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Avaliação de um programa de triagem neonatal para doença falciforme,

Avaliação de um programa de triagem neonatal para doença falciforme,

Autores:

Rodrigo Eller,
Denise Bousfield da Silva

ARTIGO ORIGINAL

Jornal de Pediatria

versão impressa ISSN 0021-7557versão On-line ISSN 1678-4782

J. Pediatr. (Rio J.) vol.92 no.4 Porto Alegre jul./ago. 2016

http://dx.doi.org/10.1016/j.jped.2015.10.002

Introdução

A doença falciforme (DF) representa um grupo de enfermidades hematológicas hereditárias autossômico-recessivas, que inclui diversos genótipos, nos quais há predomínio da hemoglobina S (Hb S).1-3 A presença dessa hemoglobina anormal é responsável pelas principais manifestações clínicas da doença, as quais decorrem dos fenômenos vaso-oclusivos e das disfunções isquêmicas crônicas.4

A distribuição da doença falciforme é heterogênea, é mais frequente entre negros e pardos. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2009, no Brasil negros e pardos representaram 6,9% e 44,2% da população, respectivamente, o que reflete a heterogeneidade da doença falciforme no país.5

Em junho de 2001, por meio da Portaria do Ministério da Saúde n° 822, ocorreu ampliação das doenças triadas pelo Programa Nacional de Triagem Neonatal já existente (fenilcetonúria e hipotireoidismo congênito), incluindo a detecção de doenças falciformes e outras hemoglobinopatias, além da fibrose cística.6 O diagnóstico da DF é feito laboratorialmente pela detecção da Hb S e de sua associação com frações quantitativas de outras hemoglobinas.

O programa de triagem neonatal, aliado aos cuidados multiprofissionais, permitiu reduzir significativamente a morbidade e a mortalidade decorrentes da doença, como mostram estudos em outros países.6

O objetivo desse trabalho é avaliar o Programa de Triagem Neonatal da Secretaria da Saúde do Estado de Santa Catarina (PTN-SES/SC) para DF e outras hemoglobinopatias em relação à sua cobertura e às incidências da doença e do traço falciformes de janeiro de 2003 a dezembro de 2012.

Métodos

Estudo descritivo, observacional e transversal aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital Infantil Joana de Gusmão sob o parecer 029/2013.

As variáveis analisadas foram obtidas retrospectivamente de um banco de dados no Laboratório Central (Lacen) da Secretaria de Estado da Saúde e do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc). Os dados coletados foram referentes a janeiro de 2003 a dezembro de 2012.

As variáveis analisadas incluíram: número de crianças nascidas vivas no Estado de Santa Catarina; número de crianças triadas pelo PTN-SES/SC para DF e outras hemoglobinopatias; número de crianças diagnosticadas com traço e doença falciformes pelo PTN-SES/SC; tipo de doença falciforme diagnosticada pelo referido programa; diagnóstico final das crianças cujas primeiras amostras foram inconclusivas; idade na coleta, cor/etnia, sexo e procedência das crianças com DF, de acordo com as macrorregiões de Santa Catarina.7

Em relação à variável cor da pele, foi usado o critério definido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).5 A informação dessa variável foi obtida da ficha preenchida pela enfermagem no momento da coleta da amostra sanguínea.

A coleta da amostra de sangue foi feita pela equipe de enfermagem em hospitais, maternidades ou postos de saúde dos municípios de Santa Catarina. Essa amostra, obtida do calcanhar da criança e depositada em papel-filtro, foi posteriormente enviada ao Lacen para análise.

O método adotado para testar as amostras de sangue foi a cromatografia líquida de alta resolução associada à cromatografia de troca catiônica, feitas pelo equipamento Variant II (Bio-Rad®, CA, EUA).

As amostras com resultados diferentes do padrão FA foram submetidas a um outro teste distinto da cromatografia. A focalização isoelétrica foi o teste geralmente usado para essa avaliação. Quando os resultados dos dois testes eram distintos e configuraram um resultado inconclusivo, a criança era convocada para uma nova coleta.

As crianças cujas amostras tiveram um resultado indeterminado, ou seja, uma hemoglobina distinta das hemoglobinas que podem ser identificadas pelos testes de triagem padrão, foram encaminhadas para esclarecimento diagnóstico no Hospital Infantil Joana de Gusmão (HIJG), centro de referência no Estado de Santa Catarina para os testes de triagem neonatal.

Medidas descritivas e tabelas de frequência foram usadas para análise dos resultados obtidos.

Resultados

De janeiro de 2003 a dezembro de 2012, 730.412 amostras foram submetidas ao teste de triagem do PTN-SES/SC. Nesse período, nasceram 848.833 crianças no estado, segundo o Sinasc, o que gera uma cobertura de 86% do referido programa (tabela 1).

Tabela 1 Número de nascidos‐vivos, crianças triadas e percentuais de cobertura do PTN‐SES/SC de janeiro de 2003 a dezembro de 2012 

Ano Nascidos vivosa Crianças triadasb Cobertura
2003 83.177 67.993 81,7%
2004 85.475 80.243 93,9%
2005 84.584 80.333 95,8%
2006 84.133 68.063 80,9%
2007 81.903 69.925 85,4%
2008 85.262 80.172 94,0%
2009 83.489 73.437 88,0%
2010 84.611 61.997 73,3%
2011 87.481 78.127 89,3%
2012 88.772 70.122 78,0%
Total 848.833 730.412 86,0%

Não foram encontradas justificativas para a baixa cobertura em 2010.

aSistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc).7

bLaboratório Central (Lacen) da Secretaria da Saúde do Estado de Santa Catarina.

A DF foi identificada em 39 crianças das amostras triadas. Dessas, 26 casos apresentaram o padrão FS (em ordem decrescente de quantidade, presença de hemoglobinas F e S, na ausência de hemoglobina A); 12 FSC (presença de hemoglobinas F, S e C, na ausência de hemoglobina A); e uma FSA (presença de hemoglobinas F, S e A) (tabela 2). Cada uma dessas amostras foi submetida aos dois testes de rastreamento – cromatografia líquida de alta resolução e focalização isoelétrica – e tiveram resultados equivalentes. Não foi avaliado se houve posterior confirmação do resultado com outros testes diagnósticos.

Tabela 2 Número de crianças com traço e doença falciforme diagnosticadas pelo PTN‐SES/SC de janeiro de 2003 a dezembro de 2012 

Ano Padrão FAS Padrão FS Padrão FSC Padrão FSA
2003 491 3 2 0
2004 666 5 1 0
2005 655 3 2 1
2006 550 3 2 0
2007 607 0 0 0
2008 692 2 3 0
2009 659 6 1 0
2010 509 1 0 0
2011 683 1 0 0
2012 661 2 1 0
Total 6.173 26 12 1

Fonte: Laboratório Central (Lacen) da Secretaria da Saúde do Estado de Santa Catarina.

Em 302 amostras, o resultado foi indeterminado, isto é, a Hb era distinta das hemoglobinas possíveis de serem diagnosticadas pelos métodos de triagem neonatal. Essas crianças foram referenciadas ao HIJG para esclarecimento diagnóstico.

Das amostras analisadas pelo PTN-SES/SC, 41 apresentaram resultados inconclusivos, 25 das crianças com esses resultados não fizeram nova coleta, apesar da recomendação do programa. Das 16 crianças restantes que coletaram nova amostra, seis apresentaram novamente padrão inconclusivo, sete padrão normal e três padrão de traço falciforme. Assim, 31 crianças que apresentaram padrão inconclusivo não tiveram esclarecimento diagnóstico (fig. 1).

Figura 1 Número de nascidos vivos, amostras triadas e respectivos diagnósticos do PTN-SES/SC de janeiro de 2003 a dezembro de 2012. 

Em relação à procedência, as macrorregiões de saúde do Planalto Serrano e do Meio-Oeste apresentaram as maiores percentagens de casos de DF (tabela 3).

Tabela 3 Distribuição da doença falciforme por macrorregiões de saúde do Estado de Santa Catarina de janeiro de 2003 a dezembro de 2012 

Macrorregião de saúde Número de casos de doença falciformea Número de nascidos vivos por região Incidência por região
Grande‐Oeste 0 97.705 0
Meio‐Oeste 8 86.921 1:10.865
Planalto Norte 1 56.624 1:56.624
Nordeste 8 122.663 1:15.333
Vale do Itajaí 1 120.420 1:120.420
Foz do Rio Itajaí 5 76.502 1:15.300
Planalto Serrano 4 42.259 1:10.565
Grande Florianópolis 10 129.362 1:12.932
Sul 2 116.427 1:58.213
Total 39 848.883 1:18.728

Fonte: Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc)7 e Laboratório Central (Lacen) da Secretaria da Saúde do Estado de Santa Catarina.

aDoença falciforme (FS, FSC e FSA).

Em relação à cor/etnia das crianças com DF (padrões FS, FSC e FSA), 25 (64,1%) eram brancas; sete eram negras e sete eram de outra raça/etnia, não especificada na ficha de coleta da amostra. Quanto ao sexo, 24 pertenciam ao masculino e 15 ao feminino.

A média da idade no dia da coleta foi de 9,08 dias e a mediana foi de seis dias.

Discussão

O principal resultado deste trabalho foi a confirmação da frequência da doença falciforme (1:18.728) e do traço falciforme (1:118) em Santa Catarina, bem como a cobertura do programa de triagem neonatal no estado (86%).

A incidência da doença falciforme foi baixa possivelmente pela pequena proporção de negros no Estado de Santa Catarina. Os negros, segundo o IBGE, representavam apenas 2,2% e os pardos, 11,7% da população do estado em 2009.5 As maiores incidências de DF ocorreram nas macrorregiões de saúde do Planalto Serrano e Meio-Oeste.

No Brasil, em 2003, a incidência de DF foi de 1:650 na Bahia, estado com maior proporção de negros na população,8 enquanto que no Rio de Janeiro foi de 1:1.288 em 2007.9 Por outro lado, um estudo feito em 2004 no Rio Grande do Sul revelou incidência de DF de 1:39.10010 e outro feito no Paraná, entre 2002 e 2004, revelou incidência de 1:20.320.11

A cobertura encontrada pode não refletir a cobertura real de rastreamento de todos nascidos vivos. Pois, apesar de todos os municípios do estado terem aderido a esse programa, algumas crianças podem ter sido triadas na rede privada, o que não gera registro para o PTN-SES/SC e refletiria uma falha no monitoramento do programa estadual.

Em estudos conduzidos no Brasil observou-se que a cobertura dos programas no Distrito Federal foi de 83,4% em 2006;12 na Bahia, de 88,9% entre 2007 e 2009;13 e no Mato Grosso do Sul, de 91,8% entre 2006 e 2010.14 O objetivo de 100% de cobertura dos programas de triagem neonatal ainda representa um grande desafio, mesmo em países mais desenvolvidos.9 O Canadá e a Bélgica, em 2006, atingiram coberturas de 76%15 e 87%,16 respectivamente.

Dentre as crianças com DF no período analisado neste estudo, a média da idade no dia da coleta da amostra foi de 8,58 dias e a mediana foi de 6 dias, o que demonstra necessidade de melhorar essas variáveis, pois o Ministério da Saúde recomenda que a coleta seja feita entre três e cinco dias de vida. Apesar de o teste poder ser feito mais tardiamente, para algumas das doenças triadas é de extrema importância a coleta da amostra no período ideal, de modo a evitar que as crianças percam o diagnóstico e tratamento precoces e não se beneficiem da prevenção de sequelas.

Dos 39 casos de DF, observou-se maior número de doentes em indivíduos de cor/etnia branca (64,1%). A maior incidência da doença em brancos pode ser explicada pelo maior número desses indivíduos na população catarinense, que, segundo dados do IBGE de 2009, representavam 85,7% da população do estado,5 além da denominação “branca” atribuída erroneamente à população miscigenada. A limitação dos dados referentes à cor/etnia decorre do fato de esse campo ser determinado pela pessoa que preencheu o formulário da amostra de sangue e não ser baseado num questionário detalhado de origem familiar, haja vista a discordância interpretativa entre cor e origem étnica de um indivíduo em particular. É fundamental, no entanto, estar ciente que nenhuma dessas limitações afeta os principais aspectos estudados neste trabalho.

No que se refere às crianças com resultados inconclusivos e indeterminados, é importante criar mecanismos para intensificar a busca desses indivíduos, para ampliar a abrangência do programa, bem como identificar e tratar precocemente eventuais portadores da DF – que no presente estudo foi de baixa frequência considerando a quantidade de amostras triadas.

A limitação deste trabalho se deve à não monitoração dos doentes após o diagnóstico pela triagem neonatal, de modo a analisar a adesão dos pacientes ao seguimento ambulatorial interdisciplinar e às medidas de saúde propostas pelo programa. Recentemente, num estudo feito em Minas Gerais, constatou-se que a triagem neonatal naquele estado, mesmo feita de forma abrangente e eficaz, não foi suficiente para reduzir a mortalidade da DF, que foi de 7,4% nos primeiros 14 anos, pouco mais da metade dos óbitos ocorreram antes dos dois anos de idade.17

A redução drástica da mortalidade relacionada à doença falciforme nos primeiros anos de vida, de 26%% para 1-2%, ocorreu pela atenção integral oferecida a essa população em centros de referência pediátrica. Portanto, o diagnóstico e o tratamento precoces da DF contribuem para aumentar a sobrevida e melhorar expressivamente a qualidade de vida dessas pessoas.6,18

Assim, conclui-se que o PTN tem uma boa cobertura em Santa Catarina e que a incidência da doença falciforme no estado é consideravelmente baixa. Apesar disso, é imprescindível que se avalie a adesão dos doentes às medidas de saúde que o PTN preconiza, pois sem esse seguimento o diagnóstico em si se torna sem sentido. Com as informações deste trabalho, pretende-se buscar todas as crianças doentes e analisar a adesão ao seguimento médico ambulatorial, bem como o suporte de saúde oferecido aos doentes, a fim de analisar, realmente, a eficácia do programa.

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