, aplicar o aprendizado dentro do centro cirúrgico.
Os estudos mostram que os residentes têm benefícios de um ensino padronizado, e a combinação de aulas didáticas e experiência em animais melhora a técnica e a habilidade cirúrgica.(3-5) Hoje, os educadores em laparoscopia básica sabem que as habilidades cirúrgicas precisam ser ensinadas fora do centro cirúrgico, e a maior parte dos treinamentos faz uso de variados modelos, como caixa preta, simuladores virtuais, animais e cadáveres.(6-11) Sabe-se que a padronização, a reprodutibilidade fácil dos exercícios, um feedback imediato após cada treinamento e na sala de cirurgia, com custo aceitável, traz benefícios para o ensino em laparoscopia.(12,13)
A cirurgia minimamente invasiva tornou-se objetivo dos cirurgiões endoscópicos pelo mundo e, assim, o ensino e o treinamento da endoscopia passaram a ser uma questão de crescente preocupação.
Existe uma larga variedade de modelos disponíveis para o ensino, desde animais e cadáveres, até simuladores, cada um com suas vantagens e desvantagens. O modelo animal tem vantagem do realismo e da oportunidade de mimetizar complicações. Porém é criticado pelo custo, pela anatomia e por questões éticas. Os cadáveres são usados com pouca frequência pelo custo, pela disponibilidade limitada e pela impossibilidade de simular complicações. Existem ainda modelos de bancada e caixas preta, que permitem ao aluno simular diferentes técnicas, suturas, coordenação olho-mão e se familiarizar com instrumentos. Porém exigem um especialista para demonstrar o procedimento e prover um feedback do desempenho. Há ainda os simuladores virtuais, que podem replicar parte ou a cirurgia inteira, sem a presença de especialista, e fornecer feedback imediato. São criticados pelo custo, pela limitação do feedback háptico e pela falta de realismo gráfico.(6,14,15)
Nos Estados Unidos, em 2006, apenas 55% dos programas de residência tinham instalações para treinamento em laparoscopia; na América do Norte, em 2014, apenas 73% dos programas apresentavam ensino em habilidades laparoscópicas.(16,17) Na América Latina, incluindo Brasil, não há modelo de ensino para treinamento de habilidades laparoscópicas a serem seguidos, e nem ferramentas validadas para sua avaliação. Com resultado, acreditamos que a habilidade e a perícia podem variar entre os residentes, dependendo do tipo e do número de casos assistidos. Assim, torna-se difícil assegurar que todos os residentes sejam expostos aos mesmos procedimentos e avaliem suas habilidades.
Diversos autores recentemente têm abordado essa questão desafiadora: “O que faz um cirurgião competente?”. Ao fazê-lo, conclui-se que a competência cirúrgica é o produto de vários fatores, incluindo conhecimento médico adequado, boas tomadas de decisões clínicas, técnicas e de julgamento; profissionalismo, habilidades interpessoais, de comunicação com os interessados e conhecimento técnicos. Ensinar habilidades em técnica cirúrgica é, assim, uma das responsabilidades mais importantes.
Dessa forma, no presente estudo, baseado na necessidade evidente de aprimorar o ensino em técnica cirúrgica para laparoscopia no Brasil, foi proposto um treinamento nos residentes do terceiro ano de Ginecologia e Obstetrícia. Até o presente momento não relatos publicados no Brasil sobre avaliações da melhora da habilidade em laparoscopia dentro do laboratório. Acreditamos que o treinamento proposto pode colaborar para o ensino e treinamento na laparoscopia dos residentes no Brasil.
Avaliar a habilidade laparoscópica dos residentes do terceiro ano de residência médica em Ginecologia e Obstetrícia após treinamento em um centro de treinamento e experimentação cirúrgica.
No presente estudo, foram coletados dados, por meio de questionários, de 12 residentes do terceiro ano de Ginecologia e Obstetrícia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), de abril de 2011 a janeiro de 2012, avaliando a sensação de melhora na habilidade cirúrgica após a implantação do projeto de ensino no Centro de Experimentação e Treinamento em Cirurgia (CETEC), do Hospital Israelita Albert Einstein. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa. O não comparecimento ao CETEC do Hospital Israelita Albert Einstein por mais de 15% dos períodos propostos ou mau preenchimento do questionário, excluía o residente do estudo.
O primeiro questionário foi preenchido pelos residentes e continha dados demográficos, de educação em laparoscopia durante a residência, de interesse no treinamento na caixa preta e animais de laboratório, de interesse, desempenho e competência em laparoscopia, habilidades atuais em laparoscopia e fatores que influenciam na aplicação da laparoscopia na residência. Foi aplicado neste grupo antes e após o treinamento.
O segundo questionário foi preenchido por dois preceptores no primeiro dia e pelos mesmos preceptores no último dia de treinamento.
A avaliação do questionário deu-se por meio da escala Likert, expressando uma escala de 5 pontos, sendo 1 para desconfortável e 5 para confortável; 1 para sem interesse e 5 para muito interesse; ou 1 para sem importância e 5 para muito importante. Foi considerado como parâmetro de melhora um aumento de 1,5 ponto na escala de Likert.
O treinamento ocorreu durante 4 horas semanais, por 8 semanas consecutivas, sendo 3 semanas destinadas a caixas pretas e treinamento em bancada e 5 semanas para cirurgias em porcos, totalizando 32 horas de treinamento assistido pelos mesmos preceptores com experiência em cirurgia laparoscópica avançada.
A caixa preta utilizada media 38,5cm profundidade por 29,5cm largura na base e 32cm profundidade por 29,5 largura na tampa da caixa de 20cm e altura. Foi utilizada câmera de 30 graus, com 10mm, uma fonte e um monitor de LCD.
O treinamento em caixa preta incluiu exercícios de coordenação olho-mão, técnica de dissecção e técnica em sutura. Os exercícios realizados consistiam em colocar café no copo, palito de fósforo no copo, dissecar material gelatinoso e encontrar cafés inseridos na mesma, formar um losango com elástico nos pregos presos a uma tábua de madeira, colocação de cinco pingentes em uma agulha e sutura e treinamento de nós.
Foram realizadas diferentes intervenções cirúrgicas em graus crescentes de dificuldade, respectivamente: punção com agulha de Verres, realização de pneumoperitônio, passagem de trocáteres, apreensão de estruturas pélvicas com pinça de Grasper, lise de aderências, histerectomia (corresponde à salpingectomia em humanos), histerostomia (corresponde à salpingostomia em humanos), colecistectomia e nefrectomia. O cuidado com animais seguiu as normas da Association for Assessment and Accreditation of Laboratory of Animal Care e Instrução Normativa no 7 da Comissão de Técnica em Biossegurança. Os porcos utilizados para cirurgia seguiram as normativas da Sociedade Brasileira de Ciência em Animais de Laboratório.
Foi utilizado o teste t pareado para comparação dos resultados. O programa utilizado foi o Minitab versão 16.1 para a análise de dados.
Os 12 residentes analisados participaram em todos os dias de treinamento. Apenas um questionário foi excluído por mau preenchimento, totalizando 11 questionários analisados, sendo 7 de mulheres (63,3%). A média de idade foi de 28,2 anos. A maior parte dos residentes tinha pouca experiência em laparoscopia.
Os residentes foram questionados sobre a habilidade atual em laparoscopia. Após o treinamento, foi observada melhora significativa em termos estatísticos (Tabela 1).
Tabela 1 Avaliação da habilidade atual em laparoscopia pré- e pós-treinamento
Escala Likert | ||
---|---|---|
|
||
Pré | Pós | Valor de p (teste t) |
1,3 | 2,7 | 0,000 |
Os residentes observaram entre cinco a dez casos de cirurgias laparoscópicas e participaram ativamente em zero a dez procedimentos. Os casos observados e naqueles em que ocorreu participação ativa foram considerados insuficientes para o aprendizado. Os residentes foram também questionados sobre as possíveis causas de sua falta de habilidade durante a residência, sendo que a principal razão foi a falta de treinamento fora do centro cirúrgico (Tabela 2).
Tabela 2 Avaliação das possíveis causas da falta de habilidade durante a residência
Causa | Escala Likert 1-5 (média) | ||
---|---|---|---|
| |||
Pré | Pós | Valor de p (teste t) | |
Falta de treinamento em caixa preta | 4,9 | 4,7 | 0,341 |
Falta de treinamento em simulador | 4,9 | 4,8 | 0,588 |
Falta equipamento adequado | 4,7 | 4,3 | 0,096 |
Falta ser cirurgião assistente | 4,5 | 4,5 | * |
Falta ser o primeiro cirurgião | 4,1 | 4,8 | 0,136 |
Falta de casos | 3,7 | 4,5 | 0,208 |
Falta de interesse do preceptor | 3,5 | 3,7 | 0,714 |
Falta de interesse do residente | 1,9 | 3,4 | 0,009 |
*Não se aplica dado numérico. |
Todos os residentes tinham pouca experiência anterior em caixa preta, e nenhuma experiência em treinamento em animal, e consideraram o treinamento realizado muito importante (nota acima de 4,5 na escala Likert). Além da melhora na habilidade em laparoscopia, houve uma melhora estatística na percepção da competência em realizar cirurgias de níveis 1 e 2, e na miomectomia nível 3 (provavelmente pelo treinamento realizado em suturas), como mostramos tabela 3.
Tabela 3 Avaliação do interesse e da competência em laparoscopia ginecológica por níveis de dificuldades avaliados pela escala de Likert
Interesse em laparoscopia | Autopercepção da competência | |||||
---|---|---|---|---|---|---|
|
|
|||||
Média | Valor de p (teste t) | Média | Valor de p (teste t) | |||
Pré | Pós | Pré | Pós | |||
Nível 1 | ||||||
Laparoscopia diagnóstica | 4,8 | 4,8 | * | 1,4 | 2,6 | 0,005 |
Laqueadura tubária | 4,9 | 4,7 | 0,167 | 2,3 | 2,9 | 0,152 |
Nível 2 | ||||||
Biópsia de ovário | 4,9 | 4,7 | 1,167 | 1,2 | 1,9 | 0,038 |
Lise de aderência | 4,8 | 4,8 | * | 1,3 | 2,5 | 0,001 |
Gestação ectópica | 4,9 | 4,8 | 0,341 | 1,1 | 2,2 | 0,001 |
Endometriose Grau I e II | 5,0 | 4,8 | * | 1,0 | 1,8 | 0,020 |
Ooforoplastia | 5,0 | 4,9 | * | 1,1 | 1,8 | 0,024 |
Ooforectomia | 4,9 | 4,8 | 0,341 | 1,1 | 2,1 | 0,004 |
Nível 3 | ||||||
Histerectomia subtotal | 4,8 | 4,5 | 0,104 | 1,0 | 1,4 | 0,104 |
Reanastomose tubária | 4,5 | 4,6 | 0,676 | 1,0 | 1,2 | 0,341 |
Miomectomia | 4,9 | 4,6 | 0,277 | 1,0 | 1,5 | 0,053 |
Endometriose grau III e IV | 4,5 | 4,6 | 0,167 | 1,0 | 1,2 | 0,341 |
Sacropexia | 3,8 | 4,0 | 0,441 | 1,0 | 1,3 | 0,192 |
*Não se aplica dado numérico.
Foram analisados 12 residentes, mas foram considerados 8 questionários para o estudo. Foram excluídas três análises, pois um dos preceptores não estava presente no dia do questionário e um foi excluído por mal preenchimento.
Na análise, houve melhora significante na habilidade laparoscópica dos residentes quando avaliados pelos preceptores (preceptor 1 e preceptor 2) (Tabela 4).
Tabela 4 Avaliação das habilidades em laparoscopia dos residentes realizada pelos preceptores
Escala Likert | Valor de p | |
---|---|---|
|
||
Pré | Pós | (teste t) |
2,1 | 4,8 | 0,000 |
Ensinar habilidades em técnica cirúrgica é a uma das tarefas mais importantes na área de ensino em Cirurgia. Apesar da importância da inserção de métodos formais, poucos estudos têm sido realizados nessa área, especialmente em Ginecologia e Obstetrícia. Os rápidos avanços da tecnologia e os equipamentos cirúrgicos aumentam a demanda de tempo dos residentes, e torna o ensino dos cirurgiões mais desafiador.
Diversos estudos nos Estados Unidos, Canadá, França e Holanda já estabeleceram um programa formal no currículo com algumas divergências entre si. Da mesma forma a literatura mostra diversidades em modelos de como ensinar e avaliar as habilidades cirúrgicas na Ginecologia. No presente estudo, a partir da avaliação do treinamento implantado, pudemos observar a melhora da habilidade em laparoscopia, confirmando que o programa pode ser difundido com o objetivo de treinar residentes de Ginecologia e Obstetrícia do Brasil; até o momento, não existe um programa de treinamento em laparoscopia no Brasil.
Estudos semelhantes foram realizados em 2002 nos Estados Unidos e no Canadá, com residentes de Ginecologia e Cirurgia geral, respectivamente, nos quais foi aplicada a escala Likert. Os residentes de Ginecologia expostos à um currículo formal sentiram-se significativamente mais competentes em desempenhar diversos procedimentos comparados a não expostos ao programa. A maior parte dos residentes enfatizou a necessidade do treinamento e da sua importância para sua prática com sucesso.(18) Os residentes de Cirurgia geral tinham expectativa de realizar procedimentos básicos e avançados no término da residência, e apontaram a falta de casos, a oportunidade em sala cirúrgica e a falta de suporte do departamento de cirurgia como fatores que influenciaram em seu treinamento na residência.(19) Os resultados de ambos os estudos foram confirmados no presente estudo. As necessidades e expectativas foram semelhantes, assim como as possíveis causas de dificuldade para adquirir habilidade durante a residência.
Na literatura, ainda não há um modelo perfeito de ensino. O modelo em animais proposto no presente treinamento para ginecologistas tem mostrado eficácia no ensino. Expor os residentes a procedimentos tão diversos, como colecistectomia e nefrectomia, no intuito de treinar os componentes utilizados em procedimentos não ginecológicos, porém usuais em cirurgia ginecológica, traz benefícios. Como, por exemplo, ao treinar a sensação tátil de dissecar os tecidos, o residente sente a dificuldade de realizar movimentos suaves e precisos, a fim de evitar lesões e possíveis sangramentos, e, se necessário, realizar a hemostasia imediata. E aprender o controle de força por meio de instrumental apropriado, trazendo o menor dano aos diversos tecidos, como bexiga, útero, trompa, ovários, alças intestinais, fígado, vesícula e rins. Realizar nós externos ou internos traz segurança e motiva o residente a buscar sua melhora técnica constantemente.
Houve melhora da habilidade em laparoscopia dos residentes de Ginecologia e Obstetrícia após treinamento padronizado. Acreditamos que outras instituições podem replicar o treinamento descrito com objetivo de melhorar a habilidade dos residentes e, assim, beneficiar o ensino em laparoscopia no Brasil.