versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.40 no.2 São Paulo abr./jun. 2018 Epub 04-Jun-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-3871
O transplante renal é o tratamento de escolha para a maioria dos pacientes com doença renal crônica (DRC),1,2,3 conferindo melhor sobrevida e qualidade de vida em longo prazo quando comparado a pacientes em tratamento dialítico.4,5,6,7 Com esses benefícios evidentes, a sua importância no cenário mundial é crescente, havendo incentivos e investimentos nessa área.8,9
O programa de transplantes de órgãos brasileiro, um dos mais importantes programas públicos do mundo, realizou mais de 5000 transplantes renais em 2015, posicionando o Brasil como o segundo país em número absoluto de transplantes nesse ano.10 A sua ascensão é progressiva desde 2006, porém com uma taxa de transplantes renais estacionada desde 2015, principalmente por causa da queda de transplantes com doador falecido.11 Outros valores também merecem atenção, como o número de pacientes em lista de espera, que ainda supera em torno de 50% do total de transplantes realizados no país em 2015.11
O serviço de transplante renal do HC da Faculdade de Medicina de Botucatu teve início em 1987, com aumento progressivo na última década, culminando em 600 transplantes no ano de 2011,12 até atingir o marco de 1000 transplantes em 2016.
O progresso do transplante renal deve-se a inúmeros fatores, incluindo a própria importância do transplante como alternativa de tratamento para pacientes com DRC, disponibilidade do tratamento como resultado de melhor manutenção de potenciais doadores, consentimento familiar11 e acesso ao Sistema Único de Saúde por todos no país,11 além de avanços em técnicas cirúrgicas nos últimos 50 anos, melhor conhecimento sobre terapia imunossupressora utilizada e introdução de novos agentes imunossupressores.9
Observou-se também algumas mudanças no perfil de doadores e receptores, assim como uma adaptação dos serviços em relação a essas mudanças,8,13 com manejo das comorbidades e do envelhecimento dessa população, e pela contribuição dos novos adventos científicos, incluindo quebra de barreira imunológica e profilaxia viral.9
O objetivo do presente estudo foi avaliar os 1000 transplantes renais realizados no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu, da Universidade Estadual Paulista (UNESP), subdividindo os pacientes em diferentes períodos, de acordo com a imunossupressão vigente em cada momento, e avaliar as diferenças em relação à sobrevida do enxerto e do paciente.
Foi feita análise da coorte retrospectiva de todos os transplantes renais realizados no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu entre 17/06/87, quando foi realizado o primeiro transplante renal do HC UNESP, a 31/07/2016, totalizando até então um número de 1046 transplantes. Foram desconsiderados os pacientes menores de 18 anos. Os pacientes foram divididos de acordo com o esquema de imunossupressão predominante utilizado em quatro diferentes períodos:
1) 1987 a 2000: combinação de ciclosporina com antimetabólico predominante azatioprina. Nessa época não se utilizava terapia de indução.
2) 2001 a 2006: combinação de ciclosporina com antimetabólico predominante micofenolato. Nesse período passou-se a usar a terapia de indução, com administração de basiliximab, a droga de escolha para o grupo considerado de alto risco imunológico: retransplantes, crianças, raça negra e aqueles com painel > 50%.
3) 2007 a 2014: combinação de tacrolimo com antimetabólico. A terapia de indução foi utilizada na maioria dos casos com basiliximab, e com timoglobulina para pacientes com painel > 50%. Não foi utilizada terapia de indução em transplantes com doador vivo idêntico ou haploidêntico.
4) 2015 a 2016: combinação de tacrolimo com antimetabólico. Aumento do uso da combinação de tacrolimos com inibidores da mTOR. Uso de terapia de indução em todos os casos com basiliximab ou timoglobulina nos pacientes com painel > 30%. Não foi utilizada terapia de indução apenas nos doadores vivo idênticos.
A avaliação teve como base os dados demográficos do receptor, tipo de diálise realizada pré-transplante (hemodiálise, peritoneal ou esquema conservador), tempo em diálise, doença de base, tipo de doador (vivo ou falecido). No caso de doador falecido, foram levantadas a causa morte e idade do doador. Também foi verificado o tempo total de isquemia fria.
Foram levantados os dados da imunossupressão utilizada no momento do transplante, considerando as combinações: antimetabólico; ciclosporina com antimetabólico; tacrolimo com antimetabólico e tacrolimo com inibidores da mTOR (imTOR). Todos os esquemas foram associados com prednisona. Considerou-se para o antimetabólico a azatioprina ou o micofenolato. Para os inibidores da mTOR, o everolimo ou o sirolimo.
Para a terapia de indução, considerou-se a não utilização ou utilização de basiliximab ou timoglobulina. A dose utilizada do basiliximab foi de 20 mg endovenoso no dia do transplante (D0) durante o intraoperatório e uma segunda dose de 20 mg no D4. Para a timoglobulina, utilizou-se a dose total de 4,5 mg/kg.
Todos os órgãos foram preservados na solução Eurocollins e não foram utilizadas máquinas de perfusão.
Foram avaliados para cada paciente o número de episódios de rejeição aguda nos primeiros 6 meses, a incidência de infecções por citomegalovírus, o número de complicações urológicas e a incidência de diabetes após o transplante.
Não foram realizadas biópsias protocolares, cuja indicação foi guiada pela apresentação clínica, dentre as principais: não funcionamento do enxerto nos primeiros 7-10 dias após o transplante renal, piora da função renal sem fator identificável, proteinúria > 1g, suspeita clínica de infecção viral (citomegalovírus, poliomavírus).
Para as complicações urológicas, consideraram-se as tromboses arterial e venosa, a estenose de artéria renal, a linfocele, fistula urinária e hidronefrose.
Para o citomegalovírus (CMV), considerou-se doença nos primeiros dois períodos pela ausência de método diagnóstico de infecção por PCR ou antigenemia. Nesse período, o diagnóstico foi feito por biópsia do órgão afetado com estudo de imuno-histoquímica após suspeita clínica.
O diagnóstico de infecção somente foi possível no serviço após a padronização do teste de antigenemia pp65 no ano de 2012. Considerou-se infecção por CMV a antigenemia positiva maior que 2 células.
Assim, o diagnóstico de doença por CMV foi realizado no primeiro e segundo períodos por biópsia do órgão afetado, mostrando inclusão viral com confirmação por imuno-histoquímica. A partir do terceiro período (2012), o diagnóstico de infecção por CMV foi realizado por antigenemia positiva, e o diagnóstico de doença manteve-se por biópsia do órgão afetado.
A ocorrência de retardo de função do enxerto foi avaliada em doadores falecidos e considerada como a necessidade de hemodiálise na primeira semana.
Foram levantados os óbitos e as perdas de enxerto considerando o óbito para a população geral (doador vivo e falecido).
Foi realizado o teste de normalidade Kolmogorov-Smirnov (KS), a fim de separar as variáveis contínuas em paramétricas e não paramétricas. A análise das médias das variáveis com distribuição normal nos quatro grupos em estudo foi feita através da análise de variância (ANOVA de uma via), assumindo-se variâncias iguais entre os grupos. Para a subanálise dos grupos, utilizou-se o pós-teste de Bonferroni. Para as variáveis não paramétricas, foi utilizada a análise de variância de Kruskal-Wallis. Para a comparação entre subgrupos, foi utilizado o pós-teste de Dunn. Para as análises das variáveis categóricas, foi utilizado o teste qui-quadrado. As curvas de sobrevida foram construídas pelo método de Kaplan-Maier e comparadas pelo teste log-rank. Para a sobrevida do enxerto, o óbito foi considerado causa de perda. Foi realizada análise multivariada de Cox, tendo como desfecho a sobrevida do enxerto. Foi utilizado o método de seleção de Forward Stepwise. Foram consideradas as variáveis mais significativas no modelo univariado e incluídas no modelo: idade do receptor, doença de base, painel de reatividade, tipo de doador (vivo ou falecido), idade do doador, tempo de isquemia fria, retardo de função do enxerto, rejeição, citomegalovírus, complicações urológicas, diabetes após o transplante, terapia de indução e imunossupressão de base.
Os resultados foram considerados estatisticamente significativos quando p < 0,05. Todas as análises foram realizadas com o programa estatístico SPSS® versão 20.
Foram analisados 1046 transplantes renais - 388 com doador vivo (37%) e 658 (63%) com doador falecido. Houve aumento progressivo no número de transplantes realizados no decorrer dos períodos, e a taxa de transplantes por mês, do primeiro ao quarto período, foi de: 0,95; 1,4; 6,1 e 10,2 transplantes por mês, respectivamente (Tabela 1).
Tabela 1 Número de transplantes renais (doador vivo e falecido) por período, tempo total de duração do período e taxas de transplantes por mês
1987-2000 | 2001-2006 | 2007-2014 | 2015-2016 | |
---|---|---|---|---|
Número de transplantes | 157 | 104 | 591 | 194 |
Tempo (meses) | 165 | 73 | 97 | 19 |
Taxa de transplantes | 0,95 | 1,4 | 6,1 | 10,2 |
Taxa de transplantes = (número de transplantes/tempo em meses)
Os resultados mostram predomínio do sexo masculino em todos os períodos (Tabela 2). Houve aumento da idade média do receptor nos últimos dois períodos em comparação aos períodos anteriores. A idade média no quarto período foi de 48±13 anos, e no primeiro período, 36 ± 12 anos, p=0,001. Foi observado um aumento da terapia de hemodiálise pré-transplante e maior taxa de diabéticos nos últimos dois períodos em comparação aos primeiros. O número de diabéticos foi de 6,4% no primeiro período e de 17,6% no último (Tabela 2). Observou-se um aumento progressivo na percentagem de transplantes com doadores falecidos, atingindo 82,4% no último período em comparação com 33,1% no primeiro período, p = 0,001. Para os doadores falecidos, também notamos redução na percentagem de doadores de causa morte por TCE nos últimos dois períodos, bem como aumento na idade média do doador falecido em comparação aos primeiros períodos. A idade média do doador aumentou de 33 ± 12 anos, no primeiro período, para 41 ± 12, no último, p = 0,001. Houve redução do tempo de isquemia fria nos últimos dois períodos, sendo 23 ± 4 hs, no quarto período, em comparação a 32 ± 6 hs, no primeiro, p = 0,001. (Tabela 2).
Tabela 2 Características basais, imunossupressão e desfecho de 1046 transplantes renais divididos por períodos
1987-2000 (A) (n = 157) | 2001-2006 (B) (n = 104) | 2007-2014 (C) (n = 591) | 2015-2016 (D) (n = 194) | p | ||
---|---|---|---|---|---|---|
Sexo masculino | 61,1% | 54,8% | 58,7% | 57,7% | ||
Feminino | 38,9% | 45,2% | 41,3% | 42.3% | ||
Idade (anos) | 36 ± 12 | 39 ± 12 | 46 ± 14(A,B) | 48 ± 13(A,B) | 0,001+ | |
Cor branca (%) | 77,7%(D) | 68,3% | 67,2% | 62,7% | 0,023# | |
Tipo de diálise | Conservador | 1,9% | 9,6% | 6,3% | 3,1% | |
Hemodiálise | 71,3% | 76,9% | 85,8%(A) | 87,6%(A) | 0,001# | |
Peritoneal | 26,8%(C,D) | 13,5% | 8,0% | 9,3% | ||
Tempo de diálise (meses) | 24 ± 22 | 29 ± 27 | 35 ± 32(A) | 39 ± 37(A,B) | 0,001$ | |
Doença de base | Hipertensão | 19,7% | 17,3% | 21,9% | 22,8% | |
Diabetes | 6,4% | 6,7% | 20,7%(A,B) | 17,6%(A) | ||
Glomerulonefrite | 44,6%(C,D) | 37,5%(C,D) | 20,2% | 20,2% | 0,001# | |
Indeterminada | 22,3% | 25,0% | 24,9% | 28,5% | ||
Urológica | 4,5% | 6,7% | 3,6% | 3,1% | ||
Outras | 2,5% | 6,7% | 8,8% | 7,8% | ||
Painel de Reatividade classe I (%) | 22 ± 14 | 6 ± 12 | 11 ± 24 | 15 ± 29 | 0,06# | |
Retransplante (%) | 3,2% | 2,9% | 5,8% | 4,1% | 0, 37# | |
Doador falecido | 33,1% | 26,0% | 70,9%(A,B) | 82,4%(A,B,C) | 0,001# | |
Causa morte | TCE | 66,7%(B,CD) | 32,0% | 40,4% | 40,3% | |
AVE | 27,5% | 60,0%(A) | 50,8%(A) | 45,9% | 0,009# | |
Tumor | 0,0% | 0,0% | 1,8% | 0,6% | ||
Outros | 5,9% | 8,0% | 7,1% | 13,2% | ||
Idade do doador (anos) | 33 ± 12 | 36 ± 11 | 41 ± 12(A,B) | 41 ± 12(A,B) | 0,001+ | |
Tempo de isquemia fria (horas) | 32 ± 6(B,C,D) | 28 ± 5(C,D) | 23 ± 5 | 23 ± 4 | 0,001$ | |
Indução | Ausente | 98,7%(B,C,D) | 60,6%(C,D) | 17,6%(D) | 1,6% | |
Basiliximab | 1,3% | 39,4%(A) | 64,0%(A,B,D) | 31,6%(A) | 0,001# | |
Timoglobulina | 0,0% | 0,0% | 18,4% | 66,8%(C) | ||
Imunossupressão | antiMET | 28,7%(B,C,D) | 14,4%(C,D) | 4,6% | 1,6% | |
CSA + antiMET | 71,3%(B,C) | 50,0%(C) | 0,2% | 0,0% | 0,001# | |
Tac + antiMET | 0,0% | 35,6% | 92,9%(B,D) | 63,2%(B) | ||
Tac + imTOR | 0,0% | 0,0% | 2,4% | 35,2%(C) | ||
Retardo da função do enxerto | 78,8%(D) | 84%(D) | 61,6% | 54,3% | 0,002# | |
Rejeição | 36,3%(C,D) | 37,5%(C,D) | 22,0%(D) | 6,1% | 0,001# | |
Citomegalovírus | 5,7% | 14,4% | 21,8%(A) | 42,5%(A,B,C) | 0,001# | |
Complicações urológicas | 26,1%(C) | 25,0%(C) | 10,7% | 14,8% | 0,001# | |
Diabetes após o transplante | 13,4%(C) | 15,4%(C) | 4,7% | 7,1% | 0,001# | |
Tempo de seguimento (meses) | 109,9 ± 98(C,D) | 99,7 ± 62(C,D) | 44,2 ± 29(D) | 8,7 ± 6 | 0,001# | |
Perda do enxerto | 74,5%(B,C,D) | 45,2%(C,D) | 26,9%(D) | 15,5% | 0,001# | |
Óbito | 36,9%(C,D) | 33,7%(C,D) | 17,5%(D) | 8,9% | 0,009# |
Legenda: antiMET: antimetabólico (azatioprina ou micofenolato); CSA: ciclosporina; Tac: tacrolimo; imTOR: inibidores da mTOR (sirolimo ou everolimo). Estatística: $: qui-quadrado;
Observamos um aumento da terapia de indução nos dois últimos períodos. O basiliximab foi predominante no terceiro período, e a timoglobulina, no quarto. No primeiro e segundo períodos predominou a ausência de terapia de indução.
No primeiro período, a imunossupressão predominante foi ciclosporina associada a antimetabólico e prednisona em 71,3% do casos, sendo essa imunossupressão também predominante no segundo período, em 50,0% dos casos. No terceiro e quarto períodos, a imunossupressão predominante foi tacrolimo associado a antimetabólico e prednisona, respectivamente, em 92,9% e 63,2% (Tabela 2).
Houve redução na percentagem de retardo de função do enxerto nos dois últimos períodos em comparação aos primeiros períodos: 54,3% no quarto período em comparação a 78,8% no primeiro período, p = 0,002. Observamos também redução das taxas de rejeição aguda progressiva nos períodos: 6,1% no último período em comparação a 36,3% no primeiro, p = 0,001. As complicações urológicas e o diabetes após o transplante foram mais frequentes nos primeiros dois períodos em comparação aos últimos períodos. As taxas de infecção por citomegalovírus foram maiores nos dois últimos períodos em comparação aos primeiros (Tabela 2).
Dividindo as infecções por citomegalovírus, de acordo com o regime de imunossupressão e terapia de indução, observamos maior frequência de CMV com a realização de terapia de indução. Sendo respectivamente para não indução, basiliximab e timoglobulina: 9,3%; 23% e 40,2%, p = 0,001 (Tabela 3). Entretanto, o uso de terapia de indução depende também do tipo de imunossupressão concomitante utilizada, que é maior no regime tacrolimo com antimetabólico e menor no grupo tacrolimo com imTOR (Tabela 3). No regime de tacrolimo com antimetabólico, o uso de terapia de indução associou-se a maior taxa de CMV, sendo respectivamente para os grupos indução ausente, basiliximabe e timoglobulina as frequências de: 10,8%, 24% e 52,1% respectivamente, p = 0,001. No regime de tacrolimo com imTOR, o uso de terapia de indução não se associou a maior taxa de infecção por CMV (Tabela 3).
Tabela 3 Incidência de citomegalovírus (infecção e doença) nos quatro períodos pelos diferentes regimes de imunossupressão e pela terapia de indução
Regime de imunossupressão | Terapia de indução | ||||
---|---|---|---|---|---|
antiMET | 6,9% | 0,0% | 6,7% | 0.63$ | |
CSA + antiMET | 9,7% | 9,5% | 9,7% | 0.97$ | |
Tac + antiMET | 10,8% | 24,0%(A,C) | 52,1%(A,B,C) | 29% | 0.001$ |
Tac + imTOR | 17,4% | 5,7% | 9,2% | 0.10$ | |
Total por terapia de indução | 9,3% | 23,0%(A,C) | 40,2%(A,B,C) | 22,3% | 0.001$ |
Legenda: antiMET: antimetabólico (azatioprina ou micofenolato); CSA: ciclosporina; Tac: tacrolimo; imTOR: inibidores da mTOR (sirolimo ou everolimo). Estatística: $: qui-quadrado;
A sobrevida do enxerto em 12, 24 e 36 meses foi, respectivamente, nos períodos: 73,3%, 70,1% e 65,6% no primeiro período; 79,8%, 78,8% e 75,9% no segundo período, 83,9%, 81,3% e 77,6% no terceiro período; e 82% em 12 meses no quarto período. Houve melhor sobrevida nos dois últimos períodos em comparação aos dois primeiros, p = 0,003 (Figura 1).
A sobrevida do paciente em 12, 24 e 36 meses foi respectivamente nos períodos: 86,9%, 85,7% e 84,9% no primeiro período; 84,1%, 84,1% e 83,1% no segundo período, 89,3%, 87,4% e 84,7% no terceiro período e 89,1% em 12 meses no quarto período. Não houve diferenças na sobrevida do paciente nos períodos, p = 0,77 (Figura 2).
A análise multivariada de Cox de fatores de risco associados a perda do enxerto mostrou que foram fatores independentes: o valor de painel de reatividade, a maior idade do doador, maior tempo de isquemia fria, a presença de complicações urológicas e infecção por CMV. Foram fatores de proteção o uso de terapia de indução com basiliximab ou timoglobulina (Tabela 4).
Tabela 4 Análise multivariada de Cox de fatores associados a pior sobrevida do enxerto
OR | 95,0% CI for OR | p | ||
---|---|---|---|---|
Lower | Upper | |||
Painel | 1,012 | 1,002 | 1,022 | ,015 |
Idade do doador (anos) | 1,026 | 1,011 | 1,042 | ,001 |
Tempo isquemia Fria (hs) | 1,068 | 1,029 | 1,108 | ,000 |
Indução | ,006 | |||
Indução: Basiliximab | 0,429 | 0,212 | 0,868 | ,019 |
Indução: Timoglobulina | 0,265 | 0,116 | 0,609 | ,002 |
Citomegalovírus | 1,734 | 1,089 | 2,761 | ,020 |
Complicações urológicas | 2,184 | 1,322 | 3,609 | ,002 |
Variáveis incluídas no modelo e removidas da equação: idade do receptor; tipo de doador; doença de base; imunossupressão, rejeição, retardo de função do enxerto e diabetes após transplante.
Este estudo é uma continuação de um trabalho prévio que avaliou 600 transplantes renais realizados até 2011 e analisou as diferenças entre três períodos, subdividos de acordo com a imunossupressão. Constatou-se uma melhora da sobrevida nos períodos mais recentes, atribuída a uma melhora da terapia imunossupressora e experiência do serviço.12
Ao completar 1000 transplantes renais realizados, surgiu a necessidade de subdividir esses pacientes em mais um período, uma vez que, em 2015, com protocolo novo do serviço, houve aumento do uso de imTOR. Foi observado aumento no número de transplantes/mês de forma progressiva, sendo que a partir de 2013 ultrapassamos a média de mais de 100 transplantes realizados por ano, valor alcançado por menos de 10% dos 125 centros atuantes do Brasil.11
Esse aumento no número de transplantes deve-se principalmente aos transplantes de doador falecido, que passou de 33,1% no primeiro período para 82,4% no último período (2015-2016). Diferentes dados foram reportados pelo Registro Brasileiro de Transplantes, de 2016, que evidenciou crescimento constante até 2014 (29,6 por milhão de população-pmp), com discreta queda em 2015 (27,5 pmp), e novamente em 2016 (26,8 pmp), queda essa atribuída aos transplantes com doador falecido (2,8%), enquanto que os transplantes com doador vivo apresentaram sutil crescimento (1,7%).11
A sobrevida do enxerto em 12, 24 e 36 meses foi melhor no último período, e sobrevidas semelhantes são reportadas pelo Registro Brasileiro de Transplantes, de 2015,10 porém taxas ligeiramente maiores são obtidas nos centros americanos e europeus, que reportam taxa de sobrevida do enxerto próximo a 90%14 em 12 meses.
Apesar dos dados apresentados, ou seja, predomínio de transplantes com doador falecido, com redução da causa morte por traumatismo crânio-encefálico e maior idade média do doador, os resultados de sobrevida do enxerto são melhores atualmente, colocando em questionamento a ausência de aumento da sobrevida em longo prazo. Assim, os resultados mostram que atualmente são transplantados pacientes mais idosos, com maior taxa de diabetes e com doadores de diferente perfil, e ainda assim obtendo melhor sobrevida do enxerto.1,8,15
Huang e colaboradores avaliaram uma coorte de 189.944 pacientes submetidos a transplante renal nos Estados Unidos, no período de 2001 a 2013, com o objetivo de comparar a taxa de filtração glomerular (TFG) após um ano de transplante nesses diferentes períodos. Apesar da diferença da TFG desses pacientes ter sido mínima, ressaltou-se as mudanças no perfil do receptor, como envelhecimento, maior painel de reatividade e maior prevalência de diabetes mellitus (DM) ao longo dos anos, somado ao aumento do número de ofertas de órgãos de critério expandido. Em contraponto à piora desse perfil, as mudanças na imunossupressão apresentaram-se como fator independente de melhor TFG.16
O regime de imunossupressão mais potente, bem como maior uso da terapia de indução, levou a uma queda significativa das taxas de rejeição aguda.17,18 Nos períodos 1 e 2, essas taxas eram superiores a 35%, com queda para 22% no terceiro período e 6 % no quarto período - superiores aos dados encontrados na literatura, que variavam em torno de 20% para 10%, atualmente.16,19 Deve ser considerado que o quarto período correspondeu a um menor tempo de seguimento (12 meses) comparado aos outros períodos, fato esse que pode ter influenciado os resultados obtidos.
Na análise multivariada, a variável associada a um melhor desfecho renal foi a terapia de indução (uso de basiliximab ou timoglobulina), como demonstrado previamente em trabalho deste grupo,20 e resultados semelhantes foram encontrados por de Castro et al.21
Por meio da potência da imunossupressão e de melhores métodos diagnósticos, houve aumento da incidência de citomegalovírus (CMV), com progressão exponencial de 5,7% para 14,4%, nos primeiros períodos, e 21,8% e 42,5%, nos últimos períodos. Fato que pode ser explicado pela falta de método diagnóstico mais preciso nos primeiros períodos nesse serviço. O teste de antigenemia pp65 somente foi padronizado no ano de 2012; antes disso, o diagnóstico de doença por CMV era realizado por biópsias de tecidos. No entanto, o aumento da incidência de CMV também é justificada pela terapia imunossupressora mais potente ao longo dos anos, assim como o uso mais frequente de timoglobulina na terapia de indução.22,23
Em contraponto, essa elevada incidência de CMV não é observada quando utilizamos imTOR na imunossupressão. Nossos dados mostram que o uso da timoglobulina como terapia de indução atinge incidência de CMV (infecção e doença) de 40,2%, porém, quando adicionado imTOR na terapia imunossupressora, essa incidência cai para 5,7% apesar do uso da timoglobulina. Trabalhos prévios já demonstraram incidência de CMV reduzida na utilização de imTOR24 devido às suas propriedades antivirais,25 como em estudo de Tedesco-Silva et al.26 A incidência de CMV (infecção/doença) foi menor nos grupos que utilizaram everolimo em comparação com o grupo micofenolato (4,7 vs. 10,8 vs. 37,6%, p < 0,001), corroborando com os dados apresentados, que demonstraram que, apesar da ampla utilização de terapia de indução com timoglobulina, o uso de imTOR parece ser um fator de proteção para infecção por CMV, reduzindo sua incidência.26
A importância da avaliação de CMV deve-se ao fato de ser uma das principais infecções no pós-transplante renal, responsável pelo aumento de morbidade,22 e a sua incidência apareceu como fator independente de pior desfecho renal neste estudo.
Também encontramos como fatores independentes de pior desfecho na sobrevida renal o painel. Conforme já evidenciado na literatura, pacientes sensibilizados têm pior desfecho no transplante do que pacientes não sensibilizados.27 Além disso, a idade do doador foi associada a uma pior evolução, como já encontrado em trabalho prévio deste serviço, que avaliou transplantes renais com doadores em vigência de lesão renal aguda. A idade do doador foi a única característica associada a pior desfecho.28
O progresso no transplante é uma verdade no cenário mundial, e foi a partir desse painel otimista que o serviço de transplante renal do HC da Faculdade de Medicina de Botucatu foi moldado, e esforços têm sido realizados para a melhoria do serviço e incremento nos números de transplantes realizados, com foco principal no desfecho e qualidade de vida dos pacientes.