versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.8 no.4 São Paulo out./dez. 2010
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082010ao1546
A discussão sobre a real diminuição da fertilidade masculina é bastante controversa no campo da reprodução humana. Muitos autores demonstraram a diminuição ou manutenção da qualidade seminal durante os últimos 20 anos(1). Macomber e Sanders conduziram o primeiro estudo a respeito da concentração espermática normal em 1929, com base nas contagens das amostras de 294 indivíduos. Esses autores relataram a concentração espermática normal de 100 × 106 espermatozoides/ml(2).
Em 1992, Carlsen et al. realizaram revisão sistemática da literatura publicada a partir de 1930. Foram analisados os dados do sêmen de 14.947 homens em 61 trabalhos. A análise de regressão linear mostrou uma redução significativa da mediana da concentração espermática de 113 milhões/ml, em 1940, para 66 milhões/ml, em 1990, e do volume seminal de 3,4 para 2,75 ml(3). Em 1997, Swan, Elkin e Fenster analisaram os dados de 56 trabalhos revisados por Carlsen et al.(3). Eles também descreveram que as alterações encontradas poderiam ser causadas por análise estatística errônea. Entretanto, esses autores confirmaram que realmente houve uma diminuição da concentração espermática nos EUA e na Europa, mas não nos países não-ocidentais, após uma análise estatística sofisticada(4).
Van Waeleghem et al., em 1996, relataram a deterioração da qualidade espermática em homens belgas jovens saudáveis. A concentração, motilidade e morfologia espermáticas avaliadas consecutivamente em 416 homens jovens saudáveis, selecionados como possíveis doadores de bancos de sêmen durante 19 anos demonstraram uma diminuição significativa(5). Entretanto, no mesmo ano, Paulsen et al. não relataram a tendência de diminuição da qualidade do sêmen em 1.283 homens na região metropolitana de Seattle e levantaram o conceito de que a deterioração da qualidade seminal não é geograficamente uniforme(6).
Estudos mais recentes sugeriram a tendência mundial de redução da qualidade seminal, mas parece evidente que há grandes diferenças geográficas nas contagens de espermatozoides(7,8). Auger e Jouannet, em 1997, avaliaram as amostras seminais de 4.710 doadores de sêmen entre 1973 e 1993, coletadas em oito diferentes regiões da França e encontraram diferenças estatísticas entre as amostras das diferentes regiões. Estes autores afirmaram que as discrepâncias regionais deveriam ser consideradas na avaliação dos trabalhos que mostraram diminuição da qualidade do sêmen ao longo do tempo(9).
As possíveis causas do impacto negativo nas características seminais e das grandes discrepâncias geográficas podem ser industrialização, poluição ambiental, uso de produtos químicos, exposição repetida a compostos perigosos no trabalho e variações dos técnicos e das técnicas laboratoriais. Foram levantadas outras razões mais especulativas; Sheiner et al. relataram possível associação entre a infertilidade masculina e o estresse psicológico ocupacional(8). De acordo com Storgaard et al., filhos de mães que haviam fumado mais de dez cigarros por dia durante a gravidez tinham uma diminuição significativa da densidade espermática, contagem espermática total e níveis plasmáticos de inibina B(7).
Além disso, o efeito do estresse psicológico na qualidade seminal não pode ser ignorado. Vários autores sugeriram que o estresse psicológico em homens pode afetar a qualidade do sêmen e a fecundidade do casal(10). Hammond et al. demonstraram o impacto negativo da ansiedade na qualidade seminal, comparando amostras seminais colhidas para diagnóstico e o momento do tratamento (técnicas de reprodução assistida)(11).
A primeira coleta de sêmen de qualquer homem pode ocorrer sob pressão psicológica e recomenda-se que qualquer anormalidade seminal seja confirmada com uma segunda amostra antes de realizar o diagnóstico(10). Aparentemente, a necessidade de obter-se uma amostra de sêmen de um momento específico para um procedimento de tratamento da infertilidade, ou a doação de esperma tem o potencial de produzir uma ansiedade considerável de desempenho(12) e, possivelmente, afetar a qualidade da primeira amostra de sêmen. Portanto, é importante comparar os dados da primeira e segunda coleta dos doadores de sêmen e avaliar se há qualquer diferença na qualidade entre elas.
Além disso, em muitos mamíferos o estado da fertilidade pode mudar de acordo com a estação do ano. Gyllenborg et al., em 1999, encontraram aumento significativo da concentração espermática e diminuição da motilidade espermática quando analisaram as amostras de sêmen de 1.927 possíveis doadores de sêmen, entre 1977 e 1995, em Copenhague, Dinamarca. Também descobriram que a concentração espermática era maior na primavera e menor no verão(13).
Avaliar a concentração, morfologia e motilidade espermática em doadores de sêmen na cidade de São Paulo, entre 1992 e 2003, comparando os dados da primeira e segunda coleta de esperma, analisando a idade dos doadores e a estação do ano em que as amostras foram colhidas.
Estudo retrospectivo, o qual analisou amostras de sêmen de 182 doadores nos últimos dez anos (1992 a 2003) no Banco de Esperma do Hospital Israelita Albert Einstein. Todas as análises foram realizadas independentemente na primeira e segunda coleta.
A média de idade dos doadores de sêmen foi 30,8 anos (variação entre 18 e 40 anos). Todos os doadores moravam na região metropolitana de São Paulo. Antes de serem aceitos no programa de doação, todos os candidatos foram submetidos à triagem clínica. Nela, foram avaliados os hábitos sexuais, saúde geral, exames sorológicos (HIV-1, HIV-2, antígeno P24 do HIV, HTLV-I, HTLV-II, sífilis, HBsAg, HBc, anticorpo contra o vírus da hepatite C e doença de Chagas), análise cromossômica e cultura de esperma (Chlamydia trachomatis, Mycoplasma sp e Ureaplasma urealyticum, além de cultura para a pesquisa de anaeróbios).
Todos os doadores foram instruídos a colherem as duas primeiras amostras de sêmen no mesmo mês, com intervalo mínimo de uma semana. As amostras foram colhidas por masturbação, em frascos plásticos especiais após dois a cinco dias de abstinência sexual. A amostra foi mantida a 37 ºC até a liquefação completa (máximo de 30 minutos), sendo realizado o exame macroscópico inicial dos seguintes parâmetros: viscosidade (ou consistência), pH, aspecto (homogeneidade e coloração) e volume. A seguir, o exame microscópico era realizado para avaliar a contagem e motilidade espermática (Makler Counting Chamber). A morfologia espermática foi avaliada de acordo com os critérios rigorosos de Kruger et al.(14). Os esfregaços de sêmen foram corados pelo método de Papanicolau e pelo menos 100 espermatozoides foram examinados microscopicamente, com aumento de 1.000 vezes. As análises de sêmen foram realizadas pelos mesmos três técnicos de laboratório durante todo o período. Durante o período de dez anos, os mesmos métodos laboratoriais foram usados para realizar a análise do sêmen.
O software estatístico Minitab foi usado para a análise estatística. As médias com erros padrão, medianas com valores mínimos e máximos e as variações interquartis foram calculadas para a idade, concentração espermática, volume de sêmen, morfologia e motilidade espermática. A morfologia e motilidade espermática tiveram distribuição normal, o que não ocorreu com o volume seminal e a concentração espermática, sendo usada a raiz quadrada da transformação para obter a distribuição normal. O teste de Anderson-Darling foi usado para testar a normalidade das variáveis quantitativas.
As relações entre cada característica das amostras de sêmen e o ano da doação foram estudadas pela análise de regressão linear.
A regressão linear múltipla foi usada para avaliar a relação entre o ano da coleta de sêmen e cada parâmetro seminal; foram controlados os possíveis fatores de confusão, como idade dos doadores e a estação em que o sêmen foi coletado. Os valores de p < 0,005 foram considerados significativos. As estações do ano foram definidas com a tabela equinócio-solstício entre 1992 e 2005, encontrada no link http//astro.if.ufrgs.br/estacoes.html.
Este projeto foi analisado e aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital Israelita Albert Einstein – HIAE (CEP/Einstein 10-1374).
Cento e oitenta e dois homens entre 18 e 40 anos de idade tinham sido voluntários para a doação de sêmen entre 1992 e 2003.
Os valores da primeira amostra de sêmen dos doadores durante este primeiro período foram: a mediana do volume de esperma ejaculado era 3 ml (variação entre 0,3 a 10 ml). A mediana da concentração foi de 110 milhões/ml (variação entre 8 e 400 milhões/ml), a mediana da porcentagem de espermatozoides móveis foi 63,5% (variação entre 25 e 95%) e a mediana da porcentagem de morfologia oval foi 20% (variação entre 7 e 43%) (Tabela 1). Os valores da segunda amostra dos doadores foram: a mediana do volume de esperma ejaculado foi 3 ml (variação entre 1,0 e 11,3 ml). A mediana da concentração foi 120 milhões/ml (variação entre 6 e 300 milhões/ml), a mediana da porcentagem de espermatozoides móveis foi 65% (variação entre 26 e 91%) e a mediana da porcentagem de morfologia oval foi 20% (variação entre 7 e 43%) (Tabela 2).
Medidas estatísticas | Volume (ml) | Concentração (milhões esp/ml) | Esp ovais (%) | Esp móveis (%) |
---|---|---|---|---|
Média ± dp | 3,2 ± 1,8 | 120,7 ± 64,6 | 21,3 ± 5,0 | 63,6 ± 13,5 |
Mediana (min-max) | 3 (0,3 – 10) | 110 (8 – 400) | 20 (7 – 43) | 63,5 (25 – 95) |
Interquartil | 2,0 – 4,2 | 72 – 160 | 18 – 23 | 54,7 – 73 |
Esp: espermatozoide; ml: mililitro; min: mínimo; max: máximo; dp: desvio padrão.
Medidas estatísticas | Volume (ml) | Concentração (milhões esp/ml) | Esp ovais (%) | Esp móveis (%) |
---|---|---|---|---|
Média ± dp | 3,4 ± 1,8 | 126,6 ± 66,0 | 21,3 ± 5,0 | 62,6 ± 12,7 |
Mediana (min-max) | 3 (1,0 – 11,3) | 120 (6 – 300) | 20 (7 – 43) | 65 (26 – 91) |
Interquartil | 2,20 – 4,30 | 76,2 – 163,7 | 18 – 23 | 55 – 71 |
ml: mililitro; Esp: espermatozoide; min: mínimo; max: máximo; dp: desvio padrão
A análise de regressão linear mostrou que a concentração de espermatozoides diminuiu significativamente, tanto na primeira como na segunda coleta destes (R2 = 19,1%, p < 0,0001; R2 = 20,2%, p < 0,0001, respectivamente) (Figuras 1A e 1B). O mesmo achado foi observado na porcentagem de espermatozoide com morfologia oval (R2 = 13%, p < 0,0001; R2 = 13,5%, p < 0,0001, respectivamente) (Figuras 2A e 2B). O volume ejaculado teve um pequeno aumento durante o período com ambas as amostras (R2 = 2,2%, p = 0,048; R-sq = 2,4%, p = 0,038, respectivamente) (Figuras 3A e 3B). O único parâmetro que não apresentou mudanças foi a motilidade dos espermatozoides (R2 = 0,1%, p = 0,653; R-sq = 0,4%, p = 0,376, respectivamente) (Figura 4A e 4B).
As análises de regressão múltipla para cada característica do sêmen, controlando a idade e as estações do ano, mostraram que a concentração e a morfologia oval ainda diminuíram significativamente entre 1992 e 2003 (p < 0,0001; p < 0,0001), enquanto a motilidade e o volume não mudaram durante o mesmo período de estudo (Tabelas 3 a 6). Portanto, não foi observada correlação entre a idade dos doadores e a estação do ano.
Variável | Referência | Coeficiente β | Valor de p |
---|---|---|---|
Ano da coleta da amostra | Alteração de unidade | -0,343 | < 0,0001 |
Idade | Alteração de unidade | -0,0132 | 0,722 |
Estação | |||
Verão | Outono | -0,731 | 0,227 |
Primavera | Outono | -0,7525 | 0,225 |
Inverno | Outono | 0,0653 | 0,911 |
R2: 20,9%.
Variável | Referência | Coeficiente β | Valor de p |
---|---|---|---|
Ano da coleta da amostra | Alteração de unidade | -0,491 | < 0,0001 |
Idade | Alteração de unidade | 0,10399 | 0,121 |
Estação | |||
Verão | Outono | -1,534 | 0,153 |
Primavera | Outono | -0,009 | 0,994 |
Inverno | Outono | -1,179 | 0,255 |
R2: 15,9%.
Variável | Referência | Coeficiente β | Valor p |
---|---|---|---|
Ano da coleta da amostra | Alteração de unidade | -0,0719 | 0,797 |
Idade | Alteração de unidade | 0,0242 | 0,897 |
Estação | |||
Verão | Outono | 0,179 | 0,953 |
Primavera | Outono | 4,227 | 0,179 |
Inverno | Outono | -0,083 | 0,977 |
R2: 1,8%.
Variável | Referência | Coeficiente β | Valor p |
---|---|---|---|
Ano da coleta da amostra | Alteração de unidade | 0,017352 | 0,079 |
Idade | Alteração de unidade | 0,003543 | 0,593 |
Estação | |||
Verão | Outono | 0,0604 | 0,574 |
Primavera | Outono | 0,0093 | 0,933 |
Inverno | Outono | -0,0665 | 0,519 |
R2: 1,8%.
Os dados mostraram que a qualidade do sêmen de um grupo de doadores jovens saudáveis, de um Banco de Sêmen na cidade de São Paulo, apresentou uma diminuição estatisticamente significativa entre 1992 e 2003. Este achado parece ser um fenômeno biológico, uma vez que a metodologia e a equipe de funcionários do laboratório foram as mesmas durante todo o período, o que reduz as variáveis técnicas. Embora o período de abstinência sexual tenha variado entre dois e cinco dias, este não pode ser considerado como um viés, uma vez que a concentração de espermatozoides e o volume seminal começam a aumentar após o quinto dia de abstinência em homens normais(15). O Banco de Sêmen do Hospital Israelita Albert Einstein foi fundado em 1989 e o período entre 1992 e 2003 foi escolhido, pois os mesmos padrões técnicos haviam sido mantidos neste período.
Esses achados confirmaram outros estudos que haviam demonstrado uma diminuição da qualidade seminal ao longo do tempo em várias regiões do mundo(3,5,9,16). Entretanto, este achado não tem sido universal e apresenta grande variação geográfica(9).
A possibilidade de as alterações seminais serem diferentes na primeira ou segunda amostra em razão de um possível impacto psicossocial negativo, como observado por Clarke et al.(12), não ocorreu neste estudo. A diminuição observada na concentração de espermatozoides e na porcentagem destes com morfologia oval, o aumento do volume seminal e a não-alteração da motilidade dos espermatozoides ocorreram em ambas amostras de doadores.
As alterações seminais encontradas neste trabalho não mostraram correlação com a idade dos doadores e a estação do ano em que o sêmen foi coletado, ao contrário do que havia sido mostrado por Gandini et al., em 2000(1), Gyllenborg et al., em 1999(13), e Yogev et al., em 2004(17).
A deterioração ambiental é a principal candidata como possível causa da diminuição da qualidade do sêmen e de discrepâncias geográficas. Particularmente, a poluição causada por xenobióticos com atividade semelhante aos estrogênios (desreguladores endócrinos) é suspeita de determinar várias patologias andrológicas como o câncer testicular, hipospadia, criptorquidismo e redução da espermatogênese por meio da redução das células de Sertoli durante a vida fetal(1). Portanto, a exposição pré-natal ao tabaco pode ser uma hipótese de explicação alternativa para a possível diminuição das contagens de espermatozoides em alguns países(7). A redução da fecundidade foi observada em mulheres expostas no período pré-natal ao cigarro de suas mães, e o atraso do tempo até a gravidez foi observado em homens e mulheres cujas mães fumaram durante a gravidez(8).
Um estudo realizado consecutivamente com 202 pacientes do sexo masculino, atendidos em uma clínica de fertilidade, relatou que a infertilidade masculina está associada aos trabalhos na indústria e construção civil e em trabalhadores que sofrem de exaustão do trabalho(8). Entretanto, no mesmo estudo, os autores não encontraram associação significativa entre a infertilidade masculina e as possíveis exposições física ou química(8). Entretanto, em um estudo recente, descobriu-se que a exposição contínua aos poluentes do trânsito prejudica a qualidade dos espermatozoides em homens jovens/meia-idade. A avaliação comparativa dos parâmetros do esperma, os marcadores de absorção e as concentrações ambientais indicam que o chumbo (Pb) foi provavelmente a causa da debilitação da espermatogênese(18). Em 2006, Sokol et al. analisaram 5.134 amostras de sêmen em Los Angeles, Califórnia, e encontraram uma correlação negativa entre a concentração atmosférica de ozônio e a qualidade do sêmen. Eles argumentaram que a exposição ao ozônio poderia induzir a uma resposta inflamatória, a qual poderia levar a uma concentração anormal das espécies reativas de oxigênio no trato seminal com a consequente deterioração da qualidade do sêmen(19).
É importante afirmar que o estado da fertilidade não se baseia apenas nas características do sêmen. A maneira ideal de avaliar se a fertilidade está diminuindo é estudar a taxa de gravidez obtida com as amostras dos doadores, o que será a meta no futuro, embora também poderiam ser incluídos no estudo os fatores femininos. Embora tenha sido encontrada diminuição significativa na qualidade do sêmen durante o período estudado, poderia ser questionado o significado clínico destes achados, uma vez que os valores obtidos ainda estavam na faixa de valores normais de acordo com a Organização Mundial da Saúde(20).
São Paulo é uma cidade de 11 milhões de pessoas, com índice de poluição ambiental moderada a alta e isto poderia ser um dos principais motivos dos presentes achados. Ainda estão sendo realizados outros estudos para correlacionar as condições do ar e a qualidade do sêmen.
Houve diminuição da concentração espermática e da porcentagem de espermatozoides ovais nas amostras de doadores de sêmen na cidade de São Paulo.