versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.16 no.1 São Paulo 2018 Epub 07-Maio-2018
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082018ao3997
A retenção inadvertida de corpos estranhos (RICE), um erro médico indefensável legalmente,(1) é um problema que existe desde que os humanos começaram a fazer procedimentos cirúrgicos,(2) e persiste a despeito dos estabelecidos protocolos.(3,4) A literatura revela frequência de uma retenção inadvertida para cada 7.000 cirurgias,(5) sendo, em sua maioria, de têxteis.(6)
No Brasil, 43% dos cirurgiões teriam deixado e 73% retirado corpos estranhos nos últimos anos, sendo 90% têxteis. Os pacientes foram alertados sobre a retenção em 46% das vezes e, destes, 26% processaram os médicos ou a instituição.(7)
A RICE pode levar à morte do paciente(8) ou produzir variadas sequelas, como otite,(9) infecção ou sepse,(10) perfuração visceral,(3) gossipiboma intra-abdominal(11) e em diversas regiões do corpo.(12-14)
Os fatores predisponentes para RICE de têxteis incluem riscos associados ao processo, sendo que os mais relatados são mudanças na equipe durante a cirurgia, menor adesão às contagens pré e pós-cirúrgicas, e políticas inconsistentes sobre o uso de imagens intraoperatórias;(3) riscos associados ao procedimento, como urgência, multiplicidade, complexidade e duração da cirurgia;(3,8) e outros, que vão desde casos envolvendo pacientes obesos,(8) perda sanguínea, além da participação de médicos residentes.(10) A RICE está fortemente associada à contagem incorreta durante o procedimento.(5)
O movimento mundial da segurança do paciente levou o governo brasileiro a lançar o Programa Nacional de Segurança do Paciente, o qual instituiu o Protocolo para Cirurgia Segura.(15) No entanto, há forte incompletude no preenchimento dos checklists, nos quais a contagem de têxteis deve ser confirmada verbalmente pela equipe de enfermagem ou pelo instrumentador antes de o paciente deixar a sala de cirurgia,(16) ou seja, o desenvolvimento de melhorias apoiadas na tecnologia é imprescindível.(5)
Comparar o SurgiSafe® com o sistema de contagem manual quanto à sensibilidade, à especificidade, ao tempo de contagem, e aos valores preditivos positivo e negativo.
O estudo foi conduzido no Centro de Experimentação e Treinamento (CETEC) do Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE) e aprovado pelo Comitê de Ética no Uso de Animais do HIAE, sob o protocolo 2248-14.
O SurgiSafe®, aparato devidamente registrado (Figura 1) e aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) para uso hospitalar, trata-se de um sistema para contabilização de têxteis por meio de identificação por radiofrequência (RFID - radiofrequency identification), concebido a partir de novembro de 2014 pela empresa Target Empreendimento Ltda., formulado para auditoria contínua de têxteis cirúrgicos em campo.
Figura 1 Aparato do SurgiSafe®. (A) imagem do SurgiSafe®, (B) compressas de gazes com TAGs, (C) sala cirúrgica e (D) contagem manual dos têxteis
Mais do que apenas contar, o sistema integra o fluxograma de conduta em caso de discrepância. Caso a cirurgia seja encerrada com uma contagem discrepante, além do relatório descrevendo o número de série de cada têxtil utilizado, avisos institucionais via e-mail são encaminhados para as chefias médica e de enfermagem do centro cirúrgico, assim como para o diretor clínico do hospital. Do ponto de vista institucional, cria-se um evento sentinela, e este paciente é monitorado, não recebendo alta até que haja garantia da ausência de RICE.
A antena Ultra High frequency utilizada pelo sistema gera uma frequência específica, respeitando a lei local (no Brasil, determinado pela Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL, entre 914 e 930mHz). Esta onda eletromagnética atinge uma pequena antena conectada a um chip. O desenho da antena levou em consideração o sangue e o interior do corpo humano, visando otimizar a sintonia. Esta antena, quando atingida pela onda eletromagnética, gera uma corrente elétrica que ativa o chip. Este emite uma resposta com seu número de série e um código eletrônico de produto (EPC - Eletronic Product Code). O código permite a leitura de fabricante do chip, do código de barras e do número de série. Desta forma, cada têxtil tem uma única identidade. Apesar da complexidade aparente, as telas do aparato informam apenas as informações necessárias para a equipe cirúrgica e para o circulante em telas distintas, com menus simples.
Não foi observada interação do SurgiSafe® com os equipamentos eletromédicos da sala cirúrgica, sendo, para este propósito, utilizado um protótipo do SurgiSafe® com eletrônica idêntica, porém sem as devidas blindagens concebidas no equipamento original. Durante o procedimento, foram utilizados: ventilador Fabius (Dräger) com seu monitor multiparâmetros, bisturi elétrico Valley Lab, equipamento de ultrassonografia da Philips e desfibrilador externo manual. Nenhum destes apresentou comportamento anormal, assim como não interferiu no SurgiSafe®, que manteve a contagem durante todo o procedimento.
Foram utilizadas compressas de gaze de tamanho 7,5cm x 7,5cm, sendo que cada compressa é identificada por uma sequência numérica extensa, codificada em um chip de identificação responsivo à radiofrequência específica. Este chip possui um invólucro isolante, que impede contato com sangue e é fixado de maneira segura ao têxtil cirúrgico. Os têxteis estão ligados por fios de eficiência e biocompatibilidade comprovados. Um coxim feito de compressa envolve a etiqueta de identificação por radiofrequência (TAGs RFID) de bordas curvas, para impedir que esta cause lesões em vísceras. A TAGs RFID é composta por um chip atrelado à antena, envolvido em polímero com biocompatibilidade comprovada. Testes de bancada comprovaram sucesso para isolamento elétrico e de líquidos, assim como para temperatura da ponta do bisturi e contaminação do sítio operatório, com resistência ao uso corriqueiro dos instrumentais.
Para avaliação do SurgiSafe® in vivo, foi realizado estudo, duplo-cego randomizado, utilizando um suíno Yucatan/Minnessota de 35kg. Para a cirurgia, o suíno esteve em decúbito dorsal horizontal, sob efeito de anestesia geral. Foi feita uma laparotomia mediana com sutura de zíper na linha média para acesso à cavidade. Foram implantadas as compressas de gaze equipadas com TAGs de RFID na cavidade abdominal, variando quantidade e localização. Uma planilha Excel gerou números aleatórios entre zero e quatro gazes para cada uma das regiões anatômicas principais do abdômen, agrupadas de acordo com a anatomia topográfica em nove regiões: hipocôndrio direito e esquerdo, flanco direito e esquerdo, fossa ilíaca direita e esquerda, epigástrio, mesogástrio e hipogástrio. O cirurgião instalou as gazes em quantidade e localização determinada pela randomização e recobriu a cavidade, aproximando as bordas das paredes por meio dos cruzamentos dos fios. Ele se afastou do campo, e o observador e seu auxiliar adentraram a sala. O observador retirou as compressas de gaze aparadas por fio de algodão e contou manualmente sua quantidade. Os tempos necessários a cada contagem, monitorados por dois auxiliares com cronômetro digital, foram anotados. Ao final da contagem, o observador saía da sala, e o cirurgião entrava novamente e realizava nova distribuição das TAGs de acordo com a randomização. Estes ciclos foram repetidos cem vezes. Para a contagem do SurgiSafe®, as compressas de gazes eram colocadas em blocos na mesa auxiliar para garantir a leitura. Uma vez que as compressas eram lançadas à lixeira, sua quantidade era identificada. A diferença entre as gazes da mesa auxiliar e da lixeira foi considerada em campo cirúrgico. Então, o sistema gerava automaticamente um relatório em PDF, com a quantidade e numeração das TAGs, às quais o observador não tinha acesso.
Além do SurgiSafe®, que é comporto por antena tipo esteira de radiofrequência fixa, que se situa abaixo da mesa auxiliar e da lixeira da sala cirúrgica (hamper), foram também testados outros dois tipos de antenas portáteis de radiofrequência de desenhos distintos, denominadas “varinha” e “antenaa far field” (antenna FF). O observador fez o escaneamento utilizando movimentos de rotação sobre o suíno com a antenna FF e a varinha, respectivamente, para a identificação e a quantifcação das TAGs na cavidade abdominal. Ao terminar o escaneamento, o observador retirou as gazes e as contou manualmente.
Os primeiros 53 ciclos foram utilizados para ajustes finos do SurgiSafe®, a fim de neutralizar quaisquer interferências que poderiam ser geradas. Já os 12 seguintes, foram para alteração de posicionamento da antena do aparelho. Estes primeiros 65 procedimentos tiveram como objetivo ajustes de parâmetros a serem utilizados como regra para utilização do SurgiSafe® e não precisaram ser repetidos em qualquer momento de utilização do aparelho. Os demais 35 ciclos foram realizados para análise estatística de comparação de contagem de compressas manual ou pelo SurgiSafe®. As gazes foram as mesmas desde o início até o final do experimento, quando foram testadas e estavam funcionando normalmente.
Para comparação entre métodos, foi utilizado o teste χ2 em nível de 5% de probabilidade. A sensibilidade foi calculada por meio da razão entre o total de positivos corretos e a soma dos positivos corretos e falsos--negativos; a especificidade foi calculada por meio da razão entre o total de negativos corretos e a soma dos negativos corretos e falsos-positivos. Já o valor preditivo positivo foi calculado dividindo o número de positivos verdadeiros pela soma de verdadeiros e falsos-positivos; enquanto o valor preditivo negativo foi calculado dividindo o número de positivos verdadeiros pela soma dos verdadeiros e falsos-negativos.
A sensibilidade, a especificidade e os valores preditivos foram analisadas para o SurgiSafe® e a contagem manual, considerando 35 ciclos homogêneos de repetições, sob as mesmas condições experimentais, realizadas por um único profissional, no decorrer de 5 horas, com um total de 1.070 têxteis.
Apesar de não ter sido encontrada diferença estatística entre a contagem manual e a contagem do SurgiSafe® (χ2=0,13; p>0,98) quanto à sensibilidade e à especificidade, a contagem manual diferiu do valor correto quatro vezes, sendo três vezes para menos e uma vez para mais, considerando os valores absolutos. Tanto os valores preditivos positivos quanto os negativos foram de 100% (Tabela 1).
Tabela 1 Comparativa entre os resultados de contagem do SurgiSafe® (contagem instantânea) e dos resultados da contagem manual
Número do ciclo | Total de gazes | Total mesa SurgiSafe® | Total contagem manual | Tempo de contagem manual |
---|---|---|---|---|
1 | 23 | 23 | 23 | 44 |
2 | 26 | 26 | 26 | 52 |
3 | 30 | 30 | 30 | 72 |
4 | 22 | 22 | 22 | 51 |
5 | 31 | 31 | 31 | 90 |
6 | 33 | 33 | 33 | 109 |
7 | 34 | 34 | 33 | 68 |
8 | 33 | 33 | 33 | 101 |
9 | 38 | 38 | 38 | 91 |
10 | 36 | 36 | 36 | 100 |
11 | 30 | 30 | 29 | 60 |
12 | 34 | 34 | 33 | 91 |
13 | 31 | 31 | 31 | 66 |
14 | 49 | 49 | 49 | 134 |
15 | 26 | 26 | 26 | 93 |
16 | 32 | 32 | 32 | 84 |
17 | 42 | 42 | 42 | 84 |
18 | 23 | 23 | 23 | 43 |
19 | 18 | 18 | 18 | 62 |
20 | 15 | 15 | 15 | 29 |
21 | 35 | 35 | 35 | 85 |
22 | 34 | 34 | 34 | 87 |
23 | 35 | 35 | 35 | 75 |
24 | 35 | 35 | 35 | 91 |
25 | 33 | 33 | 33 | 71 |
26 | 24 | 24 | 25 | 60 |
27 | 31 | 31 | 31 | 95 |
28 | 23 | 23 | 23 | 101 |
29 | 34 | 34 | 34 | 245 |
30 | 32 | 32 | 32 | 104 |
31 | 35 | 35 | 35 | 134 |
32 | 32 | 32 | 32 | 85 |
33 | 42 | 42 | 42 | 123 |
34 | 8 | 8 | 8 | 14 |
35 | 31 | 31 | 31 | 79 |
A especificidade e a sensibilidade da antena de radiofrequência do SurgiSafe® foram de 100% para um total de 1.070 gazes, não gerando nenhum falso-negativo e nenhum falso-positivo durante todo o experimento. A contagem manual apresentou sensibilidade de 99,72% e especificidade de 99,90%.
O tempo da contagem manual variou bastante, conforme o número de gazes, que, por randomização, estavam entre 8 e 42 gazes, dependendo do ciclo. A média do tempo de contagem manual das gazes foi de 3 segundos com desvio padrão de 1 segundo. O tempo de contagem do SurgiSafe® foi instantâneo, enquanto a contagem manual apresentou tendência a aumentar, conforme os ciclos foram avançando. Podemos associar esse aumento à fadiga do profissional (Figura 2).
Figura 2 Tempo de contagem manual por unidade de gaze versus ciclos de contagem em ordem cronológica
Para a contagem manual comparada à varinha, também não houve diferença estatística (χ2=20,59; p>0,98) quanto à sensibilidade e à especificidade, assim como quando comparada à antenna FF (χ2=61,47; p>0,98). Neste experimento, estes dois dispositivos não tiveram um desempenho satisfatório, por apresentarem desenhos que não os compatibilizavam com o uso no intraoperatório e por se tratar de método profissional dependente, inviabilizando o cálculo seguro dos valores preditivos positivos e negativos.
Não houve diferença estatística entre o SurgiSafe® e a contagem manual, mas esta diferiu do valor correto quatro vezes em 35 repetições. Ressalta-se que, neste estudo, a atenção do observador estava voltada exclusivamente para a contagem dos têxteis, o que é muito diferente de uma rotina cirúrgica. A contagem manual previne 82% da RICE(17) quando feita de forma correta. Em cirurgias cardíacas realizadas em Nova Iorque, há consideráveis discrepâncias de contagem, com sensibilidade da contagem de 77,2% e especificidade de 99,2%.(6) Em 739 relatos envolvendo contagem incompleta ou ausente, 62% envolviam um procedimento de emergência.(18)
Com relação ao tempo necessário para a contagem dos têxteis neste experimento, alguns fatos devem ser considerados. O fato de as compressas estarem agrupadas por fio facilitou muito a identificação delas na cavidade, e a presença física das TAGs facilitou o processo de contagem manual. Por outro lado, o fio dificultou separar cada uma das gazes. Conforme as gazes foram saturando e desdobrando, começaram a se embaraçar umas às outras, fato comum na realidade de uma cirurgia. Com o cansaço da equipe e a saturação dos têxteis, o tempo necessário para contar cada têxtil aumentou.
A literatura aponta sensibilidade, especificidade e valor preditivo positivo da esteira RF de 100% para paciente com índice de massa corpórea <40; naqueles com índice de massa corpórea >40, foi observado sensibilidade de 96.9%.(19)
Em nosso experimento os dispositivos de detecção por radiofrequência varinha e antenna FF não apresentaram um desempenho satisfatório. Apesar de a varinha de RF apresentar sensibilidade e especificidade de 100% em estudo com apenas 8 pacientes, por se tratar de mecanismo operador dependente o potencial erro humano no processo de varredura tem sido reconhecido e relatado.(20)
Contagem de têxteis com TAGs assistida por computador, juntamente da contagem manual, tem sido utilizada recentemente, com sucesso.(21,22) A tecnologia auxiliar é recomendada nos procedimentos cirúrgicos, pois, em relação às contagens manuais interpretadas como corretas, 5% são falsamente corretas.(18)
Organizações que implementaram a radiofrequência demonstraram redução de 93% na incidência de RICE em 6 anos, comparado com apenas 77% de redução em outras instituições sem radiofrequência.(18)
A análise de custo-benefício da University HealthSystem Consortium mostrou que as economias em raios X, tempo cirúrgico e custos médicos legais evitados superaram os gastos envolvidos no uso da tecnologia de radiofrequência.(18)
Melhoramentos associados à contagem manual e aos sistemas de contagem eletrônicos devem continuar, pois é provável que a tecnologia, sozinha, não seja infalível(20) – ao menos por enquanto.
No contexto de incidência significativa de casos de retenção inadvertida de corpos estranhos e sua séria lesão aos pacientes, com repercussão para a equipe cirúrgica, o hospital e as seguradoras de saúde, recomenda-se todo tipo de prevenção possível.
Os diferenciais do SurgiSafe®, que se mostrou eficaz in vivo neste experimento, incluem o tempo de contagem instantâneo e a contabilização precisa dos têxteis, com identificação numérica de cada têxtil e a geração de relatórios para a equipe e a administração hospitalar. Nossos dados suportam que seu uso como auxiliar na contagem manual é de grande valor para prevenção da retenção inadvertida de corpos estranhos e aumento da segurança do paciente.