versão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.34 no.2 Rio de Janeiro 2018 Epub 19-Fev-2018
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00047217
El papel de los servicios de salud es crucial para el alcance de la meta 90-90-90 de control de la epidemia de VIH. El estudio evalúa la organización de los servicios brasileños en las acciones de promoción, monitoreo y apoyo al mantenimiento del seguimiento y tratamiento. Se compararon, mediante la variación porcentual (VP), las respuestas de los servicios a un cuestionario de evaluación de la calidad organizativa (Qualiaids) en 2007 y en 2010. Se analizaron los 419 servicios que respondieron al cuestionario en 2007 (83,1% de los participantes) y 2010 (63,6%). Las acciones de gerencia, relacionadas con el mantenimiento y apoyo, aunque se incrementaron durante el período, permanecieron con baja frecuencia, tales como: reuniones sistemáticas para discusión de casos; (32,7% en 2010; VP = 19,8%), registro de faltas en consulta médica (35,3%; VP = 36,8%). Las acciones asistenciales relacionadas con la adhesión al tratamiento farmacológico continúan siendo mayoritariamente exclusivas del médico. La aportación de recursos de provisión federal -medicamentos y exámenes específicos para VIH- se mantuvo alta para la gran mayoría de los servicios (~90%). No se alcanzará un decremento significativo en la transmisión del VIH, mientras la permanencia en el tratamiento no sea una prioridad de todos los servicios de asistencia.
Palabras-clave: Atención Ambulatoria; Síndrome de Inmunodeficiencia Adquirida; Calidad de la Atención de Salud; Evaluación de Programas y Proyectos de Salud
No Brasil, desde 2013, o protocolo clínico de tratamento da infecção pelo HIV recomenda o início da terapia antirretroviral para todas as pessoas diagnosticadas, independentemente do seu estado imunitário ou clínico 1. A adoção desse protocolo é baseada em evidências que mostram o benefício clínico do tratamento precoce 2 e a redução da transmissão do vírus por pessoas tratadas 3 em mais de 90%.
A proposição da meta 90-90-90 pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS) 4 sugere aos países que, até 2020, sejam diagnosticadas 90% das pessoas com HIV, destas, 90% iniciem tratamento antirretroviral e destas, 90% alcancem a supressão da carga viral. Também adotada no Brasil, atualmente é parâmetro internacional para avaliar as respostas nacionais à aids. O monitoramento da meta se dá por meio de um modelo epidemiológico, no qual as etapas monitoradas apresentam-se tal qual uma cascata. Cada etapa aparece como um “degrau”, e ao desenvolvimento teórico desta, dá-se o nome de contínuo do cuidado em HIV.
Proposto nos Estados Unidos em 2013, o modelo do contínuo do cuidado inicia pelo número estimado de pessoas infectadas. As etapas seguintes estimam, sucessivamente, a proporção de pessoas diagnosticadas que foram vinculadas a um serviço de saúde; as retidas, isto é, que permanecem no seguimento; aquelas em tratamento antirretroviral; e por último, aquelas com supressão total de carga viral 5.
Segundo as estimavas do Ministério da Saúde do Brasil para 2015, vivem no país aproximadamente 827 mil pessoas com infecção pelo HIV 6, das quais 715 mil (87%) conhecem o seu status sorológico e, destas, 677 mil (95% das diagnosticadas) estão vinculadas a algum serviço de saúde, isto é, já realizaram pelo menos um exame de carga viral ou contagem de linfócitos T-CD4, ou tiveram pelo menos uma dispensação de antirretrovirais. Desse grupo, 565 mil (83,5% das vinculadas) permaneceram em acompanhamento (realizaram pelo menos dois exames de carga viral ou dois exames de CD4 ou dispensação de antirretrovirais nos últimos 100 dias do ano), entre as quais 455 mil (80,5% das retidas) estão em tratamento antirretroviral, tendo 410 mil (90% das tratadas) atingido carga viral menor de mil cópias por mL. A carga viral menor que mil cópias, embora não corresponda à “total supressão”, isto é, aos níveis hoje admitidos como abaixo do limite de detecção, representa o limite aceitável para a redução do potencial de transmissão 7.
As maiores “perdas” estimadas do contínuo do cuidado ocorrem, portanto, nas etapas de diagnóstico (13,5% das pessoas infectadas: 112 mil pessoas); retenção (16,5% das vinculadas: 112 mil pessoas que abandonaram ou sequer iniciaram o seguimento); e de tratamento (19,5% dos retidos: 110 mil pessoas que, embora tenham realizado carga viral ou CD4 no período, não tiveram nenhuma dispensação de antirretroviral).
Se o diagnóstico envolve fortemente uma complexa rede de dimensões psicossociais, nas quais os serviços de assistência em saúde representam um dos elos - evidentemente importante, porém de impacto limitado, nas demais etapas o papel dos serviços assistenciais adquire maior importância. Como já demonstrado em outros estudos - que buscaram qualificar e/ou avaliar o impacto das ações dos serviços - nas etapas de retenção, tratamento e supressão o papel do serviço de assistência é crucial no desenvolvimento de atividades que melhoram a retenção dos pacientes ao serviço, adesão aos antirretrovirais e diminuição da carga viral 8,9,10.
No Brasil, existem hoje 1.024 serviços do Sistema Único de Saúde (SUS), cadastrados no Ministério da Saúde (Qualiaids. Apresentação. http://www.qualiaids.fm.usp.br/, acessado em 06/Ago/2015), que fazem seguimento em nível ambulatorial a pessoas com HIV. É dessa rede assistencial que opera o acesso universal ao tratamento antirretroviral - pilar da resposta brasileira à aids - que se espera desempenho suficiente para impactar positivamente o contínuo do cuidado em HIV aproximando-o da meta 90-90-90.
Os serviços dessa rede assistencial, implantados majoritariamente em estruturas preexistentes do SUS, são bastante heterogêneos quanto ao porte (o número de pacientes varia de um a mais de 5.000) e arranjo institucional (serviços exclusivos de DST/aids, ambulatórios de especialidades e de hospitais e unidades de atenção básica) 11. O Governo Federal é responsável pelo estabelecimento dos protocolos clínicos e pela provisão de medicamentos antirretrovirais e exames específicos (carga viral, CD4 e genotipagem) 12. O aporte e manutenção de todos os demais recursos, bem como os demais processos de organização da assistência, dependem dos níveis estaduais, municipais e locais de gestão do SUS.
A primeira avaliação sistematizada da organização da assistência desses serviços ocorreu em 2001/2002 abrangendo 322 serviços (95,8% dos cadastrados no Ministério da Saúde), localizados em sete estados brasileiros. A avaliação utilizou o instrumento pré-validado Qualiaids, um questionário que investiga a qualidade organizacional da assistência prestada pelo serviço 13, e identificou um contraste entre a provisão de recursos de nível federal (exames de carga viral e CD4 e os antirretrovirais) e a problemática disponibilidade de recursos que dependem da infraestrutura e organização do SUS local.
Em 2007 e em 2010, o Questionário Qualiaids foi respondido por 79,3% (n = 504) e 92,6% (n = 659) dos serviços do país, e a comparação dos resultados relacionados ao universo de serviços está disponível em relatório, enviado ao Ministério da Saúde em 2012 13,14. Este artigo comparou as respostas diretamente relacionadas às etapas de retenção e tratamento dos serviços que participaram das aplicações nacionais do Questionário Qualiaids em 2007 e em 2010.
O questionário contém 107 questões de múltipla escolha sobre estrutura e processo da assistência, classificadas em três dimensões teóricas: organização dos processos de assistência, coordenação técnica do trabalho e disponibilidade de recursos. O questionário foi respondido em sistema online pelo responsável técnico do serviço, e as questões admitem resposta única ou múltipla. No aplicativo, os serviços também têm acesso ao Caderno de Recomendações de Boas Práticas, referentes às questões do instrumento, e este pode ser acessado a qualquer momento 15.
Nas duas ocasiões, o Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde solicitou às 27 Coordenações Estaduais do Programa de AIDS que cadastrassem no sistema Qualiaids todos os serviços de saúde que realizavam o acompanhamento de adultos vivendo com HIV em nível ambulatorial. Após o cadastro, os serviços foram convidados a responder ao questionário por meio de login e senha de acesso, com garantia do sigilo da resposta.
O monitoramento da resposta dos serviços ao questionário foi realizado por três meses, em ambas as aplicações, por meio de uma parceria entre universidade e Ministério da Saúde. O banco de dados resultante das aplicações nacionais do Qualiaids foi cedido para os autores deste artigo como parte de acordo de cooperação técnica.
As características organizacionais que indicam a qualidade das ações relacionadas às etapas de retenção, tratamento e supressão, por exemplo, a prontidão do acesso ao serviço, podem ser analiticamente descritas em dois polos: (a) as que sustentam o conjunto da assistência para todos os pacientes: disponibilidade de recursos (própria e da rede assistencial local) e a coordenação técnica do trabalho; (b) as que sustentam a organização da assistência para as especificidades de cada paciente: a dinâmica do fluxograma assistencial.
É possível, assim, entender as ações mais diretamente relacionadas com as etapas de retenção e tratamento como conjuntos contínuos e simultâneos, situados em três momentos: promoção e monitoramento (para o conjunto dos pacientes) e suporte (para indivíduos cujo monitoramento revelou problemas).
A promoção se refere à condução de ações que estimulam a permanência no seguimento e a adesão ao tratamento de todos os pacientes; o mesmo para o monitoramento, que trata da medida do alcance destes objetivos. O suporte diz respeito às ações específicas para aqueles pacientes cujo monitoramento apontou problemas de permanência e/ou de adesão.
Assim, para comparar as respostas relacionadas às etapas de retenção e tratamento, selecionamos das três dimensões teóricas do Questionário Qualiaids, 98 variáveis que compõem indicadores das ações de retenção e tratamento dos serviços.
Na dimensão disponibilidade de recursos foram selecionados indicadores relacionados à provisão de suprimentos e exames pelos níveis federal e local, e recursos humanos. Para avaliar a disponibilidade de recursos humanos, calculou-se a razão aceitável de pacientes por profissional com base nos dados empíricos da aplicação do Qualiaids em 2010 e da validação da nova versão do questionário em 2011. Foram considerados os serviços que obtiveram as melhores médias de desempenho em ambas as aplicações, e baseando-se na análise da disponibilidade de profissionais médicos e da equipe mínima (enfermeiro, psicólogo e assistente social) deste conjunto de serviços, determinou-se a razão aceitável de pacientes por profissional: médicos (até 400 pacientes); enfermeiro (até 880); psicólogo (até 920); e assistente social (até 870 pacientes).
Na dimensão organização do processo de assistência, foram selecionados os indicadores que qualificam o atendimento prestado aos pacientes HIV em sua entrada e permanência no serviço e aqueles voltados à promoção da adesão ao tratamento. Na dimensão coordenação técnica do trabalho, foram selecionados os indicadores referentes ao monitoramento contínuo do conjunto dos pacientes retidos no serviço e ações que visam ao reengajamento de pacientes com dificuldades.
Foram considerados na análise os 419 serviços que participaram das avaliações de 2007 e 2010. Comparou-se a proporção de serviços que responderam às variáveis selecionadas, e para cada variável foi calculada a variação percentual (VP) entre as duas aplicações [(P2010 (% 2010) - P2007 (% 2007)/P2007 *100)], expressa com até uma casa decimal. Utilizou-se o teste McNemar para comparar as proporções obtidas. A VP foi apresentada para as variáveis que registraram mudança significativa no período (p < 0,05 no teste de McNemar). Foram excluídos da análise os serviços que não responderam ambas as aplicações do questionário.
Dos 419 serviços analisados, 70% estão localizados em municípios com menos de 400 mil habitantes (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico de 2010. http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/, acessado em 12/Mar/2015). Dentre os 419, 41,3% são ambulatórios de assistência a várias especialidades, 35,1% são serviços de assistência especializada, 12,4% são unidades básicas de saúde, 8,8% são ambulatórios vinculados a hospitais e 1% não informou.
A Tabela 1 mostra a distribuição dos serviços por região e porte. As regiões Sul e Sudeste concentram 334 (79,7%) dos serviços e, destes, 140 (42%) são serviços de médio porte. Os serviços de médio porte também são a maioria no conjunto e perfazem 39,1% da amostra (Tabela 1).
Tabela 1 Serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) que responderam às duas aplicações do Questionário Qualiaids segundo porte (número de pacientes) e região geográfica do serviço.
Porte | Região | Total [n (%)] | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Centro-oeste | Norte | Nordeste | Sul | Sudeste | ||
Pequeno (0 a 100) | 8 | 3 | 14 | 22 | 64 | 111 (26,5) |
Médio (101 a 500) | 7 | 4 | 13 | 55 | 85 | 164 (39,1) |
Grande (+ de 500) | 5 | 3 | 22 | 35 | 67 | 132 (31,5) |
Missing | 4 | - | 2 | 1 | 5 | 12 (2,9) |
Total | 419 (100,0) |
Fonte: Qualiaids 2007 e 2010.
O suprimento sem falhas para os medicamentos que compõem a primeira linha de tratamento antirretroviral 1 providos pelo nível federal manteve-se em 80% dos serviços. Também foi mantida a proporção de serviços que relata disponibilidade de dois ou mais exames de contagem de linfócitos T-CD4 e carga viral por paciente/ano (CD4: 2007 = 95,5%; 2010 = 97,1%, p = 0,2295; carga viral: 2007 = 92,9%; 2010 = 94,8%, p = 0,2559).
Recursos de provisão local, como os medicamentos para profilaxia primária de infecções oportunistas, exames bioquímicos utilizados para o acompanhamento da toxicidade dos medicamentos que necessitam maior prontidão e exames de imagem simples são disponibilizados em até 15 dias para cerca de 80% dos serviços. Exames mais complexos e o agendamento para a maioria dos médicos especialistas são disponibilizados em até 15 dias em menos da metade dos serviços (Tabela 2).
Tabela 2 Serviços de assistência ambulatorial a pessoas que vivem com HIV segundo respostas a questões de disponibilidade de recursos. Brasil, 2007 e 2010 (N = 419).
Recurso | 2007 | 2010 | VP | Valor de p * | ||
---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | |||
Acesso | ||||||
Aberto ao público 5 dias ou mais por semana | 353 | 84,2 | 362 | 86,3 | 0,2717 | |
Atende 8 horas por dia | 244 | 58,2 | 263 | 62,8 | 0,1014 | |
Atende 12 ou mais horas por dia | 90 | 21,5 | 94 | 22,4 | 0,7275 | |
Disponibilidade de resultados de exames específicos em até 15 dias | ||||||
Linfócito T-CD4 | 124 | 29,6 | 147 | 35,1 | 18,6 | < 0,05 |
Carga viral | 82 | 19,5 | 104 | 24,8 | 27,2 | < 0,05 |
Disponibilidade de resultados de exames em até 15 dias | ||||||
Endoscopia digestiva alta | 142 | 33,9 | 141 | 33,7 | 1,00 | |
Tomografia | 82 | 19,6 | 105 | 25,1 | 28,5 | < 0,05 |
Colposcopia | 155 | 37,0 | 151 | 36,0 | 0,7985 | |
Agendamento para especialidades médicas em até 15 dias | ||||||
Ginecologia | 318 | 75,9 | 301 | 71,8 | 0,1285 | |
Psiquiatria | 168 | 40,1 | 128 | 30,5 | -23,9 | < 0,001 |
Neurologia | 110 | 26,3 | 82 | 19,6 | -25,5 | < 0,05 |
Proctologia | 85 | 20,3 | 62 | 14,8 | -27,1 | < 0,05 |
Cardiologia | 157 | 37,5 | 131 | 31,3 | -16,5 | < 0,05 |
Oftalmologia | 145 | 34,6 | 116 | 27,7 | -19,9 | < 0,05 |
Cirurgia geral | 118 | 28,2 | 103 | 24,6 | 0,2029 | |
Razão de pacientes por profissional | ||||||
Médico (20 horas contratadas para até 400 pacientes) | 370 | 88,3 | 368 | 87,8 | 0,4799 | |
Enfermeiro (1 profissional para até 880 pacientes) | 409 | 97,6 | 335 | 79,9 | -18,1 | < 0,001 |
Psicólogo (1 profissional para até 920 pacientes) | 407 | 97,1 | 274 | 65,4 | -32,7 | < 0,001 |
Assistente social (1 profissional para até 870 pacientes) | 408 | 97,4 | 256 | 61,1 | -37,2 | < 0,001 |
VP: variação percentual.
* Teste de McNemar.
A proporção de serviços que contam com pelo menos um médico infectologista foi mantida (2007 = 72,1%; 2010 = 75,4%, p = 0,0869). Os serviços referiram dificuldades no aporte de profissionais de nível superior (2007 = 57%; 2010 = 58,5%, p = 0,6998) e houve diminuição da proporção de serviços que alcançam a razão aceitável de pacientes por profissional (Tabela 2).
Apesar da alta disponibilidade de ginecologistas (Tabela 2), manteve-se uma pequena proporção de serviços que realiza o agendamento de rotina na ginecologia, independentemente de queixas (2007 = 33,4%; 2010 = 31,6%, p = 1,00).
Os pacientes que procuram atendimento no serviço pela primeira vez são majoritariamente atendidos por profissionais de nível universitário não-médico (2007 = 92,8%; 2010 = 94,7%, p = 0,4035). Ainda em relação ao primeiro atendimento do paciente no serviço, a prática do profissional que realiza este atendimento de encaminhar no mesmo dia o paciente para consulta médica (ao identificar tal necessidade) ocorre em 36,3% dos serviços (2007 = 42,5%; 2010 = 36,3%, VP = -14,6%, p < 0,05).
A Figura 1 apresenta a proporção de serviços que realizam atividades do fluxograma assistencial geral para pacientes em seguimento no serviço antes, durante e após as consultas médicas, como também o atendimento realizado a pacientes faltosos ou em abandono que procuram o serviço. As consultas médicas são agendadas com hora marcada em 27% dos serviços (2007 = 26,7%; 2010 = 27%, p = 1,00).
Figura 1 Proporção de serviços que realizam atividades do fluxograma assistencial geral para pacientes com HIV/aids. Brasil, 2007 e 2010
As principais atividades de monitoramento da adesão ao tratamento permanecem predominantemente centradas no profissional médico, por meio de questionamentos sobre o uso correto do medicamento (2007 = 79,7%; 2010 = 83,8%, p = 0,1285) e dificuldades com efeitos colaterais e posologia durante a consulta médica (2007 = 86,2%; 2010 = 88,1%, p = 0,4452).
A proporção de serviços que conduz reuniões sistemáticas para a discussão de casos e condutas clínicas permanece abaixo de 33% (2007 = 27,3%; 2010 = 32,7%; VP = 19,8%, p < 0,05), apesar de ter crescido no período. Reuniões de trabalho com periodicidade definida são realizadas com maior frequência (2007 = 36,6%; 2010 = 43,5%; VP = 18,9%, p < 0,05).
Para pacientes com dificuldades no tratamento antirretroviral, a maioria dos serviços relata organizar as consultas médicas de retorno em intervalos menores (2007 = 88,5%; 2010 = 90,7%, p = 0,3492), reforçar a adesão nas consultas (2007 = 76,6%; 2010 = 81,1%, p = 0,1210) e realizar orientação individual por outros profissionais de nível superior (2007 = 70,4%; 2010 = 70,9%, p = 0,9291). Atividades como o encaminhamento para grupos de adesão e a mudança de esquema terapêutico foram descritas pela mesma proporção de serviços (Tabela 3).
Tabela 3 Serviços de assistência ambulatorial a pessoas que vivem com HIV segundo dimensões e ações de promoção, monitoramento e suporte para retenção e tratamento. Brasil, 2007 e 2010 (N = 419).
Coordenação técnica do trabalho | 2007 | 2010 | VP | Valor de p * | ||
---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | |||
Se o paciente ficar sem medicação por razões imprevistas, é atendido em consulta extra | 211 | 50 | 190 | 45 | 0,1147 | |
No início da terapia antirretroviral, o paciente realiza retorno com profissional de nível superior em até 15 dias | 265 | 63 | 270 | 65 | 0,7364 | |
Quando o intervalo entre as consultas é maior de 30 dias, o paciente | ||||||
Passa por consulta com enfermeiro ou farmacêutico, e após orientações retira a medicação previamente prescrita | 116 | 28 | 103 | 25 | 0,2712 | |
Se estiver estável leva a medicação para 60 dias | 116 | 28 | 136 | 33 | 0,0850 | |
Quando um paciente apresenta dificuldades no tratamento com antirretroviral | ||||||
É encaminhado para grupos de adesão | 116 | 28 | 111 | 27 | 0,6992 | |
Se possível, tem mudança de esquema terapêutico | 241 | 58 | 261 | 62 | 0,1565 | |
Registro sistemático de informações | ||||||
Faltas em consulta médica | 158 | 38 | 192 | 46 | 21,5 | < 0,05 |
Faltas por paciente em consulta médica | 108 | 26 | 148 | 35 | 36,8 | < 0,05 |
Uso do prontuário | ||||||
Utilizado por todos os setores de assistência ** | 160 | 38 | 181 | 43 | 0,0895 | |
Atendimentos realizados por profissionais de nível superior não-médico são registados no mesmo prontuário | 349 | 83 | 369 | 88 | 5,8 | < 0,05 |
Os registros médicos são realizados em campos padronizados em todas as consultas | 213 | 51 | 219 | 52 | 0,6749 |
VP: variação percentual.
* Teste de McNemar;
** Refere-se ao uso do prontuário em serviços com diversos setores de atendimento como, por exemplo, hospitais com vários ambulatórios.
Caso os pacientes faltem ao atendimento agendado, menos de 30% dos serviços convocam todos os faltosos (2007 = 26,3%; 2010 = 27,7%, p = 0,6427); aproximadamente a metade convoca os casos que apresentam exames alterados (2007 = 47,7%; 2010 = 53,2%, p = 0,0884), bem como aqueles de maior gravidade clínica (2007 = 48%; 2010 = 55,1%, VP = 14,8%, p < 0,05). O encaminhamento dos pacientes entre profissionais da equipe foi relatado pela maioria dos serviços (2007 = 68,7%; 2010 = 69,5%, p = 0,8654) nos dois períodos analisados.
A disponibilidade de recursos na rede de assistência depende da sua fonte de financiamento. A exemplo da situação já detectada no Qualiaids em 2002 13 - no que diz respeito aos recursos necessários para a assistência adequada -, a grande maioria dos serviços relatou novamente o suprimento contínuo somente dos recursos de provisão do nível federal.
O acesso em até 15 dias a especialidades médicas, já problemático em 2007, piorou. É provável que haja insuficiência de médicos especialistas credenciados, ou outros problemas de regulação na rede local. À exceção da ginecologia, não há prontidão de especialistas para a maioria dos serviços. Além da insuficiência de profissionais médicos na rede local, também permanecem as dificuldades com vagas para a internação hospitalar. Os serviços também enfrentam dificuldades com o aumento da demanda de pacientes para os demais profissionais da equipe.
A sobrecarga dos serviços especializados foi apontada como uma das justificativas da necessidade de descentralização da assistência em aids para os serviços de atenção primária. Proposta pelo Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das IST, do HIV/Aids e das Hepatites Virais (D-DST/AIDS/HV), Ministério da Saúde, em 2012, dentro da diretriz de expansão do tratamento precoce, tem sido adotada em alguns municípios brasileiros 16. Ainda não existem estudos que avaliem a descentralização da assistência. Com base nos dados deste estudo é possível considerar alguns desafios para a implementação dessa proposta. Como observado, há uma insuficiência de recursos nos serviços e nas redes locais de atenção ao HIV/aids, a qual também compõe o quadro geral de insuficiência das redes locais de serviços do SUS, particularmente nos serviços de atenção primária 17.
A capacidade interna dos serviços da atenção primária - seja ela organizacional ou técnica - para coordenar o cuidado e realizar a gestão clínica dos usuários com doenças crônicas no serviço, também é apontada como um desafio para o cuidado de pacientes com doenças crônicas na atenção primária. Da mesma maneira que a capacidade desses serviços para criar mecanismos de diálogo com os serviços especializados da rede de atenção à saúde, para estabelecer a padronização de referências e fluxos para o encaminhamento de pacientes crônicos ao atendimento médico especializado e exames, e coordenar o cuidado compartilhado entre os serviços 18,19.
Os principais achados na dimensão do gerenciamento técnico do trabalho estão relacionados a registros, avaliação, monitoramento e planejamento. O prontuário único tem sido utilizado com mais frequência por todos os setores da assistência. Apesar disso, o monitoramento do conjunto de pacientes é frágil nos serviços ambulatoriais. Os serviços deixaram de registrar informações importantes, que interferem diretamente no controle de resultados e processos. A despeito disso, o uso dessas informações produzidas no serviço de saúde auxilia os gestores na avaliação de processos e da melhoria contínua da qualidade do cuidado prestado a pessoas que vivem com HIV 20,21.
Nesse sentido, os sistemas informatizados podem ser utilizados como ferramenta de apoio à gestão 22,23, pois permitem reunir dados clínicos e do processo de trabalho, possibilitando que os gestores reavaliem os resultados alcançados e promovam as intervenções necessárias. Como ferramenta de apoio à gestão, recentemente o D-DST/AIDS/HV lançou o Sistema de Monitoramento Clínico (SIMC) 24, que permite aos gestores o acesso à relação de pacientes que ainda não iniciaram o tratamento, ou seja, que correspondem ao gap de tratamento, e necessitam intervenções oportunas do serviço.
No nível da assistência, o atendimento com prontidão aos pacientes recém-diagnosticados e imediatamente referenciados para o cuidado em HIV melhora a vinculação dos pacientes no serviço 25. Houve diminuição na proporção de serviços que atendem a esses pacientes em consulta médica no mesmo dia. Os pacientes são atendidos em até uma semana, em consultas com duração de 45 minutos ou mais, porém, sem hora marcada na metade dos serviços.
O estabelecimento de fluxogramas assistenciais é, em boa parte, atribuição do gerente ou responsável técnico local. Entre os fluxogramas tecnologicamente complexos e prioritários nos serviços brasileiros estão a promoção e o monitoramento sistemático da retenção dos pacientes ao seguimento e à adesão ao tratamento. Entre o conjunto de medidas que podem ser realizadas pelo serviço para promover a adesão ao tratamento, o agendamento de consultas em até 15 dias após o início da terapia antirretroviral foi mantido em apenas pouco mais da metade dos serviços. O acompanhamento semanal após a introdução da terapia antirretroviral, até que haja adaptação na vida do paciente, é extremamente importante para que se estabeleça uma relação de confiança, respeito e corresponsabilidade entre a equipe de saúde e o paciente, a fim de assegurar a adesão ao serviço e ao tratamento.
Entre os serviços que relatam realizar de alguma forma a convocação de pacientes que faltam à consulta médica agendada, a minoria convoca todos os faltosos, e mesmo com o aumento de 2007 para 2010, não chega à metade o número de serviços que reportaram atender no mesmo dia os pacientes faltosos que procuram o serviço sem agendamento. A falta às consultas médicas de seguimento é um fator preditor da não adesão 26, e o fortalecimento da busca do paciente faltoso no primeiro ano de seguimento pode diminuir a morbidade relacionada a estes pacientes 27, reengajá-los no cuidado 28 e melhorar a retenção deles no serviço.
O Questionário Qualiaids contempla apenas as dimensões organizacionais da qualidade. Além disso, neste estudo foram consideradas apenas as variáveis relacionadas às etapas analíticas de tratamento e retenção, mas cabe ressaltar que as outras etapas também devem ser avaliadas e monitoradas constantemente dentro do serviço.
Por se tratar de um estudo censitário por adesão, 34% dos serviços existentes em 2007 e 41% dos existentes em 2010 não entraram na análise comparativa por não participar de uma das aplicações. As características desses serviços foram reportadas em outros momentos pela equipe de pesquisa 11. Porém, a distribuição dos serviços analisados contempla a diversidade de localizações e de tipos de serviços que atendem a pessoas que vivem com HIV no Brasil.
Embora o Questionário Qualiaids tenha durante a última década mantido bom poder de discriminação, as transformações que ocorreram no campo do cuidado em HIV/aids indicaram a necessidade de adaptação do questionário. A validação de um novo Qualiaids foi concluída em 2016. Com a adoção pelo Brasil do protocolo do tratamento como prevenção, milhares de pessoas deverão iniciar a terapia antirretroviral. Simultaneamente, o desejável aumento da sobrevida dos pacientes implicará a maior busca de assistência nos serviços.
Desse modo, a qualidade em serviços de saúde deve ser pensada sempre de modo incremental. O uso de metodologias de monitoramento da qualidade, como o Qualiaids, que contempla indicadores de processo e valoriza condições necessárias para o cuidado contínuo de pessoas que vivem com HIV, é imprescindível ao se tratar de iniciativas de aprimoramento da qualidade da assistência em saúde. Em que pesem os limites de abrangência das dimensões da qualidade do Questionário Qualiaids, os resultados conformam uma avaliação do desempenho geral da assistência no SUS para pessoas que vivem com HIV, e que pode ser imediatamente utilizada por todos os níveis de gestão e gerência do programa e dos serviços. Seu desejável impacto na qualidade depende, entretanto, da sua adequada utilização por todos esses níveis.
Nosso estudo mostrou que permanecem problemas dentro do fluxograma geral da assistência dos serviços brasileiros no que diz respeito à organização de ações que promovem a retenção dos pacientes no serviço e a adesão ao tratamento.
Considerando que a trajetória dos pacientes, geralmente de anos, difere com períodos de maior e menor adesão ao tratamento ao longo do seguimento, e que as ações para a promoção e o monitoramento da retenção e da adesão devem ocorrer de forma simultânea no serviço, para garantir a permanência dos pacientes em seguimento é necessário que os serviços realizem ações de promoção e monitoramento voltadas a todos os pacientes e ofereçam suporte ao tratamento de acordo com as necessidades de cada um.
Assim, propusemos na Figura 2 um quadro referencial que reúne todas as práxis necessárias para que os serviços identifiquem e reforcem as ações de promoção, monitoramento e suporte à retenção e adesão ao tratamento. Essas ações estão contidas na organização geral da assistência e são realizadas baseando-se num suporte adequado de recursos, sejam eles providos pela rede assistencial ou pelo próprio serviço.
O modelo também busca “traduzir” a meta 90-90-90 proposta pelo UNAIDS em ações assistenciais concretas. Esperamos que, com base nele, os gestores sejam sensibilizados a avaliar e monitorar os indicadores de estrutura e processo relacionados à retenção e à adesão ao tratamento nos serviços brasileiros e que, simultaneamente ao alcance da meta 90-90-90, possam desenvolver estratégias de busca e reengajamento daqueles que não estão em acompanhamento nos serviços.