Compartilhar

Avaliação dos atributos de aceitabilidade e estabilidade do sistema de vigilância da dengue no estado de Goiás, 2011

Avaliação dos atributos de aceitabilidade e estabilidade do sistema de vigilância da dengue no estado de Goiás, 2011

Autores:

Kelli Coelho dos Santos,
João Bosco Siqueira Júnior,
Ana Laura de Sene Amâncio Zara,
Jakeline Ribeiro Barbosa,
Ellen Synthia Fernandes de Oliveira

ARTIGO ORIGINAL

Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde vol.23 no.2 Brasília abr./jun. 2014

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742014000200006

ABSTRACT

OBJECTIVE:

to evaluate the acceptability and stability of the dengue surveillance system in Goiás State, Brazil.

METHODS:

descriptive study based on the Centers for Disease Control and Prevention (CDC) method using a questionnaire applied to professionals involved in dengue surveillance in 2011.

RESULTS:

134 professionals participated in the study, representing 41.5% (102/246) of the municipalities in Goiás. Difficulties in closing severe cases were reported by 34.5% of epidemiological surveillance coordinators, some 70% of participants were unaware of the existence of a contingency plan for dengue outbreaks and 59% responded that all suspected cases should be laboratory confirmed, regardless of the occurrence of epidemics. 75% of respondents reported having no difficulty in inputting data on the Surveillance Information System.

CONCLUSION:

despite the stability of the dengue surveillance routines, the limitations observed indicate the need for system enhancement.

Key words: Dengue; Epidemiological Surveillance; Information Systems; Evaluation Studies

Introdução

No Brasil, a dengue é um importante problema de Saúde Pública, com cerca de quatro milhões de prováveis casos da doença registrados entre 2002 e 2010.1 Apesar de grandes investimentos e esforços envidados pelas autoridades de saúde, a doença ainda permanece com alta incidência, sendo considerada um agravo de difícil controle no país.2

A vigilância e o controle da dengue ocorrem de forma padronizada e descentralizada, em todos os municípios brasileiros. O Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) é a principal fonte para a produção dos indicadores de saúde utilizados nas avaliações de sistemas de vigilância no Brasil.3 , 4 Diante da magnitude e importância da dengue no Brasil, diversos estudos epidemiológicos foram realizados a partir dos dados produzidos pelo sistema de vigilância da doença, permitindo sua caracterização epidemiológica e a projeção de tendências.5 - 7

As mudanças na epidemiologia e o aumento na transmissão da dengue no Brasil, ao final da década de 2000, impuseram novos desafios ao controle e prevenção da doença.1 Diante desse cenário, constantes avaliações do sistema de vigilância da doença no país são fundamentais, garantindo que os recursos da Saúde sejam empregados da melhor maneira possível.8

A avaliação de um sistema de vigilância visa a assegurar que o problema da dengue seja monitorado de maneira apropriada, eficiente e útil no contexto da Saúde Pública.9 , 10 Considerando-se a complexidade do sistema de vigilância da dengue em sua execução, torna-se necessária a avaliação de seu funcionamento sob a perspectiva dos profissionais envolvidos em suas atividades diárias.

Este trabalho teve como objetivo avaliar os atributos de aceitabilidade e estabilidade do sistema de vigilância da dengue no Estado de Goiás, segundo os critérios do Centers for Disease Control and Prevention dos Estados Unidos da América (CDC/USA).8

Métodos

Trata-se de um estudo de avaliação com delineamento descritivo, do tipo de inquérito, realizado com dados primários coletados a partir de um questionário estruturado, aplicado aos profissionais de saúde envolvidos com a vigilância da dengue no estado de Goiás, em 2011.

Goiás está localizado na região central do Brasil, com uma população estimada em 6.080.716 milhões de habitantes no ano do estudo.11 O estado está organizado em cinco macrorregionais de saúde (Centro-Norte; Centro-Oeste; Nordeste; Sudeste; e Sudoeste) e possui um total de 246 municípios.

Um total de 308 profissionais de saúde, representantes dos Núcleos de Vigilância Epidemiológica (NVE), provenientes dos 246 municípios do estado de Goiás, participaram de reuniões para atualização das 'Normas Técnicas de Vigilância Epidemiológica e Sistema de Informação da Dengue', promovidas pela Superintendência de Políticas de Atenção Integral à Saúde e pela Gerência de Vigilância Epidemiológica da Secretaria de Estado da Saúde de Goiás (SES/GO). As reuniões foram realizadas no mês de março de 2011. Antes da entrega do instrumento de coleta - e no decorrer das reuniões -, todos os representantes foram esclarecidos sobre os objetivos da pesquisa e convidados a participar do estudo. Os entrevistadores fizeram a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) aos participantes e mediante sua assinatura, o preenchimento do questionário foi feito pelos próprios entrevistados, durante as reuniões de capacitação.

Foram excluídos do estudo os profissionais que exerciam as funções de agente de saúde, gerente de endemias e técnico em enfermagem, ademais daqueles com função ignorada/outras, que poderiam não apresentar competência técnica suficiente para responder aos itens do questionário sobre dados primários, de caráter misto - incluindo 47 questões objetivas e discursivas -, elaborado conforme as recomendações do CDC/USA8 para avaliação dos atributos de aceitabilidade e estabilidade e de rotinas pré-estabelecidas para a vigilância da dengue.

Foi realizada análise exploratória das variáveis categóricas, para eventuais exclusões ou a correção de valores inconsistentes. Em seguida, os participantes do estudo foram caracterizados de acordo com a macrorregião de saúde onde se localiza seu município, função desempenhada e vínculo empregatício. As informações obtidas foram agrupadas em variáveis categóricas. Após essa caracterização, foi realizada a análise de conteúdo para os atributos de aceitabilidade e estabilidade.

No presente estudo, aceitabilidade (atributo altamente subjetivo) reflete (i) a aceitação de pessoas e instituições em participar do sistema de vigilância em questão, provendo-o de dados precisos, consistentes, completos e oportunos, e (ii) a aceitação daqueles responsáveis por fornecer as informações de forma exata, consistente e regular. Já a estabilidade refere-se à confiança inspirada e à disponibilidade de um sistema de vigilância em Saúde Pública, qual seja, (i) habilidade para coletar, administrar e prover dados corretamente, sem falhas, e (ii) habilidade para ser operacional quando for preciso. Um desempenho estável do sistema é fundamental para viabilizar o processo de vigilância. Efetivamente, ambos os atributos são subjetivos porque dependem da profundidade e qualidade da percepção dos profissionais consultados para sua avaliação.8

A avaliação do atributo de aceitabilidade considerou três variáveis: a primeira, referente à Ficha Individual de Notificação (FIN) e à Ficha Individual de Investigação (FII); a segunda, sobre a definição e encerramento dos casos de dengue; e a terceira variável, a respeito da notificação dos casos de dengue. As categorias estabelecidas para FIN e FII foram: principais dificuldades para digitação (computador indisponível; queda constante de energia; demora na liberação das fichas para digitação; demora na entrega das fichas ao setor de digitação; outra); classificação da FII (adequada; longa; insuficiente); tempo gasto para preenchimento da FII (<20; 20-30; e >30 min); preenchimento das fichas [fácil ou difícil; se difícil, por que (encerramento de casos; dados laboratoriais; atraso no resultado de exames; atraso na definição do diagnóstico médico)]; mudança de Sinan Windows para Sinan-net (agilidade no fluxo de informações; facilidade de compreensão; facilidade de acesso aos dados; facilidade na digitação dos dados, menos variáveis; ficha mais detalhada; outra); e críticas quanto à ficha (nenhuma; completa/abrangente; de fácil preenchimento/adequada; faltam campos para sinais e sintomas; demasiado extensa, demanda muito tempo para seu preenchimento).

As categorias estabelecidas para a definição e encerramento dos casos de dengue foram: entendimento da definição dos casos (diagnóstico diferencial; sintomatologia clara; dificuldades com resultados de exames); encerramento dos casos de dengue (clássico; dengue com complicações; febre hemorrágica da dengue); principais dificuldades no encerramento de caso (atraso nos resultados; referência e contra referência; diagnóstico diferencial; fichas incompletas; outras); e confirmação laboratorial para as seguintes situações,

  • todos os casos suspeitos;

  • casos graves;

  • um em cada dez casos, no período endêmico; e

  • no atendimento às recomendações do Ministério da Saúde (todos os pacientes em período não epidêmico e 10% dos casos em períodos epidêmicos; pacientes de grupos de risco - crianças, idosos, gestantes e pacientes que apresentam patologias associadas, como hipertensão, diabetes, anemia falciforme, etc. - em qualquer período; outros).

Quanto à notificação dos casos de dengue, as variáveis estudadas foram: principais críticas (subnotificação por parte dos profissionais médicos; atraso no resultado do exame; preenchimento incompleto das fichas; não retorno do paciente para coleta e confirmação do caso; nenhuma; outras); e sugestões para melhoria do sistema de vigilância da dengue (educação permanente da equipe e profissionais de saúde; adequação de recursos humanos e infraestrutura; ações preventivas; outras).

Para o atributo de estabilidade, foram considerados seis grupos de variáveis: fluxo de recebimento de resultados; exames laboratoriais; realização de busca ativa; investigação dos casos suspeitos; repasse de informações; e plano de contingência.

As variáveis referentes ao fluxo de recebimento de resultados foram: tempo estabelecido para o município enviar os dados à Secretaria de Estado da Saúde de Goiás - SES/GO - (a cada mês; a cada 15 dias; a cada semana; a cada dia; não sabe); forma de envio de dados à SES/GO (e-mail; internet; malote; mais de uma forma de envio); tempo de atraso no envio de dados (1-3; 4-7; >7 dias); motivo do atraso no envio de dados à SES/GO (dificuldade em coletar informações; dificuldade em investigar casos; dificuldade em enviar os dados; dificuldade em fechar casos; outro); perda de dados na transferência para o Sinan/SES/GO (Sinan-net; Sinan Windows; ambos); recuperação de dados (Sinan-net ou Sinan Windows); tempo estabelecido para o município enviar dados à SES/GO quando em uso do Sinan Windows (<7; 8-15; 16-30 dias; não trabalhou com Sinan Windows); e meio de envio de dados à SES/GO [Sinan Windows: disquete; e-mail; compact disk (CD); malote; fax].

As variáveis estudadas de exames laboratoriais foram: coleta de amostras para a confirmação do diagnóstico (todos os casos suspeitos; alguns casos suspeitos; outra); laboratório de referência para o diagnóstico de dengue (estadual ou municipal); fluxo de recebimento de resultados laboratoriais (laboratório repassava ao estado que repassava ao município; laboratório repassava diretamente ao município; município consulta o sistema de informação; outro); e tempo para receber o resultado dos exames [sorologia; isolamento viral; PCR (reação em cadeia da polimerase)]; imunohistoquímica (<7; 8-15; 16-30; >30 dias).

Quanto à realização de busca ativa, foram consideradas as seguintes variáveis: casos suspeitos/período (período epidêmico e não epidêmico; período não epidêmico; período epidêmico); dificuldade para busca ativa/informações (falta de veículos de transporte dos técnicos; acesso à área; número de técnicos reduzido; outra); procedimento utilizado para a investigação dos casos suspeitos (visita familiar; telefone; prontuário; consulta agendada por telefone; durante a internação; outro).

As variáveis consideradas sobre o repasse de informações foram: existência e frequência do repasse de informações (diária; semanal; mensal; outra); existência e frequência de boletim para informar os envolvidos na investigação dos casos (diária; semanal; quinzenal; mensal; bimestral; trimestral; semestral; anual; períodos epidêmicos; outra); e divulgação do boletim (comunidade geral; gestores; unidades de saúde; comunidade geral/gestores; unidades de saúde/gestores; comunidade/unidades de saúde/gestores).

Para o plano de contingência, considerou-se as seguintes categorias: existência de um plano de contingência concluído; e divulgação do plano de contingência.

Para a análise dos dados da digitação das FII e FIN, foram selecionados os questionários do grupo dos coordenadores de Núcleo de Vigilância Epidemiológica (CNVE), uma vez que os profissionais da assistência não trabalhavam nessa atividade.

Considerando-se que (i) os atributos analisados são subjetivos e dependem da percepção dos profissionais em sua avaliação,8 e o fato de (ii) não se dispor de parâmetros específicos na literatura que definam as taxas ideais de participação em estudos de avaliação de atributos de sistemas de vigilância, principalmente quando se trata de atributos qualitativos, os resultados obtidos por este estudo foram considerados adequados ou não, respectivamente para valores >70% e ≤70%. Este ponto de corte foi estabelecido com base no conhecimento empírico, uma vez que não foram encontrados, na literatura científica publicada, valores que servissem de referência para os atributos avaliados. Na análise dos dados, foram utilizados os seguintes programas: TabWin versão 3.6, SPSS Statistics 18.0 e Microsoft Excel 2003.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de Goiás (Protocolo No 257/12) e desenvolvido segundo os princípios éticos estabelecidos pela Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) no 466, de 12 de dezembro de 2012.

Resultados

Dos 308 representantes presentes na capacitação, 183 (59,4%) profissionais concordaram em participar deste estudo, representando 121 municípios. Os demais 125 profissionais (40,6%) optaram por não participar. Do total de 134 (73,2%) selecionados para o estudo, 73 (54,5%) eram coordenadores de Núcleo de Vigilância Epidemiológica - CNVE -, 61 (45,5%) eram profissionais da Assistência, 43 eram enfermeiros, 10 eram coordenadores da Estratégia Saúde da Família e 8 coordenadores da Atenção Básica. Foram analisados questionários provenientes de 102 municípios de Goiás (Figura 1). A distribuição desses profissionais por macrorregiões de saúde de Goiás foi a seguinte: 35,8% eram do Centro-Oeste, 31,3% do Centro-Norte, 13,4% do Sudoeste, 10,4% do Sudeste e 8,2% do Nordeste goiano. Quanto ao vínculo empregatício, 49,2% dos funcionários eram contratados e 46,3% concursados (Tabela 1).

Figura 1 Fluxograma de amostragem dos participantes do estudo, Goiás, 2011 

Tabela 1 Perfil dos participantes quanto à função desempenhada e ao vínculo empregatício por macrorregião de saúde, Goiás, 2011 

a) CNVE: coordenadores de Núcleo de Vigilância Epidemiológica

b) Assistência: enfermeiros, coordenadores da Estratégia Saúde da Família e coordenadores da Atenção Básica.

O tempo de trabalho desses profissionais na função apresentou uma mediana de 2,8 anos (intervalo: um mês a 37 anos); e seu tempo de trabalho com dengue, especificamente, uma mediana de 3 anos (intervalo: um mês a 27 anos) (dados não apresentados em tabela).

Apenas 8 (5,9%) participantes relataram que as fichas utilizadas na vigilância da dengue eram de difícil preenchimento, especialmente devido à dificuldade no atraso da entrega dos resultados laboratoriais (2,2%), ou em decorrência da dificuldade na definição do diagnóstico médico (2,2%). Embora a FII tenha sido considerada de fácil preenchimento, algumas variáveis foram apontadas como difíceis (14,2%) de contemplar no questionário aplicado, principalmente aquelas relacionadas aos dados laboratoriais (11,2%) e ao encerramento de casos (3,0%) (dados não apresentados em tabela).

Em todas as macrorregiões, as FII e as FIN foram consideradas de fácil digitação pela maioria dos participantes, variando entre 61,1 e 84,6%. Porém, os participantes do Nordeste e do Centro-Norte do estado referiram maiores dificuldades para digitação das fichas, com percentual de 33,3% em cada uma dessas macrorregiões. As dificuldades relatadas pelos CNVE para digitação (n=37) foram: demora na chegada das fichas ao setor responsável pela digitação (24,3%); demora na liberação das fichas para digitação (16,2%); quedas constantes de energia (13,5%); computador indisponível (13,5%); preenchimento incorreto (10,8%); problemas técnicos (5,4%); e sobrecarga de trabalho (5,4%). Cerca de 70% dos respondentes referiram não ter qualquer crítica à FII de dengue e 14% deles ainda afirmaram que a FII é completa e abrangente. Entretanto, algumas críticas à notificação foram apontadas por 57 participantes, com destaque para a subnotificação por parte dos profissionais médicos (54,4%) e o preenchimento incorreto das fichas (12,3%) (dados não apresentados em tabela).

Os CNVE (n=71) referiram que a transferência de dados e o envio à Coordenação Estadual do Programa ocorreram, em sua maioria, no prazo determinado (88,7%). Quanto aos atrasos (n=20), os principais motivos citados foram: dificuldade no fechamento de casos (35%), dificuldades no envio de informações (25%), dificuldades na coleta de dados (15%), dificuldades na investigação de casos (10%), com transporte (10%) e problemas operacionais com o Sinan (5%). Em relação ao Sinan-net, 21 pessoas (29,6%) informaram que houve perda de dados durante a transmissão, com taxa de recuperação dos dados de 76,2% (dados não apresentados em tabela).

A definição de caso suspeito de dengue foi avaliada como sendo fácil por 88,5% dos participantes. Apesar de 55,4% dos entrevistados referirem não encontrar dificuldades para encerramento de casos de dengue clássica, 29 CNVE (34,5%) e 21 profissionais da Assistência (38,1%) relataram ter encontrado dificuldade nessa etapa, entre os casos de dengue com complicação e febre hemorrágica da dengue. Nestes casos, a principal dificuldade encontrada foi o atraso no resultado dos exames laboratoriais, tanto para os CNVE (41,9%; n=31) como para entre os profissionais da Assistência (58,8%; n=17) (Tabela 2).

Tabela 2 Dificuldades para encerramento dos casos de acordo com as formas clínicas de dengue, Goiás, 2011 

a) CNVE: coordenadores de Núcleo de Vigilância Epidemiológica

b) Assistência: enfermeiros, coordenadores da Estratégia Saúde da Família e coordenadores da Atenção Básica.

A realização de coleta de amostras para confirmação laboratorial foi relatada por 98,5% dos profissionais, sendo que 60,4% consideraram necessária a coleta para todos os casos suspeitos de dengue. O fluxo de recebimento dos resultados com o repasse do laboratório ao estado e deste ao município foi apontado como o mais comum (64,1%; n=128) entre as opções de outros fluxos, como repasse do laboratório direto ao município e consulta do município ao sistema de informação do laboratório. Em média, o tempo de recebimento dos resultados de exames laboratoriais foi de 16 a 30 dias, tanto para sorologia quanto para isolamento viral (Tabela 3), independentemente da função do participante, em todas as macrorregiões. Entretanto, mais de 60% das pessoas não souberam informar o tempo de entrega dos resultados de isolamento viral ou não realizavam esse exame.

Tabela 3 Tempo para recebimento dos resultados de sorologia e isolamento viral de dengue em Goiás, 2011 

a) CNVE: coordenadores de Núcleo de Vigilância Epidemiológica

b) Assistência: enfermeiros, coordenadores da Estratégia Saúde da Família e coordenadores da Atenção Básica.

De todos os participantes, 94,7% informaram que a busca ativa de casos suspeitos de dengue era realizada em seus municípios. Contudo, 48,4% dos CNVE afirmaram que essa atividade deveria ser realizada em períodos epidêmicos e não epidêmicos, e 37,5% dos profissionais da Assistência consideravam que a busca ativa deveria ser feita somente nos períodos não epidêmicos. Dificuldades para realizar a busca ativa de casos foram relatadas por 68 participantes, sendo as principais: falta de veículos de transporte (100%); número reduzido de técnicos (86,8%); e resistência oferecida pelos proprietários para o acesso dos técnicos às áreas de domicílio, prejudicando a investigação dos casos (41,2%). Destaca-se que a forma de investigação mais comum realizada foi a visita domiciliar (97,6%).

A maioria dos participantes referiu não ter um plano de contingência para a dengue concluído (39,6%) ou não soube informar se havia um plano em seu município (28,4%). Entre aqueles que mencionaram a existência de um plano de contingência (n=43), 90,7% confirmaram sua divulgação para os demais componentes envolvidos no controle da dengue.

A principal sugestão dos CNVE (54,5%) e dos profissionais da Assistência (43,8%) para o alcance de melhorias no sistema de vigilância da dengue no Brasil foi a capacitação permanente dos profissionais envolvidos nessa vigilância. Os CNVE sugeriram, ademais, a adequação de recursos humanos e de infraestrutura (40,9%), e a Assistência sugeriu ações preventivas (25%).

Discussão

Observou-se que aproximadamente um terço dos coordenadores de vigilância que participaram do estudo encontraram dificuldades para o encerramento dos casos graves de dengue, além de mais de dois terços deles informarem desconhecer a existência de um plano de contingência para enfrentamento de epidemias de dengue em seus municípios. Os resultados apresentados aqui evidenciaram que diversos desafios se impunham ao sistema de vigilância da dengue no estado de Goiás, no período estudado.

Este estudo é um dos primeiros realizados no país a utilizar dados primários para avaliação dos atributos de aceitabilidade e estabilidade do sistema de vigilância da dengue. Apesar de esses atributos terem sido considerados como adequados para o estado de Goiás em 2011, o sistema apresenta espaço para melhorias, mesmo após 19 anos de circulação do vírus.

Embora não existam parâmetros específicos na literatura que definam as taxas ideais de participação em estudos de avaliação de atributos de sistemas de vigilância, principalmente em se tratando de atributos qualitativos, destaca-se que os participantes da capacitação na qual foi realizada a coleta de dados provinham de distintas áreas de formação e atuação, de forma a se esperar que esses participantes, cuja rotina de trabalho implica a assistência a pacientes, não se sentissem capazes de responder a questões específicas sobre vigilância.

Para este estudo, a proporção de recusa foi uma limitação: 40% das pessoas não responderam ao questionário. Outra limitação pode estar relacionada ao fato de as informações terem sido referidas pelos pesquisados, podendo expressar percepções diferentes quanto aos itens avaliados. Apesar dessa característica em particular, o estudo contou com uma taxa de participação de 59,4%: 183 questionários respondidos por profissionais comprometidos com a vigilância de dengue, provenientes de 121 municípios goianos representativos de todas as macrorregiões de saúde do estado de Goiás, abrangendo uma população de 2.322.412 habitantes (38,2% da população do estado).

Ao classificar esses profissionais segundo as macrorregionais de saúde de seus municípios, foi possível obter uma maior clareza nos resultados, permitindo uma visão abrangente da percepção dos respondentes sobre a vigilância de dengue em Goiás, principalmente no Centro-Oeste (35,8%) e Centro-Norte (31,3%) do estado.

Em geral, a aceitabilidade de um sistema de vigilância está vinculada à importância do problema e à interação do sistema com os órgãos de saúde e a sociedade geral, como a participação das fontes notificantes e sua retroalimentação8 , 9 As fichas utilizadas na rotina da vigilância (FIN e FII) contribuíram à aceitabilidade do sistema de informação pelos participantes, uma vez que a maioria deles encontrou facilidade para o preenchimento dessas fichas e poucas dificuldades quanto a sua digitação. As críticas à notificação foram relacionadas, principalmente, à subnotificação por parte do profissional médico, problema observado em sistemas passivos de vigilância.12 Nesse contexto, além de treinamentos contínuos para esses profissionais, a retroalimentação do sistema deve ser adotada como prioridade, para que as unidades de saúde se reconheçam como parte integrante do sistema de vigilância.

A busca por outras fontes de informações para identificação de outros casos de dengue também deve ser incorporada aos sistemas de vigilância, uma vez que até mesmo apresentações graves da doença podem apresentar sub-registro. Kelly e colaboradores (2013) observaram alto percentual de subnotificação de encefalites e meningites virais na Irlanda, ao avaliarem diferentes fontes de dados.13 Sub-registros de 18% e 35% para hepatites B e C, respectivamente, também foram observados em uma ampla revisão do sistema de vigilância de doenças realizado pelo CDC/USA, com sede em Atlanta-GA.14 Como encefalite e comprometimento hepático são algumas das apresentações não usuais da dengue,15 uma integração maior do Sinan com outros sistemas de informações (internações, laboratório, mortalidade) deve ser uma das metas a serem definidas para futuras versões desses sistemas.

O alto percentual de participantes que referiram fácil entendimento da definição de caso suspeito de dengue pode ter favorecido a aceitabilidade do sistema de vigilância da dengue. Contudo, as dificuldades para encerramento de casos - a depender da forma clínica da doença - poderiam comprometer a avaliação desse atributo. Essas dificuldades também são observadas em âmbito mundial, nos diversos questionamentos sobre as definições e classificações para casos de dengue adotadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS).16 - 18 Em resposta a esses questionamentos, a OMS realizou estudo multicêntrico com o objetivo de propor uma nova classificação - posteriormente validada em 18 países -, segundo a qual a definição de caso passou a considerar, como formas de dengue, 'dengue sem sinais de alerta', 'dengue com sinais de alerta' e 'dengue grave'.19 , 20 O impacto dessa nova classificação ainda precisa ser avaliado pela rotina da vigilância.

A estabilidade do sistema enfrenta um grande desafio no perfil dos técnicos envolvidos na rotina de vigilância da dengue. A alta rotatividade dos profissionais ficou evidenciada pelo curto tempo de trabalho com dengue referido por esses indivíduos, juntamente com o alto percentual de vínculo empregatício por contratos. Esses resultados decorrem do ciclo eleitoral, responsável pela substituição dos profissionais ao final dos mandatos dos gestores, o que pode dificultar a continuidade e comprometer a qualidade do serviço.

A maioria dos participantes demonstrou compreender o fluxo rotineiro de encaminhamento e recebimento dos resultados de exames confirmatórios para dengue. Embora os resultados dos testes laboratoriais específicos para o diagnóstico de dengue não interfiram no tratamento do paciente, o longo intervalo de tempo observado até o recebimento desses exames afetaria tanto a aceitabilidade como a estabilidade do sistema de vigilância da doença. Salienta-se, portanto, que a confirmação laboratorial - como fator preditor de casos de dengue - e a investigação de óbitos suspeitos são fundamentais para a identificação do sorotipo circulante, responsável por determinadas epidemias.3

No sentido de aprimorar a integração da componente laboratorial, o estado de Goiás criou, em 2010, o Gerenciador de Ambiente Laboratorial (GAL),21 com os seguintes objetivos:

...'informatizar o Sistema Nacional de Laboratórios de Saúde Pública das Redes Nacionais de Laboratórios de Vigilância Epidemiológica e Vigilância em Saúde Ambiental, proporcionando o gerenciamento das rotinas, acompanhamento das etapas para realização dos exames e relatórios epidemiológicos e de produção nas redes estaduais de laboratórios de saúde pública; enviar os resultados dos exames laboratoriais de casos suspeitos ou confirmados (positivos/negativos) das Doenças de Notificação Compulsória (DNC) ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) e auxiliar nas tomadas de decisões epidemiológicas e gerenciais dos laboratórios de saúde'.21

É possível que em 2011, ano de realização do presente estudo, muitos municípios ainda não tivessem acesso a esse sistema gerenciador. Outra possibilidade é que, a despeito de alguns municípios terem aderido ao GAL, a falta de infraestrutura e de capacitação de pessoal tenha comprometido sua implantação e utilização. A presença efetiva do GAL em todos os municípios do estado e em todas as macrorregionais de saúde que oferecem suporte técnico aos municípios permitiria o acesso aos resultados laboratoriais de forma oportuna.

Apesar dos resultados apresentados pelo estudo, faz-se necessária uma contínua capacitação dos profissionais envolvidos nas rotinas da vigilância de dengue. No período não epidêmico, a confirmação laboratorial deve ser realizada para todos os casos suspeitos de dengue. No período epidêmico, entretanto, a coleta para sorologia deve ser amostral (um a cada dez pacientes) entre os casos de dengue clássico. A confirmação laboratorial de todos os casos em período epidêmico - conforme informado pelos participantes - é inadequada e interfere diretamente na estabilidade do sistema, com o desvio de tempo e de recursos necessários às imprescindíveis ações de prevenção e controle.3

As principais dificuldades apontadas pelos participantes para a busca ativa de casos relacionaram-se à escassez ou ingerência de recursos, como a falta de veículos para o transporte de técnicos (100%) e o número reduzido desses profissionais (86,8%). Essas dificuldades, associadas aos relatos sobre a inexistência de planos de contingência para a dengue nos municípios representados, poderiam afetar tanto (i) a aceitabilidade do sistema, por desconhecimento das medidas a serem adotadas para controle de epidemias, como (ii) sua estabilidade, dada a ausência de um plano de contingência para ser operacionalizado.

A dengue impõe grandes desafios aos profissionais de saúde, por sua magnitude e pela crescente ocorrência de casos graves. Na ausência de tecnologias para o efetivo controle da doença, a vigilância é uma das principais atividades para sua prevenção. A contínua avaliação da aceitabilidade e da estabilidade como atributos do sistema de vigilância da dengue é fundamental, bem como a realização de outros estudos epidemiológicos que forneçam evidências capazes de contribuir para a melhoria das atividades de prevenção e controle da doença e da epidemia, no estado de Goiás e no país.

REFERÊNCIAS

1. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise de Situação de Saúde. Saúde Brasil 2010: uma análise da situação de saúde e evidências selecionadas de impacto de ações de vigilância em saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2011. (Série G. Estatística e informação em saúde). Capítulo 7, Dengue no Brasil: tendências e mudanças na epidemiologia, com ênfase nas epidemias de 2008 e 2010. p. 157-72.
2. Barreto ML, Teixeira MG, Bastos FI, Ximenes RAA, Barata RB, Rodrigues LC. Successes and failures in the control of infectious diseases in Brazil: social and environmental context, policies, interventions, and research needs. Lancet. 2011 May;377(9780):1877-89.
3. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Guia de vigilância epidemiológica. 7. ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2009.
4. Siqueira JB, Martelli CMT, Coelho GE, Simplicio ACR, Hatch DL. Dengue and dengue hemorrhagic fever, Brazil, 1981-2002. Emerg Infect Dis. 2005 Jan;11(1):48-53.
5. Costa JV, Donalisio MR, Silveira LVA. Spatial distribution of dengue incidence and socio-environmental conditions in Campinas, São Paulo State, Brazil, 2007. Cad Saude Publica. 2013 Aug;29(8):1522-32.
6. Duarte HHP, França EB. Qualidade dos dados da vigilância epidemiológica da dengue em Belo Horizonte, MG. Rev Saude Publica. 2006 jan-fev;40(1):134-42.
7. Toledo ALA, Escosteguy CC, Medronho RA, Andrade FC. Confiabilidade do diagnóstico final de dengue na epidemia 2001-2002 no Município do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica . 2006 mai;22(5):99-102.
8. Centers for Disease Control and Prevention. Updated guidelines for evaluating public health surveillance systems: recommendations from the guidelines working group. MMWR Recomm Rep. 2001 Jul;50(13):1-35.
9. Hopkins RS. Design and operation of state and local infectious disease surveillance systems. J Public Health Manag Pract. 2005 May-Jun;11(3):184-90.
10. El Allaki F, Bigras-Poulin M, Ravel A. Conceptual evaluation of population health surveillance programs: method and example. Prev Vet Med. 2013 Mar;108(4):241-52.
11. Ministério da Saúde (BR). Departamento de Informática do SUS. População residente segundo Unidade da Federação - Goiás - Período 2011 [ Internet]. 2011 [citado 2012 ago 16]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?ibge/cnv/popuf.def
12. Silk BJ, Berkelman RL. A review of strategies for enhancing the completeness of notifiable disease reporting. J Public Health Manag Pract. 2005 May-Jun;11(3):191-200.
13. Kelly TA, O'Lorcain P, Moran J, Garvey P, McKeown P, Connell J, et al. Underreporting of viral encephalitis and viral meningitis, Ireland, 2005-2008. Emerg Infect Dis. 2013 Sep;19(9):1428-36.
14. Centers for Disease Control and Prevention. Completeness of reporting of chronic hepatitis B and C virus infections - Michigan, 1995-2008. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 2013 Feb;62(6):99-102.
15. Simmons CP, Farrar JJ, Nguyen VC, Wills B. Dengue. N Engl J Med. 2012 Apr;366(15):1423-32.
16. Hadinegoro SRS. The revised WHO dengue case classification: does the system need to be modified? Paediatr Int Child Health. 2012 May;32 Suppl 1:33-8.
17. Rigau-Pérez JG. Severe dengue: the need for new case definitions. Lancet Infect Dis. 2006 May;6(5):297-302.
18. Farrar JJ, Hien TT, Horstick O, Hung NT, Jaenisch T, Junghanns T, et al. Dogma in classifying dengue disease. Am J Trop Med Hyg. 2013 Aug;89(2):198-201.
19. Barniol J, Gaczkowski R, Barbato EV, Cunha RV, Salgado D, Martínez E, et al. Usefulness and applicability of the revised dengue case classification by disease: multi-centre study in 18 countries. BMC Infect Dis. 2011 Apr;11(106):1-12.
20. Alexander N, Balmaseda A, Coelho ICB, Dimaano E, Hien TT, Hung NT, et al. Multicentre prospective study on dengue classification in four Southeast Asian and three Latin American countries. Trop Med Int Health. 2011 Aug;16(8):936-48.
21. Secretaria de Estado da Saúde (Goiás). Laboratório de Saúde Pública Dr. Giovanni Cysneiros. Nota técnica 01/2012 - LACEN/SES/GO. Instrução para coleta, armazenamento e transporte de material para isolamento viral: Dengue. Goiânia: Secretaria de Estado da Saúde Goiás; 2012.