versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756
J. bras. pneumol. vol.43 no.6 São Paulo nov./dez. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/s1806-37562017000000004
A Organização Mundial da Saúde estimou que, em 2015, houve 10,4 milhões de novos casos de tuberculose em todo mundo, sendo 1 milhão de casos entre crianças e 1,2 milhão entre pessoas vivendo com o HIV.1 Foram estimados ainda 1,4 milhões de óbitos pela doença, sendo 400 mil devido à associação tuberculose/HIV, o que mantém a tuberculose como uma das 10 principais causas de óbitos em todo o mundo.1 O Brasil se encontra entre os 20 países responsáveis por 84% dos casos incidentes de tuberculose (em número absoluto de casos) e por 87% dos casos incidentes de tuberculose entre pessoas vivendo com HIV em todo o mundo.1
No final de 2009, em função do aumento da resistência primária aos fármacos isoniazida (H) e rifampicina (R), o Ministério da Saúde do Brasil promoveu diversas mudanças no esquema básico de tratamento para a tuberculose, que era utilizado desde a década de 1970.2-5 Assim, a partir de dezembro de 2009, o esquema básico passou a conter R, H, pirazinamida (Z) e etambutol (E) nos dois primeiros meses em comprimidos com dose fixa combinada (DFC) e a associação R e H nos quatro meses subsequentes (esquema 2RHZE/4RH).3,5 Adicionalmente, a dose diária de isoniazida foi reduzida de 400 mg para 300 mg, enquanto a de pirazinamida foi de 2.000 mg para 1.500 mg (em indivíduos com 50 kg ou mais em ambos os casos).2-4
A expectativa do Ministério da Saúde do Brasil era que a adição do etambutol ao esquema anterior (RHZ) aumentasse a cura e evitasse o aumento da multirresistência (resistência a rifampicina e isoniazida).3,4 Esperava-se ainda que a apresentação em comprimidos com DFC oferecesse maior conforto ao paciente (pela redução do número de comprimidos a serem ingeridos), não permitisse a tomada isolada de fármacos e reduzisse a taxa de abandono com consequente aumento da adesão ao tratamento.3
O objetivo do presente estudo foi analisar o impacto das mudanças do tratamento da tuberculose realizadas em 2009 no número de casos de cura, de abandono, de óbitos e de tuberculose multirresistente (TBMR).
Foi realizada uma análise de séries temporais interrompida (ASTI) utilizando o modelo de regressão pelo método dos mínimos quadrados ordinários a partir de dados secundários coletados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação da Tuberculose (SINAN-TB).6-8 Foram coletados os dados mensais entre janeiro de 2003 e dezembro de 2014. O pacote estatístico utilizado foi o Stata, versão 13.1 (StataCorp LP, College Station, TX, EUA). A ASTI foi realizada conforme descrito por Linden.9 Resumidamente, foram estimados os coeficientes por regressão pelo método dos mínimos quadrados ordinários, produzindo erros-padrão de Newey-West. Em seguida, foi realizado o teste de Cumby-Huizinga na distribuição de erro para avaliar a autocorrelação residual, que foi ajustada através do modelo de regressão de Prais-Winsten, quando necessário. A sazonalidade foi considerada utilizando variáveis “dummy” para definir cada mês do ano, incluindo-as como fatores de ajuste na análise. Uma vez que a ASTI de um único grupo não tem grupo de controle comparável, a tendência pré-intervenção projetada para o período pós-intervenção serve como um contrafatual. Dessa forma, a análise de tendência foi utilizada para verificar a presença de diferença estatisticamente significativa da inclinação das retas entre os períodos pré e pós-intervenção, isolada do período de intervenção. A fórmula usada foi a seguinte:
onde Yt é a variável de desfecho agregada, medida em cada ponto de tempo t igualmente espaçado; Tt é o tempo desde o início do estudo; Xt (indicador) representa a intervenção; XtTt é um termo de interação; e ?t é o erro randômico. No atual caso de estudo de grupo único, β0 representa a interceptação da reta com o eixo vertical (nível inicial da variável de desfecho); β1 é a inclinação ou a trajetória da variável de desfecho antes da intervenção; β2 representa a alteração no nível de desfecho que ocorre no período imediatamente após a introdução da intervenção; e β3 representa a diferença entre o declive pré-intervenção e o declive pós-intervenção. Assim, procuramos valores de p significativos em β2 para indicar um efeito de intervenção imediato e, em β3, para indicar um efeito de intervenção ao longo do tempo.
Na representação gráfica da ASTI, os pontos representam os dados (mensais) da variável estudada, e a reta representa a regressão dos dados. Na Figura 1 são apresentados os dados antes (período de janeiro de 2003 a novembro de 2009), durante (de dezembro de 2009 a dezembro de 2010) e depois (de janeiro de 2011 a dezembro de 2014) da intervenção (mudanças no tratamento da tuberculose). Foi utilizado um período de intervenção (de dezembro de 2009 a dezembro de 2010) ao invés de um ponto de intervenção por ser esse o período de tempo estimado para que o novo tratamento fosse implantado em todas as unidades de saúde do Brasil. Adicionalmente, o tempo de tratamento habitual é de pelo menos seis meses (alguns casos podem ter o tratamento prolongado até nove meses), e pacientes cujo tratamento foi iniciado no mês anterior ao da mudança permaneceriam pelo menos por mais cinco meses ainda com o tratamento antigo. Na análise visual da figura, a manutenção da mesma inclinação (gradiente) da reta de tendência antes e depois da intervenção (no presente estudo: intervenção = mudanças no tratamento) sugere não ter havido modificação da tendência dos dados da variável pela intervenção. A atenuação ou o aumento da inclinação da reta após a intervenção sugere a redução ou a acentuação da tendência dos dados da variável estudada, respectivamente. Entretanto, somente a análise estatística é capaz de indicar se (possíveis) mudanças ocorridas nos dados e se o deslocamento (para cima ou para baixo) da reta de regressão pós-intervenção foram estatisticamente significativos em relação ao período pré-intervenção, ou seja, se estão associados ou se são independentes da intervenção. Os resultados da análise estatística foram expressos pelo coeficiente de regressão β. O intervalo de confiança foi de 95% e o nível de significância de 5%.
Figura 1 Representações gráficas das taxas de cura, de abandono, de óbito e de tuberculose multirresistente (TBMR) pulmonar no período de 2003 a 2014. O eixo vertical (ordenada) representa a porcentagem em relação ao número total de casos de tuberculose pulmonar no período. O eixo horizontal (abscissa) representa a variável “anos”. O retângulo tracejado representa o período de transição da mudança no tratamento da tuberculose.
Foram incluídos apenas os dados referentes à tuberculose pulmonar por ser essa a forma em que a maior parte dos diagnósticos é obtida através da baciloscopia direta e/ou da cultura do Mycobacterium tuberculosis ao invés de prova terapêutica, como ocorre frequentemente nos casos de tuberculose extrapulmonar. Uma vez que o novo tratamento foi apenas utilizado em indivíduos com 10 anos de idade ou mais, não foram incluídos nas análises pacientes com menos de 10 anos de idade. Foram coletadas as seguintes variáveis: número total e número de casos novos de tuberculose pulmonar, número de casos de recidiva da doença e de retratamento da tuberculose pulmonar pós-abandono, desfechos de tratamento (cura, abandono, óbitos devido à tuberculose e óbitos por outras causas), número de casos de TBMR, número de testes realizados para HIV, número de culturas para M. tuberculosis e número de exames positivos para cada um dos testes. No SINAN-TB “cura” é definida como a soma dos casos que receberam alta com os casos que completaram os seis meses de tratamento. Até o ano de 2010 (mesmo ano das mudanças no tratamento da tuberculose), “recidiva de tuberculose” era definida como novo adoecimento até doze meses após a cura. A partir de 2011, essa definição foi alterada no manual do Programa Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT) do Brasil, passando para “caso de tuberculose em atividade, já tratada e curada anteriormente, independentemente do tempo decorrido do tratamento anterior”.4 Assim, a definição usada no SINAN-TB para a notificação de recidiva passou a ser a mesma do manual do PNCT a partir de 2011 (comunicação pessoal). Embora a definição anterior a 2011 fosse operacional e tolerasse a inclusão de casos de reinfecção exógena, ela tinha como objetivo identificar casos de recidiva verdadeira causada pelo mesmo bacilo do primeiro episódio de tuberculose, a partir da não esterilização completa da lesão tuberculosa. A nova definição tornou a população de casos de recidiva notificados antes e depois de 2010/2011 diferentes, introduzindo um fator de confusão que não permite a avaliação do impacto da intervenção nessa variável. As proporções de cura e de abandono de tratamento foram calculadas em relação ao total de casos de tuberculose pulmonar após terem sido excluídos os casos cujo desfecho foi desconhecido. Por se tratar de um estudo ecológico, não houve necessidade de avaliação por nenhum comitê de ética em pesquisa.
Na Tabela 1 estão apresentados os dados de tuberculose pulmonar em indivíduos com 10 anos de idade ou mais coletados do SINAN-TB entre 2003 e 2014. Na Figura 1 estão apresentadas as representações gráficas dos casos de cura, abandono, TBMR e óbito no período estudado. Nessa figura podem ser vistos uma contínua redução na taxa de cura e um crescente aumento nas taxas de abandono, de óbito e de TBMR desde 2003.
Tabela 1 Dados anuais da tuberculose pulmonar no Brasil entre janeiro de 2003 e dezembro de 2014.a
Ano | 2003 | 2004 | 2005 | 2006 | 2007 | 2008 | 2009 | 2010 | 2011 | 2012 | 2013 | 2014 |
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Tipo de entrada no sistema | ||||||||||||
Total de casos de TB pulmonar | 75.890 | 75.201 | 74.456 | 72.078 | 68.891 | 71.369 | 71.486 | 70.524 | 72.400 | 68.763 | 70.626 | 70.217 |
Casos novos de TB pulmonar | 62.497 | 61.980 | 61.507 | 59.050 | 57.045 | 59.047 | 58.924 | 57.567 | 58.943 | 55.962 | 56.980 | 56.152 |
Recidiva < 1 ano após alta | 5.186 | 4.967 | 4.716 | 4.995 | 4.468 | 4.528 | 4.512 | 4.787 | 5.365 | 5.250 | 5.353 | 4.995 |
Retratamento após abandono de tratamento | 4.591 | 4.568 | 4.325 | 4.250 | 3.940 | 4.412 | 4.626 | 4.919 | 4.989 | 5.235 | 6.347 | 7.032 |
Transferência | 2.823 | 3.247 | 3.512 | 3.514 | 3.237 | 3.215 | 3.226 | 2.982 | 2.904 | 1.894 | 1.585 | 1.659 |
Ignorado | 794 | 439 | 396 | 269 | 201 | 167 | 198 | 269 | 199 | 214 | 232 | 191 |
Forma de encerramento do caso de TB pulmonar | ||||||||||||
Curab | 51.891 (79,5) | 51.486 (79,8) | 52.529 (80,0) | 50.474 (79,5) | 48.069 (78,6) | 49.710 (78,6) | 49.376 (77,3) | 48.965 (77,1) | 51.195 (77,7) | 48.537 (76,7) | 49.324 (76,1) | 47.319 (75,7) |
Abandono de tratamentob | 8.649 (13,2) | 8.438 (13,1) | 8.018 (12,3) | 7.953 (12,5) | 7.939 (13,0) | 8.559 (13,5) | 9.200 (14,4) | 9.037 (14,2) | 9.114 (13,8) | 9.223 (14,6) | 9.856 (15,2) | 9.422 (15,1) |
Total de óbitosb | 4.650 (7,1) | 4.458 (6,9) | 4.689 (7,2) | 4.898 (7,7) | 4.916 (8,1) | 4.763 (7,6) | 4.981 (7,8) | 5.020 (7,9) | 5.073 (7,7) | 4.875 (7,7) | 5.065 (7,8) | 5.083 (8,1) |
Óbitos por TBb | 85 (0,1) | 104 (0,2) | 262 (0,4) | 1.287 (2,0) | 2.482 (4,1) | 2.382 (3,8) | 2.389 (3,7) | 2.480 (3,9) | 2.317 (3,5) | 2.425 (3,8) | 2.547 (3,9) | 2.525 (4,0) |
Óbitos por outra causab | 4.565 (7,0) | 4.354 (6,7) | 4.427 (6,8) | 3.611 (5,7) | 2.434 (4,0) | 2.381 (3,8) | 2.592 (4,1) | 2.540 (4,0) | 2.756 (4,2) | 2.450 (3,9) | 2.518 (3,9) | 2.558 (4,1) |
Transferidos | 6.216 | 5.869 | 5.864 | 5.115 | 4.795 | 5.103 | 5.395 | 5.088 | 5.142 | 3.717 | 3.886 | 4.270 |
TBMR | 122 (0,2) | 157 (0,2) | 175 (0,3) | 195 (0,3) | 257 (0,4) | 242 (0,4) | 350 (0,5) | 469 (0,7) | 496 (0,8) | 633 (1,0) | 611 (0,9) | 680 (1,1) |
Culturas para Mtb realizadas | 14.077 (19) | 15.131 (20) | 16.061 (22) | 15.415 (21) | 15.316 (22) | 15.995 (22) | 9.223 (24) | 19.940 (28) | 21.682 (30) | 21.820 (32) | 23.221 (33) | 22.334 (32) |
Culturas para Mtb positivas | 5.514 (39) | 5.812 (38) | 6.662 (41) | 7.289 (47) | 7.531 (49) | 8.220 (51) | 17.348 (53) | 10.561 (53) | 11.403 (53) | 11.824 (54) | 12.917 (56) | 13.712 (61) |
Pesquisas de HIV realizadas | 32.813 (43) | 35.196 (47) | 37.513 (50) | 38.455 (53) | 39.608 (57) | 43.298 (61) | 45.742 (64) | 47.962 (68) | 50.983 (70) | 50.418 (73) | 54.251 (77) | 54.257 (77) |
Coinfecção TB/HIV | 4.697 (14) | 4.565 (13) | 4.681 (12) | 4.842 (13) | 5.243 (13) | 5.557 (13) | 5.668 (12) | 6.167 (13) | 6.441 (13) | 6.368 (13) | 6.564 (12) | 6.775 (12) |
TB: tuberculose; TBMR: tuberculose multirresistente; e Mtb: Mycobacterium tuberculosis. aValores expressos em n ou n (%). bAs porcentagens de cura, de abandono de tratamento e de óbitos foram calculadas em relação ao número total de casos de TB pulmonar com desfecho conhecido.
Na Figura 2 estão apresentadas as ASTI avaliando o impacto da intervenção (mudança do tratamento) nas principais variáveis da tuberculose. Na Figura 2A, pode ser percebido que a queda na taxa de notificação do número total de casos, que era estatisticamente significativa antes da intervenção (p < 0,0001), deixou de ser significativa após a intervenção (p = 0,09). A queda das notificações de novos casos de tuberculose pulmonar era significativa antes (p < 0,0001) e permaneceu significativa depois da intervenção (p = 0,01). Entretanto, a ASTI mostra ainda que a redução das notificações do número total de casos (β = 2,17; IC95%: −3,80 a 8,14; p = 0,47) e do de novos casos (β = −0,97; IC95%: −5,89 a 3,94; p = 0,70) se deu de forma independente da intervenção.
Figura 2 Regressões de series temporais interrompida das seguintes variáveis: número total de casos de tuberculose pulmonar (em A), casos novos (em B), casos de cura (em C), casos de abandono (em D), casos de tuberculose multirresistente (TBMR, em E), óbitos totais (em F), óbitos por outras causas (em G) e óbitos por tuberculose pulmonar (TB, em H). Os pontos representam os dados coletados a cada mês, de janeiro de 2003 a dezembro de 2014, de cada variável, e a reta representa a tendência dos dados. A coluna do meio corresponde ao período no qual a intervenção estava sendo implantada (entre dezembro de 2009 e dezembro de 2010). *Significância estatística..
A análise da Figura 2C mostra quedas significativas da taxa de cura tanto antes quanto depois da intervenção (p < 0,0001 para ambas). Embora a análise estatística da intervenção (β = −4,14; IC95%: −8,63 a 0,34; p = 0,07) mostre independência em relação à intervenção, o valor de p = 0,07 demonstra uma tendência a associação entre as mudanças do tratamento e a queda das taxas de cura. A análise da taxa de abandono apresentada na Figura 2D mostra a manutenção dessa taxa elevada durante todo o período estudado de forma independente da intervenção (β = 0,40; IC95%: −1,12 a 1,93; p = 0,60). É interessante notar uma significativa redução nos casos de abandono durante o período de implantação da intervenção (β = −7,28; IC95%: −11,6 a 2,93; p = 0,001). A análise estatística da Figura 2E mostra independência entre as mudanças do tratamento e os casos de TBMR (β = 0,13; IC95%: −0,03 a 0,29; p = 0,12). Entretanto, ficam demonstrados aumentos significativos nos casos de TBMR tanto no período anterior quanto no período posterior às mudanças do tratamento (p < 0,0001 para ambos).
Como visto na Tabela 1, houve um aumento abrupto no número de notificações de óbitos por tuberculose em 2003 (N = 85) comparado ao em 2007 (N = 2.482), sugerindo a possibilidade de alguma mudança de critério ou de problema de notificação no SINAN-TB. Assim, analisamos o número total de óbitos (soma dos óbitos por tuberculose pulmonar com os óbitos por outras causas) no período de estudo (de 2003 a 2014) e conduzimos uma análise separada dos óbitos por tuberculose pulmonar e por outras causas de 2007 (ao invés de 2003) a 2014. A inclinação da reta de tendência pós-intervenção da Figura 2F (total de óbitos) sugere uma redução dos óbitos totais, sem significância estatística, que pode ter ocorrido devido a uma redução significativa dos óbitos por outras causas (Figura 2G) entre os períodos pré e pós-intervenção (β = −0,86; IC95%: −1,50 a −0,21; p = 0,01). Por outro lado, ao avaliar os óbitos por tuberculose pulmonar (Figura 2H), tanto a inclinação da reta de tendência pós-intervenção (β = 0,39; IC95%: 0,03 a 0,75; p = 0,04), quanto à análise estatística entre os períodos pré e pós-intervenção (β = 0,77; IC95%: 0,16 a 1,38; p = 0,01) demonstraram uma associação entre a intervenção e o aumento da mortalidade por tuberculose pulmonar.
Os dados do SINAN-TB mostram uma redução do número total e de casos novos de tuberculose pulmonar notificados no Brasil entre 2003 e 2014, bem como uma piora contínua nas taxas de cura, de recidiva, de TBMR e de óbitos, assim como a manutenção de elevada taxa de abandono de tratamento no mesmo período. De acordo com a ASTI, a intervenção (mudança do tratamento) mostrou uma tendência a se associar com uma queda ainda maior da taxa de cura, se associou ao aumento dos óbitos por tuberculose pulmonar e não teve impacto (foi estatisticamente independente) do aumento dos casos de TBMR e da elevada taxa de abandono do tratamento. Adicionalmente, não se pode descartar a possibilidade de subnotificação dos casos.
Desde a década de 1980 vêm ocorrendo reduções no coeficiente de incidência de tuberculose, que variou de 70,4/100.000 habitantes em 1982 para 43,0/100.000 habitantes em 2010.10-12 Iniciativas como o Plano Emergencial para Controle da Tuberculose entre 1996 e 1997, o PNCT de 1998 (que estendeu a cobertura, instituiu o tratamento supervisionado e criou uma nova forma de repasse de recursos aos municípios) e a disponibilização da terapia antirretroviral para os casos de coinfecção tuberculose/HIV, entre tantas outras medidas, podem ter colaborado para essa redução.10-12 Contraditoriamente, no entanto, as taxas de cura, de resistência e de abandono se mantiveram ruins ou pioraram desde as décadas de 1980 e 1990.3,10-12 Assim, é possível que outras variáveis possam estar envolvidas na queda das notificações de tuberculose pulmonar no Brasil. Já foi demonstrada a associação inversa entre o coeficiente de incidência de tuberculose e variáveis como a renda per capita e o produto interno bruto.13-16 Dessa forma, a estabilização da economia e o aumento do produto interno bruto no Brasil nos últimos 25 anos podem ter colaborado para a redução de casos de tuberculose. Nesse contexto, é possível que a manutenção das atuais taxas de cura e de abandono em níveis bem diferentes daqueles recomendados pela Organização Mundial da Saúde, juntamente com a crise econômica instalada no país, possa se traduzir em redução da queda ou mesmo em aumento do coeficiente de incidência nos próximos anos.1 A partir da mudança da definição de recidiva pelo PNCT em 2011, que passou a incluir todo paciente com tuberculose prévia independentemente do tempo decorrido do episódio anterior, é de se esperar uma redução no número de casos classificados como novos e um aumento no número total de notificações. Talvez isso explique o fato de a redução da notificação do total de casos ter deixado de ser significativa após 2010 (p = 0,09) e a de casos novos ter permanecido (p = 0,01).
Ao acrescentar o quarto fármaco (etambutol) ao esquema RHZ, o Ministério da Saúde do Brasil esperava aumentar a taxa de cura.3 De acordo com a literatura, a chance de falência de tratamento em pacientes com resistência a isoniazida tratados com o esquema RHZ é, na verdade, pequena.17,18 Assim, não era de se esperar um significativo aumento na cura após a adição do etambutol. Entretanto, a contínua queda da taxa de cura que ocorria desde 2003 não foi atenuada pelas mudanças do tratamento realizadas em 2009/2010. Adicionalmente, a ASTI sugere uma tendência à associação entre a intervenção e uma queda ainda maior na taxa de cura. A baixa taxa de cura da tuberculose pulmonar pode ocorrer por diferentes motivos. Um dos motivos pode ser a falência do tratamento. Já foram descritos, por exemplo, problemas de biodisponibilidade da rifampicina em comprimidos em DFC e também problemas de absorção desse fármaco nessa apresentação, sobretudo em pacientes vivendo com o HIV e que tenham contagem baixa de linfócitos CD4.19-21 De fato, uma revisão sistemática seguida de meta-análise publicada em 2013 comparando o tratamento da tuberculose em DFC com o tratamento utilizando os fármacos em comprimidos separados mostrou uma tendência ao maior risco de falência ou de recidiva no grupo usando comprimidos em DFC (risco relativo = 1,28; IC95%: 0,99-1,70).22 Adicionalmente, é importante lembrar que, além da mudança da apresentação para DFC, as dosagens de isoniazida e pirazinamida foram reduzidas na mudança do tratamento.3 Outra revisão sistemática, publicada em 2016, fez a mesma comparação e não observou maior falência; porém, demonstrou uma maior tendência à recidiva nos indivíduos tratados com comprimidos em DFC (risco relativo = 1,28; IC95%: 1,00-1,64).23 Na presente análise, não foi avaliado o impacto da intervenção na taxa de recidiva em função da mudança da definição de recidiva no mesmo período da intervenção. Assim, não é possível distinguir se o aumento dos casos de recidiva está associado à mudança do tratamento ou à incorporação de um maior número de casos de reinfecção exógena. A verdadeira recidiva de tuberculose é consequência da não esterilização da lesão, cuja responsabilidade é dos fármacos rifampicina e pirazinamida.20,24 De forma a evitar a ocorrência de recidivas (verdadeiras), é necessária a realização de estudos de biodisponibilidade e bioequivalência dos comprimidos em DFC antes da sua utilização.
Outro possível motivo para a redução da taxa de cura seria o aumento do abandono. A manutenção da elevada taxa de abandono e a sua independência em relação à intervenção sugerem que a redução da taxa de cura é independente dessa variável. Demonstra ainda que a utilização de comprimidos em DFC não alcançou o objetivo da mudança pretendido pelo Ministério da Saúde de diminuir o abandono. Esse achado é semelhante ao encontrado em uma revisão sistemática seguida de meta-análise realizada em 2013, que não encontrou um aumento na adesão ao tratamento no grupo utilizando comprimidos em DFC nos cinco ensaios clínicos em que essa variável foi avaliada.22
Houve um significativo aumento no número de casos de TBMR em todo o período estudado. O aumento de 19% para 32% (de 2003 para 2014) no número de culturas para M. tuberculosis realizadas não é suficiente para justificar o aumento de diagnósticos de TBMR (de 0,2% para 1,1%) no mesmo período. A intervenção foi independente do resultado pós-intervenção, ou seja, a mudança do tratamento não foi capaz de reduzir ou de atenuar a taxa de TBMR, que aumentou significativamente tanto antes quanto depois da intervenção. Do ponto de vista programático, a resistência ocorre pela exposição do M. tuberculosis a um só fármaco ou a doses inferiores às necessárias.17 Habitualmente, problemas de adesão (abandono do tratamento, o uso errado dos medicamentos e/ou o uso irregular desses), assim como a utilização de subdoses e/ou problemas de absorção dos fármacos, se associam ao aumento da resistência adquirida.17,25 A apresentação em DFC torna o uso errado dos medicamentos improvável e, na população estudada, não está associada à redução do abandono, como visto anteriormente.22 Assim, o elevado número de casos de abandono do tratamento no período estudado pode ser uma das variáveis envolvidas no aumento dos casos de TBMR no Brasil. Entretanto, por que a mudança do tratamento não teve efeito algum na contenção do aumento da TBMR no Brasil? A adição do etambutol ao esquema RHZ diminuiu o risco de resistência adicional em pacientes com resistência inicial à isoniazida isoladamente ou com resistência simultânea a isoniazida e pirazinamida ou com resistência isolada à rifampicina (que é raro), mas não tem efeito protetor para casos com resistência simultânea a isoniazida e rifampicina (caso de TBMR).20 Adicionalmente, um estudo de biodisponibilidade realizado em 2013 demonstrou ausência de bioequivalência entre a isoniazida do comprimido em DFC e a do comprimido contendo somente isoniazida.26 Esses dados, somados aos já citados problemas de biodisponibilidade da rifampicina em comprimidos em DFC e a redução da dose de isoniazida e de pirazinamida do atual tratamento, reforçam a importância da realização de estudos de bioequivalência e biodisponibilidade dos fármacos em comprimidos de DFC.19-21 O aumento dos casos de resistência parece ser um marcador de funcionamento dos programas de tuberculose.25 Nesse sentido, o aumento dos casos de TBMR é um alerta para um possível aumento da monorresistência e da polirresistência primária, conforme vem sendo demonstrado por estudos pontuais realizados em diferentes regiões do país.27-29 Esses achados sugerem a necessidade urgente da universalização da cultura para M. tuberculosis com teste de sensibilidade aos fármacos para todos os pacientes com tuberculose do Brasil. Outra possibilidade para o aumento nos casos de TBMR poderia ser o aumento no número de casos de coinfecção tuberculose/HIV. Entretanto, apesar do significativo aumento na proporção de casos de tuberculose testados para o HIV (de 43% em 2003 para 77% em 2014), a proporção de casos de coinfecção diminuiu (de 14% em 2003 para 12% em 2014). Embora aquém da meta de realização do teste para HIV em 100% dos casos de tuberculose, esse aumento para 77% é significativo.
O aumento dos óbitos por tuberculose pulmonar a partir de 2007 é um achado muito relevante, especialmente por ocorrer devido a uma doença tratável e com medicamentos distribuídos gratuitamente na rede pública de saúde de todo país. Embora a ASTI (tanto na avaliação visual da inclinação da reta de tendência quanto na avaliação do coeficiente) tenha mostrado uma associação entre a mudança do tratamento e o aumento nos óbitos por tuberculose, é possível que outras variáveis também estejam envolvidas. Entretanto, esse dado é preocupante em um contexto de crise econômica, queda da taxa de cura, de elevada taxa de abandono e de aumento dos casos de TBMR.
O presente estudo tem várias limitações. Por se tratar de um estudo de dados secundários, os mesmos podem não ser exatos. Não é rotina dos programas de tuberculose realizar testes moleculares para confirmar se um caso classificado como recidiva é realmente causado pela mesma micobactéria ou se é um caso de reinfecção. O critério operacional de considerar como “recidiva” o adoecimento ocorrido dentro de doze meses após a alta por cura era largamente aceito, porém infelizmente não é mais utilizado. Os dados avaliados não foram estratificados por estados ou municípios. Assim, os achados se referem aos dados nacionais e podem não representar a realidade de algumas localidades. Embora não exista um delineamento metodológico isento de conclusões equivocadas, a ASTI parece ser o procedimento de avaliação de intervenção em saúde pública com a menor probabilidade de que isso ocorra.6
Concluindo, no período estudado, houve reduções na taxa de notificação de casos novos de tuberculose pulmonar, do número total de casos e das taxas de cura, assim como aumentos nos casos de TBMR e de óbitos por tuberculose pulmonar, além da manutenção da elevada taxa de abandono. De acordo com a ASTI, a mudança do tratamento não reduziu as taxas de abandono e nem as de TBMR, se associou ao aumento dos óbitos por tuberculose pulmonar e mostrou uma tendência a piorar sua taxa de cura.