versão On-line ISSN 2526-8910
Cad. Bras. Ter. Ocup. vol.26 no.4 São Carlos out./dez. 2018
http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoao1633
Os transtornos relacionados ao consumo de substâncias psicoativas (SPA) estão entre os principais problemas contemporâneos de saúde pública em âmbito mundial, com repercussões e prejuízos de ordens pessoal, social, econômica, política e judicial. A principal característica de um transtorno relacionado ao uso de SPA é a presença de um conjunto de sintomas cognitivos, comportamentais e fisiológicos (AMERICAN..., 2015; SALLES; SILVA, 2017).
No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) utiliza a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde na versão 10 (CID-10) estabelecida pela Organização Mundial da Saúde (2008) para avaliação diagnóstica da dependência química. Segundo a CID-10, a dependência química é considerada um transtorno mental e de comportamento decorrente do uso de SPA e, para seu diagnóstico, o indivíduo deve apresentar, nos últimos 12 meses, três ou mais sintomas dos seis estabelecidos: desejo intenso ou compulsão para consumir a substância; dificuldade de controlar o consumo; presença de abstinência; tolerância ao uso, sendo necessárias doses crescentes e mais frequentes; abandono de atividades de prazer em detrimento ao uso; persistência no uso, mesmo percebendo os prejuízos biopsicossociais, profissionais e econômicos (ORGANIZAÇÃO..., 2008).
O uso abusivo e descontrolado de substâncias psicoativas é considerado problema complexo e multifatorial que envolve aspectos biopsicossociais, sendo consequência de uma inter-relação complexa entre SPA, processos fisiológicos, cognição, comportamentos, emoções, relações familiares e sociais e influências culturais (KAPLAN et al., 2007). Traços individuais, ansiedade em situações de interação social, dificuldades em comunicação assertiva ante a oferta da SPA por outros podem ser considerados fatores de risco no desencadeamento para o consumo de SPA (MORALES et al., 2011).
Os déficits no repertório de habilidades sociais podem estar associados às dificuldades de relacionamento, de enfrentamento de problemas cotidianos, bem como relacionados a transtornos mentais, ansiedade, depressão e ao uso abusivo e/ou dependência de substâncias psicoativas (DEL PRETTE et al., 2004; ALIANE et al., 2006; PINHO; OLIVA, 2007; FELICISSIMO et al., 2013). Alguns autores referem que esses déficits podem apresentar-se sob a forma de baixa competência social no enfrentamento de situações cotidianas, como na resolução de problemas, podendo levar ao consumo compulsivo de SPA (CUNHA et al., 2007; WAGNER; OLIVEIRA, 2009; RODRIGUES et al., 2011; CUNHA et al., 2012; MIGUEL; GAYA, 2013).
É importante diferenciar os conceitos de competência social e habilidades sociais, por vezes tomados equivocadamente como sinônimos. O termo competência social é um constructo de natureza avaliativa, referente à adequação do desempenho de alguém ante a determinadas situações ou tarefas específicas (CABALLO, 2003; DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2009). Por outro lado, o conceito de habilidades sociais designa um constructo de cunho descritivo, relacionado a comportamentos necessários à competência social, sendo algumas das principais classes de comportamentos relacionados às habilidades sociais: comunicação, assertividade, relações profissionais, empatia e expressão de sentimentos positivos (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2009).
As habilidades sociais são desenvolvidas e aprimoradas naturalmente ao longo da vida, sendo esse processo consolidado por meio do estabelecimento de relações e interações sociais. O repertório de habilidades sociais pode auxiliar na própria diversificação de fatores de proteção e de resiliência do indivíduo, colaborando com o desenvolvimento humano e promovendo saúde física e mental e qualidade de vida (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2001; MURTA, 2005; ZANELATTO, 2013; LIMBERGER et al., 2017). Os déficits em habilidades sociais, entre outras variáveis, podem tornar o indivíduo mais suscetível a riscos diversos, entre eles, o envolvimento com o consumo de SPA (PINHO; OLIVA, 2007; WAGNER; OLIVEIRA, 2009; SCHNEIDER et al., 2016).
Déficits em habilidades sociais podem ser inferidos pela ausência de comportamentos adequados em tarefas específicas ou, então, pela identificação de comportamentos que não resultam em proficiência nas tarefas requeridas (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2009). Esses déficits podem ser de natureza diversa, como os de aquisição, de desempenho e de fluência (CUNHA et al., 2007; DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2009). O déficit de aquisição ocorre quando o indivíduo nunca emite uma habilidade específica, uma vez que não dispõe desta em seu repertório. Quando a habilidade é emitida apenas esporadicamente, considera-se que existe no repertório, mas ocorre déficit de desempenho. Por outro lado, se o indivíduo enfrenta grande dificuldade na emissão de determinada habilidade, com ausência de espontaneidade, ocorre o déficit de fluência (BARRETO et al., 2011; LIMBERGER et al., 2017). Para avaliação dos déficits e/ou dificuldades em habilidades sociais, as medidas mais comumente utilizadas são instrumentos de autorrelato e de protocolos observacionais, além da identificação de déficits de aquisição, de desempenho e de fluência (BARRETO et al., 2011; LIMBERGER et al., 2017).
O déficit no repertório de habilidades sociais de usuários de substâncias psicoativas pode ser considerado fator de risco, não só para o início do uso, mas também um fator que contribui para a manutenção do uso de substâncias (RODRIGUES et al., 2011). De acordo com Del Prette e Del Prette (2001), dentre as habilidades sociais, destaca-se a assertividade em situações que necessitam de afirmação e defesa de direitos e de autoestima. No caso do usuário de substâncias, a dificuldade ou ausência de assertividade pode configurar-se com risco potencial à recaída, observado mediante postura passiva e submissa em situações como recusa mediante a oferta da substância psicoativa, dificuldade quanto à participação ativa e à corresponsabilização no tratamento, além de o usuário de substâncias apresentar dificuldade em manter-se fiel às próprias escolhas.
Neste sentido, o treinamento de habilidades sociais (THS) é uma das principais abordagens utilizadas no tratamento da dependência química (SÁ; DEL PRETTE, 2014; SCHNEIDER et al., 2016; COUTINHO et al., 2017; LIMBERGER et al., 2017). A investigação sobre o repertório de habilidades sociais de usuários de substâncias psicoativas pode auxiliar o profissional da área de saúde a elaborar estratégias e intervenções voltadas ao cuidado e tratamento do usuário de substâncias psicoativas.
Nas últimas décadas, vem sendo observado um interesse crescente em investigações sobre associações entre as habilidades sociais e transtornos relacionados ao consumo de substâncias, para subsídio de propostas de cunho preventivo e/ou terapêutico.
Há evidências de associação entre déficits em habilidades sociais e o envolvimento com substâncias psicoativas (WAGNER; OLIVEIRA, 2009; CARDOSO; MALBERGIER, 2014; GONZÁLVEZ et al., 2014; VOROBJOV et al., 2014; COTA et al., 2016; SINTRA; FORMIGA, 2015). Contudo, a literatura sugere particularidades na relação entre habilidades sociais e problemas relacionados ao consumo de drogas (GONZÁLVEZ et al., 2014; SÁ; DEL PRETTE, 2014; SCHNEIDER; ANDRETTA, 2017a).
Pesquisas nacionais e internacionais sugerem associação entre facetas específicas das habilidades sociais e o consumo de determinadas substâncias, como crack (SÁ; DEL PRETTE, 2014; SCHNEIDER; ANDRETTA, 2017a), maconha (WAGNER; OLIVEIRA, 2009; WAGNER, 2010), álcool (FELICISSIMO et al., 2016; CUNHA et al., 2007), tabaco (PINHO; OLIVA, 2007; RONDINA et al., 2015; SÁ; DEL PRETTE, 2014), anfetaminas (COTA et al., 2016), entre outras. Alguns estudos também optaram por verificar a diferença entre o repertório de habilidades sociais em usuários de substâncias psicoativas e não usuários (ALIANE et al., 2006; WAGNER, 2010).
É importante notar, contudo, que o conjunto das pesquisas sugere a existência de associações diretas e/ou inversas entre o envolvimento com determinadas substâncias psicoativas e classes específicas do repertório de habilidades sociais em usuários de substância. Contudo, ainda há diferentes hipóteses sobre a natureza dessa associação e lacunas no conhecimento sobre o assunto. Muitas pesquisas são efetuadas com populações específicas, como amostras de adolescentes ou estudantes universitários, o que dificulta a comparação com outros trabalhos e/ou a generalização dos resultados. Pesquisadores ressaltam também a escassez de estudos investigando a relação entre facetas específicas do repertório de habilidades sociais e o policonsumo (ou consumo combinado) de duas ou mais substâncias (SÁ; DEL PRETTE, 2014; CARDOSO; MALBERGIER, 2014). Pesquisas envolvendo populações com diferentes características em relação ao uso de múltiplas e variadas substâncias ainda são necessárias para compreender melhor o assunto.
O presente estudo teve o objetivo de avaliar o repertório de habilidades sociais de usuários de múltiplas e variadas substâncias psicoativas, diagnosticados e em tratamento no Centro de Atenção Psicossocial em Álcool e outras Drogas II (CAPSad) de uma cidade do centro-oeste paulista.
Esta pesquisa é descritiva, de caráter quantitativo e de corte transversal. Trata-se de um recorte de projeto de pesquisa maior intitulado “Música como recurso terapêutico ocupacional para promoção do bem-estar subjetivo de habilidades sociais de dependentes químicos”, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob parecer de número 0725/2013. Os voluntários receberam todas as informações e orientações sobre sua participação na pesquisa e, como manifestação de concordância de sua participação voluntária na pesquisa, assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.
Foram convidados 38 usuários, porém aceitaram participar somente 35 usuários de múltiplas e variadas substâncias, diagnosticados com transtorno mental e de comportamento pelo uso de substância psicoativa e em tratamento no Centro de Atenção Psicossocial para Usuários de Álcool e outras Drogas II (CAPSad) de uma cidade do interior paulista. O critério para fechamento da amostra foi por conveniência. Os critérios de inclusão para participação da pesquisa foram: ter mais de 18 anos, ser diagnosticado clinicamente com transtorno mental e de comportamento por uso de substância psicoativa, segundo critérios da CID-10, estar em tratamento no serviço, abstinente em tempo igual ou superior há um mês, a fim de evitar a participação de usuários com sintomas físicos e/ou psicológicos agudos por cessação do uso, não apresentar déficits cognitivos segundo avaliação médica, ser acompanhado pela equipe multidisciplinar e aceitar participar voluntariamente da pesquisa.
Foram utilizados dois instrumentos para coleta de dados, sendo um questionário específico para caracterização do perfil sociodemográfico dos participantes, tipos de SPAs consumidas e histórico de tratamento. Esse questionário foi elaborado pelos pesquisadores embasados pela literatura.
O segundo instrumento foi o Inventário de Habilidades Sociais (IHS), que consiste em um instrumento de autorrelato elaborado por Del Prette e Del Prette (2001). Esse instrumento é utilizado para caracterizar as habilidades sociais do indivíduo em diferentes situações sociais, como os relacionamentos interpessoais em contextos sociofamiliares, escolares e de trabalho.
As propriedades psicométricas satisfatórias do IHS apontam para a fidedignidade do instrumento para aplicação clínica ou em pesquisas. O instrumento foi avaliado em uma amostra de estudantes universitários e os resultados apontaram consistência interna do instrumento com coeficiente alfa de Cronbach de 0,75, indicando a validade e confiabilidade deste.
O IHS é dividido em duas partes, sendo a primeira relacionada à investigação das habilidades sociais em determinadas situações e a segunda parte refere-se à caracterização do participante.
A primeira parte é composta de 38 itens, em que cada item representa uma ação e/ou reação a uma determinada situação de interação social. Esses itens são agrupados em cinco fatores: fator 1 (F1): referente às habilidades de enfrentamento com risco perante situações de relacionamento interpessoal; fator 2 (F2): sobre autoafirmação na expressão de afeto positivo e autoestima; fator 3 (F3): referente às habilidades de conversação e desenvoltura social; fator 4 (F4): sobre autoexposição a desconhecidos ou a situações novas; fator 5 (F5): autocontrole da agressividade em situações aversivas.
O instrumento é de fácil aplicação e, para preenchimento das respostas, os participantes foram instruídos a responder em relação à frequência de suas reações, tendo sido a resposta assinalada seguindo uma escala do tipo Likert de cinco pontos, que variam de “nunca ou raramente (zero a duas vezes); pouca frequência (três a quatro vezes); regular frequência (cinco a seis vezes); muito frequente (sete a oito vezes); sempre ou quase sempre (nove a dez vezes) (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2001).
Para coleta de dados, foi solicitada autorização da instituição para realizar pesquisas e ter acesso aos usuários do serviço. Como parte do processo para obtenção do consentimento, no primeiro contato, os participantes foram esclarecidos quanto aos objetivos da pesquisa e convidados a participar voluntariamente e, no caso de concordância, foram agendados data e horário para aplicação do instrumento, bem como assinatura do TCLE. A coleta de dados ocorreu em ambiente disponibilizado pelo CAPSad e foi realizada conforme estabelecido pelo manual de aplicação do instrumento, sendo a coleta individual.
Nessa etapa, optou-se pela leitura de cada questão ao participante pelo pesquisador, tendo sido as respostas anotadas pelo pesquisador em respectivo bloco de respostas. Esse procedimento garantiu que todas as respostas fossem respondidas, evitando-se, assim, perdas e/ou anulação do teste. Destaca-se que no momento que antecedeu a aplicação, foi explicado ao participante que este deveria responder a todas as questões, pois a não resposta de uma questão comprometeria a análise dos resultados e, por consequência, invalidaria sua participação na pesquisa.
Para registro e análise dos dados, estes foram tabulados em planilha do software Excel e análises foram realizadas por um psicólogo colaborador por meio do sistema de correção informatizada disponibilizada on-line, mediante aquisição dos blocos de aplicação e respostas do instrumento. O software apresenta os resultados em escores geral e fatorial. O software soma os valores correspondentes a cada resposta da escala tipo likert, realiza a média e os valores são convertidos em percentis e, então, classificados em cinco tipos de repertórios: repertório altamente elaborado, bastante elaborado, bom repertório, repertório médio inferior e repertório abaixo da média inferior (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2001).
Participaram 35 usuários, do gênero masculino, consumidores de múltiplas e variadas substâncias e diagnosticados com transtorno mental e de comportamento pelo uso de substância psicoativa, dentre elas: tabaco, álcool, maconha, cocaína e crack. Todos estavam em tratamento no Centro de Atenção Psicossocial para Usuários de Álcool e outras Drogas (CAPSad) de uma cidade do interior paulista.
Na Tabela 1, é apresentada a caracterização do perfil sociodemográfico dos participantes, sendo possível observar que 42,9% (15) tinham idade entre 31 e 35 anos, 51,4% (18) declararam-se solteiros, 54,4% (19) possuíam Ensino Fundamental completo, 48,6% (17) viviam com renda mensal de até um salário mínimo e 54,4% (19) realizavam algum tipo de trabalho.
Tabela 1 Caracterização do perfil sociodemográfico dos participantes.
Idade | n | % |
---|---|---|
18 anos | 04 | 11,4 |
Entre 19 e 25 anos | 07 | 20,0 |
Entre 26 e 30 anos | 05 | 14,3 |
Entre 31 e 35 anos | 15 | 42,9 |
Acima de 36 anos | 04 | 11,4 |
Estado civil | ||
Solteiro | 18 | 51,4 |
Casado | 12 | 34,3 |
Separado ou divorciado | 05 | 14,3 |
Viúvo | 00 | 0,0 |
Escolaridade | ||
Não estudou | 06 | 17,1 |
Ensino Fundamental | 19 | 54,4 |
Ensino Médio completo | 06 | 17,1 |
Ensino Superior incompleto | 02 | 5,7 |
Ensino Superior completo | 02 | 5,7 |
Atividade laboral | ||
Trabalho formal ou informal | 19 | 54,4 |
Desempregado | 16 | 45,6 |
Renda familiar | ||
Nenhuma | 03 | 8,6 |
Até 1 salário mínimo | 17 | 48,6 |
Até 2 salários mínimos | 10 | 28,6 |
De 2 a 5 salários mínimos | 03 | 8,5 |
Mais de 5 salários mínimos | 02 | 5,7 |
Fonte: Elaborada pelos autores.
Dentre os entrevistados, 65,7% (23) referiram consumir tabaco, 48,6% (17), álcool, 40,0% (14), cocaína e derivados (crack) e 25,7% (9), maconha. Quanto a essa questão, os participantes poderiam assinalar mais de uma resposta. Quanto ao início do consumo, 20,0% (7) referiram uso antes dos 13 anos, 65,7% (23), entre a faixa etária de 13 a 17 anos e 14,3% (5), após os 18 anos. Em relação à quantidade de tratamentos já realizados, 31,4% (11) referiram que este era o primeiro tratamento, 20,0% (07) já haviam realizado um tratamento anterior e 48,6% (17) já tinham realizado dois ou mais tratamentos anteriores.
Quanto aos resultados do Inventário de Habilidades Sociais (IHS), a análise do escore geral total da amostra apontou a presença de bom repertório de habilidades sociais. Já a análise individual dos escores gerais de cada participante indicou que 22,8% (08) apresentaram repertório elaborado, 34,3% (12), bom repertório e 42,8% (15), um repertório abaixo da média, o que sugere a necessidade de treinamento em habilidades sociais. Dentre os que apresentaram repertório abaixo da média, verificou-se que 66,7% (10) apresentaram déficit em relação ao fator 1 referente a habilidades de enfrentamento e autoafirmação com risco e 60% (9), déficit no fator 3 (habilidades de conversação e desenvoltura social).
Por outro lado, a análise por escores fatorais da amostra total apontou que 48,6% (17) participantes apresentam escores abaixo da média no fator 1 relacionado às habilidades de enfrentamento e autoafirmação com risco.
O objetivo do presente estudo foi avaliar o repertório de habilidades sociais de usuários de drogas diagnosticados com transtorno relacionado ao uso de substância, em atendimento em um CAPSad. À primeira vista, a análise individual do fator geral do IHS apontou que 42,8% da amostra apresentou desempenho prejudicado, o que sugere que a incidência de déficits no repertório de habilidades sociais é expressiva. Estudos brasileiros similares, contudo, denotam controvérsia nesse sentido.
Em uma pesquisa de Sá e Del Prette (2014) realizada com 47 pacientes de várias substâncias, atendidos em regime ambulatorial em CAPSad, não foi encontrada associação estatisticamente significante entre déficits no escore geral do IHS e abuso ou dependência de álcool e outras substâncias. Na maioria das pesquisas nacionais envolvendo substâncias específicas, não foi verificada associação no escore geral do IHS dos participantes.
Nos estudos de Schneider e Andretta (2017a,b) com usuários de crack, a presença de altos ou baixos níveis no escore geral não foi classificada como fator de risco ou de proteção para transtorno por uso de crack, pois acreditam na especificidade dos comportamentos sociais em diferentes contextos de uso. Em uma pesquisa de Horta et al. (2016) com usuários de crack, também não foi verificada diferença em relação ao déficit ou não no repertório de habilidades sociais. Em alguns estudos nacionais com usuários de maconha, também não foi constatada diferença entre os escores gerais do IHS de adolescentes usuários e não usuários (WAGNER; OLIVEIRA, 2009; WAGNER, 2010).
Quanto ao tabagismo, em um levantamento realizado com 1126 universitários, não houve diferença significativa do fator geral do IHS das médias dos escores de fumantes e não fumantes (RONDINA et al., 2015). Também nos estudos de Rodrigues (2008) e de Pinho e Oliva (2007), não foi detectada associação.
Situação similar se observa no tocante ao envolvimento com álcool. Aliane et al. (2006) compararam o repertório de dependentes e não dependentes de álcool e não detectaram diferença significante entre as médias dos escores individuais no fator geral do IHS. No estudo de Felicissimo et al. (2016) com dependentes de álcool, também não foi encontrada diferença significante entre as médias.
Considera-se que avaliar apenas a relação entre o repertório geral de habilidades sociais e seu papel como preditor do envolvimento com substâncias psicoativas pode resultar em conclusões generalistas e/ou enviesadas (SCHNEIDER; ANDRETTA, 2017a). As habilidades sociais possuem um caráter situacional e cultural e, portanto, é necessário levar em conta a diversidade de contextos em que o indivíduo está inserido. O contexto da dependência de substâncias apresenta facetas peculiares, que podem não ser captadas completamente por instrumentos de avaliação geral de enfrentamento e de habilidades sociais (SÁ; DEL PRETTE, 2014; SCHNEIDER; ANDRETTA, 2017b).
No presente estudo, a apuração dos escores fatorais do IHS da amostra como um todo apontou que 48,6% (17) participantes tiveram desempenho abaixo da média no fator 1, relacionado às habilidades de enfrentamento e autoafirmação com risco. O fator F1 se refere:
[...] a capacidade de lidar com situações interpessoais que demandam a afirmação e defesa de direitos e autoestima, com risco potencial de reação indesejável por parte do interlocutor (possibilidade de rejeição, de réplica ou de oposição). Em outras palavras, é um indicador de assertividade e controle da ansiedade como as que aqui foram reunidas [...] apresentar-se a uma pessoa desconhecida, abordar parceiro (a) para relacionamento sexual, discordar de autoridade, discordar de colegas em grupo, cobrar dívida de amigo, declarar sentimento amoroso a parceiro (a), lidar com críticas injustas, falar a público conhecido, devolver à loja mercadoria defeituosa, manter conversa com desconhecidos e fazer pergunta a conhecidos (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2001, p. 27-28).
A bibliografia nacional e a internacional revelam controvérsia quanto ao papel dos déficits em assertividade, como fatores de risco para problemas relacionados ao consumo de substâncias.
Salgado-Jimenez et al. (2016), por exemplo, investigaram a relação entre dificuldades interpessoais e uso de substâncias em estudantes de bacharelado na faixa etária compreendida entre 15 e 20 anos de idade. Os resultados indicaram associação significativa entre assertividade e consumo de substâncias. Os autores sugeriram a importância de estabelecer diretrizes de intervenção com base em treinamento de assertividade, para prevenir o consumo nesse grupo populacional.
Supõe-se que adolescentes que enfrentam dificuldades em expressar suas opiniões e de se relacionar socialmente podem se tornar mais vulneráveis à influência dos pares. Tais dificuldades podem levar os adolescentes ao consumo de substâncias, uma vez que podem supor que ao fazer uso da substância, esta facilitará sua aceitação social ou até sua interação com os colegas (MORALES et al., 2011).
Contudo, há pesquisas nacionais que demonstram associação entre melhor desempenho no fator F1 do IHS e o envolvimento com determinadas substâncias, como o crack (SCHNEIDER; ANDRETTA, 2017b; SÁ; DEL PRETTE, 2014) e o tabaco (RONDINA et al., 2013; RONDINA et al., 2015).Também há estudos internacionais que denotam associação inversa entre tabagismo e assertividade (NICHOLS et al., 2006; EPSTEIN et al., 2000).
É importante observar que a maioria das publicações até o momento demonstra associação (direta ou inversa) entre escores fatoriais do IHS e problemas relacionados ao consumo de determinadas substâncias. Tal fato sugere a necessidade de estratégias de intervenção específicas, segundo diferentes tipos de dependência química (SÁ; DEL PRETTE, 2014). Porém, ainda não há dados conclusivos quanto à relação entre o envolvimento com diferentes tipos de substâncias e classes específicas do repertório de habilidades sociais.
Em um estudo brasileiro com adolescentes usuários de maconha, foi encontrada associação entre o consumo dessa substância e déficits no fator 4 do IHS (autoexposição a desconhecidos e situações novas) e no fator F5 (autocontrole da agressividade em situações aversivas) (WAGNER; OLIVEIRA, 2009). No estudo de Wagner (2010) com adolescentes consumidores e não de maconha, verificou-se associação dos déficits de IHS no fator F5 somente dos adolescentes consumidores de maconha. Este estudo diferencia-se da pesquisa de Sá e Del Prette (2014), a qual, apesar de também ser realizada com usuários de maconha, porém maiores de 21 anos e atendidos em CAPSad, não apresentou associação entre déficit de habilidades sociais em F5 e consumo de maconha.
Em relação ao crack, a literatura sugere que o consumo dessa substância possui associação direta com determinadas classes de habilidades e também associação inversa com habilidades específicas. Schneider e Andretta (2017b), por exemplo, identificaram a variável “déficits em conversação e desenvoltura social” como fator de risco para o uso de crack. O mesmo estudo também revelou associação direta com a variável “enfrentamento com risco” (F1), o que se pode supor que ter bom desempenho no fator F1 seria fator de proteção para o consumo de crack na amostra pesquisada.
Outro levantamento também mostrou que para o envolvimento com crack, determinadas classes de habilidades sociais são fatores de risco e outras, fatores de proteção (SCHNEIDER; ANDRETTA, 2017a). Nesse estudo, ter melhor repertório em habilidades de enfrentamento com risco (F1) se mostrou um fator de risco para transtorno por uso de crack. Por outro lado, menores habilidades em conversação e desenvoltura social também foram identificadas como fatores de risco (SCHNEIDER; ANDRETTA, 2017a).
No trabalho de Sá e Del Prette (2014), quatro variáveis do IHS foram preditoras do envolvimento com crack: déficits em habilidades de administrar as críticas dos pais e também com críticas justas, bem como melhor repertório nas habilidades de divergir de autoridade e concluir conversação.
Quanto ao consumo de álcool, o estudo de Felicissimo et al. (2016) detectou diferença entre dependentes e não dependentes no fator F5 (autocontrole da agressividade em situações aversivas) com maiores déficits na habilidade de “lidar com humilhações e brincadeiras de conhecidos”. No trabalho de Cunha et al. (2007), detectou-se déficit no repertório de habilidades sociais de alcoolistas nos fatores autoafirmação de sentimento positivo, conversação e desenvoltura social. No trabalho de Sá e Del Prette (2014), o envolvimento com álcool foi correlacionado a menores habilidades em F1, F4, F3 no escore geral do IHS. Esse estudo identificou associação também entre álcool e menores habilidades especificamente, para falar em público, conversar com pessoas desconhecidas e/ou autoridades, receber elogios e aproximar-se para relacionamento sexual. Pesquisas nacionais sobre habilidades sociais em tabagistas apresentam dados controversos. No estudo de Rodrigues (2008), houve diferença significativa entre o repertório de tabagistas e de não tabagistas em F5 “autocontrole da agressividade” e no fator 4 “interação com desconhecidos”, nos quais o grupo de tabagistas apresentou maiores déficits em seus repertórios. Este estudo apontou que tabagistas apresentam mais dificuldades nas habilidades sociais comparados a não tabagistas. As áreas mais deficitárias estão relacionadas a mais dificuldade de interagir com desconhecidos, mal-estar em ser o centro das atenções, a dificuldades com sentimentos e reações de agressividade derivados de situações sociais. Ainda relacionado ao tabagismo, Sá e Del Prette (2014) mencionaram o envolvimento com nicotina com déficits em receber elogios e administrar críticas dos pais. Por outro lado, Rondina et al. (2015), em um levantamento com 1.126 universitários, referiram que universitários fumantes obtiveram, em média, maiores escores em F1 (enfrentamento com risco) quando comparados a não fumantes. Entre universitários fumantes, foi detectada associação entre maior grau de dependência nicotínica e melhor desempenho em fator F1 (RONDINA et al., 2013). Contudo, é possível que jovens universitários tenham mais habilidade social em razão do processo de escolarização e de desenvolvimento determinado pelo meio acadêmico, o que dificultaria a comparação entre seu repertório e o de amostras de participantes com outras características (FELICISSIMO et al., 2016).
É possível ainda que a controvérsia entre os resultados dos estudos se deva, em parte, ao fato de que muitos participantes das pesquisas consumam duas ou mais substâncias simultaneamente.
O estudo de Sá e Del Prette (2014), com 47 pacientes de um CAPSad, aponta que, deste total, 46 eram usuários de álcool, 22, de crack, 24, de maconha e 39, de nicotina, tendo muitos apresentado consumo simultâneo de múltiplas substâncias. Os resultados sugerem a associação entre envolvimento com substâncias e facetas específicas das habilidades sociais, mas também indicam a necessidade de novos estudos para identificar com exatidão quais habilidades estão relacionadas à dependência do álcool e quais estão relacionadas a outras substâncias. Os autores destacam como limitação do estudo a ausência da avaliação de influência das habilidades sociais no envolvimento com duas ou mais drogas simultaneamente (SÁ; DEL PRETTE, 2014).
Contudo, ainda há escassez de pesquisas enfocando a relação entre classes específicas de habilidades sociais e o consumo combinado de substâncias. Na pesquisa de Cardoso e Malbergier (2014) com adolescentes, foram avaliadas as associações entre déficits no repertório de habilidades sociais, separando-se o uso de substâncias em quatro categorias (tabaco, álcool, ambos e substâncias ilícitas). Foram verificadas associações do déficit em habilidades como enfrentamento (defender opiniões, defender seus direitos/opiniões, ser influenciado pelos outros e de assertividade) ao consumo de álcool, tabaco, de ambos e também de substâncias ilícitas. O relato de uso de substâncias lícitas no mês anterior à entrevista esteve associado a mais déficits em habilidades sociais do que ao uso delas separadamente. O consumo separadamente, por sua vez, esteve associado a menor déficit do que entre aqueles usuários que consumiram substâncias ilícitas. O estudo infere que quanto mais déficits em habilidades sociais o adolescente apresenta, maior a vulnerabilidade ao consumo combinado de substâncias ou substâncias mais “pesadas” (CARDOSO; MALBERGIER, 2014).
É possível que haja relação entre cada fator do repertório de habilidades sociais e os diferentes tipos de substância, apontando, assim, para a possível influência das habilidades sociais do usuário na escolha do tipo de substância a ser utilizada (SÁ; DEL PRETTE, 2014).
Supõe-se que intervenções que incluam o treinamento em habilidades sociais durante o tratamento da dependência química podem aumentar as chances de sucesso. Contudo, ainda são necessários mais estudos para averiguar com mais exatidão especificamente que habilidades precisam ser treinadas, bem como quais estão intrinsecamente associadas ao envolvimento com determinadas substâncias (SÁ; DEL PRETTE, 2014).
Os resultados da presente pesquisa sugerem a importância da identificação do repertório de habilidades de substâncias psicoativas, uma vez que déficits de habilidades podem contribuir para a continuidade do uso e/ou recaídas, tendo em vista o baixo repertório para lidar com situações de conflito e exposição à SPA. Destaca-se a importância da aplicação de instrumentos de avaliação de habilidades sociais no momento inicial do tratamento, pois podem contribuir no delineamento específico de intervenções e de prevenção para essa população, principalmente em relação ao tratamento baseado no treinamento de habilidades sociais.
Cabe aqui atentar para as limitações do presente estudo, como o reduzido tamanho amostral, o que dificulta a generalização dos resultados. Sugere-se que pesquisas futuras continuem investigando o tema, correlacionando as habilidades sociais e os tipos de substâncias, gênero, tipos de tratamento e as instituições que oferecem o tratamento, bem como outras formas de coleta de dados, como observação e/ou role-playing.