versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.25 no.3 Rio de Janeiro mar. 2020 Epub 06-Mar-2020
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232020253.16362018
O escorpionismo e o ofidismo são os principais acidentes por animais peçonhentos e estes eventos são considerados doenças negligenciadas pela Organização Mundial de Saúde1, especialmente em países tropicais e subtropicais e/ou em processo de desenvolvimento econômico2-6.
O escorpionismo destaca-se com mais de 1 milhão de casos reportados por ano. Oriente Médio, América do Sul, Índia, África e México figuram como áreas endêmicas de escorpiões perigosos à saúde humana6,7. No Brasil (com 90.922 casos notificados em 2016)8 as espécies Tityus stigmurus, Tityus serrulatus, Tityus bahiensis e Tityus cambridgei são as principais causadoras de acidentes por escorpiões7. O ofidismo, por sua vez, tem alta prevalência nas Américas Central e do Sul, e no Brasil, no ano de 2016, foram notificados mais de 26.000 casos2,4,8,9. A maioria dos acidentes ofídicos brasileiros são por picadas de serpentes do gênero Bothrops (aproximadamente 90% dos casos notificados) e Crotalus10.
Ofidismo e escorpionismo são condições que podem levar a complicações clínicas importantes, inclusive à morte2,11-16. As manifestações locais são as mais comuns, destacando-se dor, eritema e edema no local da picada. Mas as altas quantidades de venenos destes animais podem levar a manifestações sistêmicas graves como disfunção respiratória, renal, vascular, cardíaca e/ou neurológica4,7,11,17-20, sendo as crianças a população mais susceptível às complicações pós-envenenamento21-23.
O manejo de pacientes vítimas de escorpionismo ou de ofidismo é feito com suporte básico das condições vitais, associado ao tratamento sintomático e à soroterapia específica, quando necessária. A soroterapia antiescorpiônica só é indicada em casos de classificação “moderada”, em crianças com idade menor que 10 anos e em todos os casos classificados como graves24. Na falta do soro antiescorpiônico pode ser utilizado o soro antiaracnídeo (que inclui anticorpos contra o veneno do Tityus)25. No ofidismo o tratamento varia de acordo com o gênero da serpente, estando disponíveis no Brasil os soros: botrópico (para acidentes com serpentes do gênero Bothrops, como jararaca), crotálico (para picadas de Crotalus) e elapídico (para picadas pelas serpentes do gênero Micrurus, popularmente conhecidas como cobras corais). Existem ainda soros associados (botrópico-laquético e botrópico-crotálico) usados para situações em que o tipo de serpente é desconhecido, sendo o soro botrópico-laquético utilizado especialmente em acidentes que se suspeita que a serpente envolvida seja do gênero Lachesis (conhecida mais comumente como surucucu)25-27.
Em 2016, o Ministério da Saúde brasileiro divulgou nota com orientações sobre a necessidade de adequações nas doses de antivenenos indicadas para tratamento por jararacas e escorpiões na tentativa de reduzir o desperdício, sem prejuízo para as vítimas de acidentes por animais peçonhentos28. No entanto, diversos estudos têm demonstrado baixa adesão de profissionais de saúde às recomendações de diretrizes clínicas em diversas áreas29,30. O presente estudo tem como objetivo caracterizar o perfil epidemiológico de usuários vítimas de acidentes escorpiônicos e ofídicos e avaliar a adequação das prescrições de soros antivenenos no serviço de emergência de um hospital regional.
Estudo transversal onde foram analisados dados secundários de acidentes por animais peçonhentos através do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) no município de Vitória da Conquista, Bahia.
O Hospital Geral de Vitória da Conquista (HGVC) é serviço de referência em acidentes com animais peçonhentos para a cidade de Vitória da Conquista e região circunvizinha (regiões de escorpiões do gênero Tityus e de serpentes do gênero Bothrops e Crotalus), atendendo diariamente vítimas de escorpionismo e ofidismo. Apenas o HGVC recebe os soros em Vitória da Conquista e quando os pacientes recorrem a outros serviços da cidade estes são transferidos para o HGVC ou os soros são dispensados e transportados para estes serviços mediante notificação de agravo.
Os dados foram coletados das fichas de notificações de acidentes por animais peçonhentos lançadas pelo setor de Vigilância Epidemiológica do HGVC no SINAN. Foram incluídas todas as notificações de acidentes por escorpião ou por serpente no período compreendido entre julho de 2016 e junho de 2017. Para a análise de adequação das prescrições dos soros antivenenos foram excluídas as notificações em que não havia sido descrito o tipo de acidente (ausência da identificação do animal peçonhento causador do acidente na ficha de notificação), classificação de gravidade, presença ou ausência de soroterapia.
Os critérios de adequação de uso dos soros foram construídos de acordo com a classificação de gravidade destes acidentes segundo informações dos protocolos de soroterapia brasileiros contidos no Manual de Diagnóstico e Tratamento de Acidentes por Animais Peçonhentos (2001)26 e no Guia de Vigilância em Saúde (2014)25, atualizados pela Nota Informativa da Coordenação-Geral de Doenças Transmissíveis (2016)28. Os dados sobre tipo de acidente, classificação de gravidade, presença ou ausência de soroterapia, número de ampolas prescritas e tipo(s) de soro(s) utilizados foram confrontados com os critérios de adequação. Dessa forma, as soroterapias descritas foram classificadas como adequadas ou inadequadas. As inadequações observadas foram classificadas em: “uso de ampolas superior ao recomendado”, “uso de ampolas inferior ao recomendado” e “uso de tipo de soro inadequado”.
Os dados obtidos foram tabulados em banco de dados no Microsoft® Office Excel 2010 e analisados através do software IBM SPSS Statistics® 20.0. Foram calculadas as medidas de tendência central, dispersão e frequências associadas às variáveis pertinentes, como dados individuais (sexo, idade, município de residência, raça/cor, escolaridade), dados epidemiológicos (zona de ocorrência, localidade de ocorrência do acidente, tempo decorrido entre a picada e o atendimento), dados clínicos (verificação da presença ou não de manifestações locais e sistêmicas, bem como quais apresentadas em caso de presença e classificação da gravidade do acidente) e dados sobre a terapêutica utilizada (presença ou ausência de soroterapia, número de ampolas prescritas e tipo(s) de soro(s) utilizados). As associações entre variáveis categóricas foram verificadas através do Teste de Qui-quadrado e considerou-se como diferença estatisticamente significativa quando a probabilidade foi menor do que 0,05 (p < 0,05).
Este projeto de pesquisa foi aprovado pela Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Instituto Multidisciplinar em Saúde da Universidade Federal da Bahia.
No período do estudo foram atendidas 293 vítimas de acidentes por animais peçonhentos. Destas, 149 (50,9%) foram homens. A idade variou de 3 meses a 86 anos na época do acidente. Além disso, a faixa etária adulta (entre 20 a 59 anos de idade) correspondeu a 114 (38,9%) acidentes. Em relação a cor da pele, 127 (43,3%) se autorreferiram pardos.
Os resultados relacionados às características sociais mostram que 165 (56,3%) destes pacientes residiam em zona urbana ou periurbana. Em relação à escolaridade das vítimas, foi possível observar que 50 (17%) declararam possuir 3 anos completos de estudo ou menos (Tabela 1).
Tabela 1 Características sociodemográficas das vítimas de acidentes por animais peçonhentos atendidos no município de Vitória da Conquista-BA, no período de julho de 2016 a junho de 2017.
Características | N | % |
---|---|---|
Sexo | ||
Masculino | 149 | 50,9 |
Feminino | 144 | 49,1 |
Faixa etária (anos) | ||
Criança (0 a 10) | 91 | 31 |
Adolescente (11 a 19) | 40 | 13,7 |
Adulto (20 a 59) | 114 | 38,9 |
Idoso (>60) | 48 | 16,4 |
Cor da pele | ||
Branca | 33 | 11,3 |
Amarela | 1 | 0,3 |
Parda | 127 | 43,3 |
Preta | 31 | 10,6 |
Não definida/não declarada | 101 | 34,5 |
Zona de residência | ||
Zona urbana ou periurbana | 165 | 56,3 |
Zona rural | 124 | 42,3 |
Não definida/não declarada | 4 | 1,4 |
Escolaridade (anos completos de estudo) | ||
0 a 3 | 50 | 17 |
4 a 7 | 20 | 6,9 |
8 a 10 | 10 | 3,4 |
> 11 | 12 | 4,1 |
Não se aplica* | 61 | 20,8 |
Ignorado/não informado | 140 | 47,8 |
*crianças < 6 anos de idade.
Sobre o animal peçonhento envolvido nos acidentes notificados, 235 (80,9%) acidentes foram por escorpiões e 58 (19,1%) serpentes. Dos acidentes ofídicos, os mais frequentes foram o botrópico com 41 (70,6%) casos e o crotálico com 12 (20,8%) (Tabela 2).
Tabela 2 Características epidemiológicas acidentes por animais peçonhentos atendidos no município de Vitória da Conquista-BA, no período de julho de 2016 a junho de 2017 (N = 293).
Variáveis | N | % |
---|---|---|
Tipo de acidente | ||
Ofidismo | 58 | 19,9 |
Escorpionismo | 235 | 80,1 |
Tipo de acidente ofídico | ||
Botrópico | 41 | 70,6 |
Crotálico | 12 | 20,8 |
Laquético | 1 | 1,7 |
Elapídico | 1 | 1,7 |
Por serpente não peçonhenta | 1 | 1,7 |
Serpente não identificada | 2 | 3,5 |
Localidade de ocorrência | ||
Vitória da Conquista | 249 | 85 |
Cidades circunvizinhas | 44 | 15 |
Zona de ocorrência em relação ao tipo de acidente | ||
Ofidismo | ||
Zona urbana ou periurbana | 3 | 5,2 |
Zona rural | 55 | 94,8 |
Escorpionismo | ||
Zona urbana ou periurbana | 154 | 65,5 |
Zona rural | 72 | 30,7 |
Não definida/não declarada | 9 | 3,8 |
Tempo decorrido entre a picada e o atendimento (horas) | ||
0 a 1h | 81 | 27,6 |
>1h até 3h | 110 | 37,5 |
> 3h até 6h | 51 | 17,4 |
> 6h até 12h | 21 | 7,2 |
> 12h até 24h | 8 | 2,7 |
> 24h | 7 | 2,4 |
Ignorado | 15 | 5,2 |
Local da picada | ||
Cabeça | 7 | 2,4 |
Braço/antebraço | 20 | 6,8 |
Mão/dedo da mão | 96 | 32,8 |
Tronco | 12 | 4,1 |
Coxa/perna | 32 | 10,9 |
Pé/dedo do pé | 120 | 41,0 |
Ignorado/não relatado | 6 | 2 |
A Figura 1 mostra a descrição do número de acidentes ocorridos em cada mês do período de observação. O período de dezembro de 2016 a março de 2017 foram os de maior incidência em casos de escorpionismo e ofidismo, sendo janeiro de 2017 o mês com maior número de acidentes notificados para estas duas condições (37 e 16 casos, respectivamente).
Figura 1 Distribuição do número de acidentes por animais peçonhentos atendidos no município de Vitória da Conquista -BA, no período de julho de 2016 a junho de 2017
Em relação a localização de ocorrência, os acidentes por animais peçonhentos ocorreram em 21 municípios diferentes da região sudoeste da Bahia, sendo que 249 (85%) foram na cidade de Vitória da Conquista (Tabela 2). Em relação à zona de ocorrência, foi possível observar que 55 (94,8%) acidentes ofídicos ocorreram em zona rural, enquanto 154 (65,5%) acidentes escorpiônicos ocorreram em zona urbana ou periurbana. Constatou-se diferença significativa na distribuição da zona de ocorrência em relação ao tipo de acidente (p < 0,05).
Em 110 (37,5%) dos casos notificados, o atendimento ocorreu mais de uma hora e em até 3 horas após o acidente com o animal. As extremidades pé/dedo do pé, 120 (41%), e mão/dedo da mão, 96 (32,8%), foram os locais de picada mais frequentes (Tabela 2).
Quanto aos sinais e sintomas clínicos, 270 (92,2%) pacientes apresentaram manifestações locais e destes, 268 (99,2%) apresentaram dor local. Em 54 (18,4%) dos casos totais, os pacientes tiveram manifestações sistêmicas. Em relação à gravidade dos acidentes ocorridos, 203 (69,3%) foram classificados como leves, 72 (24,6%) como moderados e 13 (4,4%) como graves (Tabela 3). A gravidade do acidente se mostrou associada a um menor tempo decorrido entre o acidente e o atendimento (p = 0,01). Sobre tratamento, em 200 (68,5%) dos casos foi prescrita soroterapia para estes pacientes. Em relação aos desfechos, 239 (81,6%) dos casos evoluíram com cura (Tabela 3).
Tabela 3 Características clínicas dos acidentes por animais peçonhentos atendidos no município de Vitória da Conquista-BA, no período de julho de 2016 a junho de 2017 (N = 293).
Variáveis | N | % |
---|---|---|
Apresentaram sinais e sintomas locais** | 270 | 92,2 |
Dor | 268 | 99,2 |
Edema | 109 | 40,3 |
Equimose | 12 | 4,4 |
Necrose | 1 | 0,3 |
Apresentaram sinais e sintomas sistêmicos** | 54 | 18,4 |
Neuroparalíticas (ptose palpebral, turvação visual) | 19 | 35,5 |
Hemorrágicas (gengivorragia, outros sangramentos) | 0 | - |
Vagais (vômitos, diarréias) | 32 | 59,2 |
Miolíticas/hemolíticas (mialgia, anemia, urina escura) | 4 | 7,4 |
Renais (oligúria/anúria) | 2 | 3,7 |
Tempo de coagulação*** | ||
Alterado | 8 | 2,7 |
Não alterado | 6 | 2,0 |
Ignorado/não relatado | 283 | 95,3 |
Classificação de gravidade* | ||
Leve | 203 | 69,3 |
Moderado | 72 | 24,6 |
Grave | 13 | 4,4 |
Ignorado | 5 | 1,7 |
Uso de soroterapia* | ||
Sim | 200 | 68,5 |
Não | 92 | 31,5 |
Evolução | ||
Cura | 239 | 81,6 |
Óbito por acidentes por animais peçonhentos | 3 | 1,0 |
Óbito por outras causas | 0 | - |
Ignorada/desconhecida | 51 | 17,4 |
*Variáveis que possuem dados faltantes;
**Tiveram pacientes que relataram mais de um sintoma;
***A variável "tempo de coagulação" não é investigada para todos os casos.
As soroterapias prescritas foram julgadas inadequadas em 172 (59,7%) dos atendimentos. Do total de tratamentos inadequados, o uso de número de ampolas acima do indicado foi mais frequente (124; 72,1%), somando um total de 323 ampolas prescritas a mais do que o recomendado nos protocolos (Tabela 4). Constatou-se diferença significativa na distribuição do tipo de inadequação em relação ao tipo de acidente (p < 0,01). Acidentes ofídicos tiveram mais inadequações do tipo “uso de ampolas inferior ao recomendado” enquanto as inadequações de soroterapia em acidentes escorpiônicos estão mais associadas ao uso de ampolas superior ao recomendado nos protocolos.
Tabela 4 Análise da adequação da soroterapia prescrita em acidentes por animais peçonhentos atendidos em Vitória da Conquista-BA, no período de julho de 2016 a junho de 2017 (N = 288).
Características | N | % |
---|---|---|
Soroterapia | ||
Adequada | 116 | 40,3 |
Inadequada | 172 | 59,7 |
Tipo de inadequação | ||
Uso de ampolas superior ao indicado | 124 | 72,1 |
Uso de ampolas inferior ao indicado | 44 | 25,6 |
Tipo de soro inadequado | 4 | 2,3 |
Total de ampolas prescritas a mais que o indicado nos protocolos | 323 | - |
Total de ampolas prescritas a menos que o indicado | 91 | - |
Os resultados apresentados mostraram que a prescrição inapropriada de soros antivenenos ocorreu na maioria dos usuários atendidos (59,7%). Tanto a subdose quanto as sobredoses prescritas têm alta chance de eventos adversos. O uso racional de medicamentos deve abranger o estabelecimento da real necessidade de uso do produto, assim como formas farmacêuticas, doses e período de duração do tratamento adequados31.
Apesar da ampla divulgação de diretrizes clínicas, alguns estudos apontam problemas de pouca ou nenhuma adesão a protocolos de tratamento nas mais diversas áreas29,30. Outros estudos mostram que para entender a variação de prescrições entre prescritores é preciso conhecer os fatores subjacentes à tomada de decisão destes profissionais32-34. A alta rotatividade de médicos da unidade, a incipiência de materiais de consulta, eventuais falhas na divulgação dos protocolos e a ausência de capacitações regulares sobre diagnóstico e tratamento dos acidentes por animais peçonhentos podem ser citadas como fatores que podem influenciar essas prescrições no hospital de estudo. Além disso, a Nota Informativa do Ministério da Saúde sobre a abordagem ao tratamento em casos de acidentes por serpentes do gênero Bothrops e por escorpiões28, em situação de escassez de antivenenos, foi publicada em período muito próximo ao período de observação do estudo.
É preciso lembrar que a prescrição médica é um documento complexo que orienta sobre o plano terapêutico para cada paciente. No processo de medicação as responsabilidades devem ser compartilhadas e a tomada de decisão apoiada pelas demais áreas da saúde34. A efetiva inserção de uma equipe multiprofissional de urgência/emergência no atendimento a vítimas por animais peçonhentos poderia ser uma medida para diminuir as inadequações apontadas nos nossos dados, uma vez que vários trabalhos mostram que profissionais, como farmacêuticos e enfermeiros podem atuar de maneira colaborativa ao prescritores neste sentido35-37.
Em estudo realizado na Austrália que avaliou o impacto da atuação de farmacêuticos clínicos na emergência de um hospital de médio porte demonstrou que estes profissionais contribuíram com revisão das prescrições médicas, intervenções medicamentosas e orientações da equipe sobre medicamentos, ações estas que poderiam diminuir a prescrição e a administração inadequada de soros antivenenos e demais terapias utilizadas na unidade37. Revisão sistemática sobre a atuação destes profissionais também demonstrou estas vantagens e, adicionalmente, concluiu que havia redução de custos e desperdícios hospitalares associada a esta atuação36.
Observou-se que dentre as inadequações encontradas no presente estudo, a mais frequente foi o uso de número de ampolas superior ao recomendado pelos protocolos nacionais (72,1% das inadequações foram classificadas em sobredose). A sobredose de medicamentos pode expor pacientes às reações adversas decorrentes do uso destes soros - reações de caráter anafilático ou anafilactoide, precoces ou tardias como a Doença do Soro38. Além disso, há registros de crises recorrentes de desabastecimento de soros antivenenos alertados pelo Ministério da Saúde seja por adequação e reformas dos laboratórios que os produzem, seja por diminuição da produção ou escassez da matéria-prima28. Desta forma, o desperdício de soros antiofídicos e antiescorpiônicos (observada na soma de 323 ampolas prescritas a mais) pode contribuir para a escassez destes medicamentos.
Em contrapartida, constatou-se neste estudo que a soroterapia utilizada para ofidismo está associada significativamente às inadequações do tipo “uso de ampolas inferior ao recomendado”. É importante ressaltar que o fato de haver períodos de escassez de soros antiofídicos no tempo de observação na instituição pode ter colaborado com prescrições de número de ampolas inferior ao indicado nas diretrizes. Ainda assim destaca-se que a subdose é um dos problemas relacionados a medicamentos que pode interferir na efetividade da terapêutica e, por consequência, no desfecho clínico destes pacientes39.
As características sociodemográficas da população estudada são semelhantes às de um estudo anterior, realizado em São Paulo que mostrou uma maior frequência vítimas de ofidismo entre homens, adultos em idade funcional ativa, de baixo nível de escolaridade e residentes em área rural10. Outros estudos realizados em Goiás40, Rio Grande do Norte41, Santa Catarina42, Minas Gerais43 e Amazonas44 também obtiveram perfis das vítimas de acidentes por animais peçonhentos similares a esse, assinalando a semelhança destas características nas diferentes regiões brasileiras.
Nossos resultados mostram grande variabilidade etária dos usuários e que todas as faixas etárias estão susceptíveis a estes acidentes. Outros estudos que analisam o perfil sociodemográfico de vítimas destes acidentes também evidenciaram que a maioria delas se encontrava na faixa etária adulta16,25,26. Este dado pode ser justificado pelo fato deste grupo etário conter os trabalhadores ativos, em especial trabalhadores rurais, com maior chance de encontrar animais peçonhentos durante sua rotina de trabalho26.
A sazonalidade dos acidentes por animais peçonhentos nos meses que compreendem o verão foi demonstrada nos dados ora apresentados. Este período de maior incidência de acidentes coincide com os meses mais chuvosos, principalmente aqueles que compreendem o verão, resultado similar ao encontrado em diversos estudos16,25,40,42,45-48. Em revisão sistemática sobre as características clínicas e epidemiológicas do escorpionismo, foi registrada uma relação entre acidentes por escorpiões e valores de precipitação pluvial superiores a 30 mm/mês7. Este fenômeno pode ser explicado pelo fato de que uma vez que a chuva alaga os abrigos de escorpiões, força-os a procurar novos refúgios e transitar pelos ambientes que compartilhamos7,49. De forma semelhante, nos meses mais quentes e úmidos o aumento de atividade de trabalhadores rurais os expõem a contato com serpentes25,26. Além disso, maiores temperaturas favorecem o acasalamento e reprodução de escorpiões, cobras e aranhas3,44,47,50.
Também foi possível observar que a maioria dos acidentes por animais peçonhentos são escorpiônicos e dentre os acidentes ofídicos, o botrópico (causado por jararacas) foi o mais prevalente (70,6%). Estas frequências são semelhantes a outros estudos epidemiológicos, uma vez que as serpentes do gênero Bothrops têm vasta distribuição geográfica no Brasil, são comuns em vários ecossistemas e tendem a reagir agressivamente quando se sentem ameaçadas9,45,46.
Houve diferença estaticamente significante da zona de ocorrência entre ofidismo e escorpionismo, sendo o primeiro mais prevalente em zona rural e o segundo em zona urbana/perirurbana. A zona rural foi a área de maior ocorrência de acidentes ofídicos (94,8%) visto que as atividades rurais e de caça expõem trabalhadores ao contato com serpentes43,51. Os acidentes escorpiônicos, por sua vez, ocorreram em sua maioria na zona urbana/periurbana (65,5%), como já demonstrado em outros estudos3,52 e deve-se ao fato do ambiente urbano propiciar condições favoráveis para abrigo e proliferação de escorpiões (maiores temperaturas, umidade e presença de lixo)7.
Ainda quanto às áreas de ocorrência dos incidentes, foi possível perceber que, durante o período observado, o hospital de estudo recebeu pacientes de 21 cidades diferentes, além de Vitória da Conquista. A diversidade de munícipes é justificada pelo fato desta instituição ser a unidade referência no atendimento de vítimas de acidentes por animais peçonhentos uma vez que a cidade de Vitória da Conquista é região de saúde e referência da macrorregião de 74 cidades vizinhas53 (Tabela 5).
Tabela 5 Local de ocorrência dos acidentes por animais peçonhentos atendidos no município de Vitória da Conquista-BA, no período de julho de 2016 a junho de 2017 (N = 293).
Variáveis | Distância (km)* entre a cidade e Vitória da Conquista | Número de acidentes por serpentes | Número de acidentes por escorpiões |
---|---|---|---|
Vitória da Conquista | - | 29 | 219 |
Cidades circunvizinhas | |||
Anagé | 67,3 | 5 | 3 |
Barra da Estiva | 203 | 2 | - |
Barra do Choça | 45,4 | 1 | 2 |
Bom Jesus da Serra | 116 | 2 | - |
Brumado | 153 | 1 | - |
Caetanos | 93 | 3 | 2 |
Caraibas | 96,7 | 1 | 1 |
Condeúba | 155 | 1 | 1 |
Encruzilhada | 92,5 | 1 | - |
Igaporã | 297 | 1 | - |
Iguaí | 130 | - | 1 |
Itambé | 50,4 | - | 1 |
Itororó | 124 | 1 | - |
Ituaçu | 184 | 3 | - |
Maetinga | 115 | 1 | 1 |
Mirante | 160 | 2 | - |
Piripá | 115 | - | 2 |
Planalto | 68 | 1 | - |
Poções | 89,3 | 1 | 1 |
Ribeirão do Largo | 94,3 | 1 | 1 |
Tanhaçu | 128 | 1 | - |
Total | - | 58 | 235 |
*Menor distância (km) entre as cidades considerada pelos dados do Mapas do Google (2018).
A maioria dos acidentes registrados durante o período foi leve (69,3%), conforme descrito em outros estudos3,43,46. Isso pode estar associado aos curtos intervalos entre a picada e o atendimento. No presente estudo a maioria das vítimas foram atendidas em tempo de até 3 horas após a picada e, como já reportado em literatura, a rapidez no atendimento está diretamente relacionada à evolução do acidente16,26.
Por outro lado, apesar da predominância de acidentes leves, na maioria dos casos (68,3%) foi prescrita soroterapia e 19,6% dos usuários evoluíram com manifestações sistêmicas (de maior gravidade que as locais). A mortalidade das vítimas por animais peçonhentos foi de 1%. No entanto, não há como inferir uma possível relação entre o tratamento inapropriado e morte, haja visto que não possuímos dados de comorbidades.
Podemos apontar que as possíveis falhas no preenchimento das fichas de notificação e o fato de não haver variável nestas fichas que contivesse possíveis prescrições adicionais de soros antivenenos, como limitações deste estudo.
É importante dizer que estes dados demonstram a relevância desta causa de morbimortalidade da população de Vitória da Conquista e região e a necessidade que sejam construídas políticas públicas direcionadas a diminuição dos desfechos negativos a partir destes acidentes. Adicionalmente, diante dos resultados de alta frequência de prescrições inadequadas de soros aqui apresentados e discutidos fica evidente a necessidade de que a instituição construa estratégias de forma a subsidiar medidas que assegurem o uso racional deste insumo e controle de seu desperdício.
A inserção da equipe multiprofissional em saúde, em especial de farmacêutico clínico, na unidade de urgência e emergência pode atuar na revisão das prescrições médicas, intervenções relacionadas aos soros antivenenos e orientação da equipe sobre o uso destes medicamentos - medidas estas que podem contribuir de maneira significativa na diminuição destas inadequações.