versão impressa ISSN 1414-462Xversão On-line ISSN 2358-291X
Cad. saúde colet. vol.23 no.1 Rio de Janeiro jan./mar. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/1414-462X201500010002
The emergence and re-emergence of infectious diseases poses challenges to public health, demanding priority health actions to governments and the scientific community, while improving health surveillance, good laboratory infrastructure and compliance with biosafety measures. Transmissible spongiform encephalopaties are a group of neuro-degenerative infections caused by a "naked" infectious agent, with protein elements in its structure, but without genetic material. They are highly stable agents, resistant to most decontamination processes used routinely on health services, therefore representing a public health hazard. The present study aims at analyzing deaths registered in Brazil caused by prions, and establishing biosafety measures related to risks for the health professionals, in order to prevent occupational diseases. A survey of deaths from prion disease was made in Brazil from January 2005 to December 2010. The Mortality Information System (SIM) of the Brazilian Ministry of Health was used to obtain these data. We identified 1 case of Kuru and 132 cases of Creutzfeldt-Jakob disease of the total 171,223 deaths caused by infectious and parasitic diseases. Prions were classified according to risk and the biosafety measures were identified.
Key words: prions; mortality; exposure to biological agents; health evaluation
Os impactos socioeconômicos e culturais registrados na contemporaineidade expressam importantes mudanças de hábitos, além de consolidarem uma noção de modernidade baseada no consumo de produtos que são apresentados no mercado como cientificamente testados e tecnologicamente avançados, incluindo os produtos que estão no âmbito do setor da indústria alimentar, seja como ração para animais, seja para o consumo humano, existindo uma evidente vinculação entre ambos.
Em 1986, a Europa passou por uma importante crise nesse setor da economia, causada pela contaminação dos rebanhos, especialmente os ingleses, acometidos pela encefalopatia espongiforme bovina (EEB). Em 2001, a Grã-Bretanha confirmou 177.000 casos de EEB. Ao mesmo tempo, outros países da Europa, como Irlanda, Suíça, França e Portugal identificaram surtos epidêmicos1. Esses surtos desencadearam a contaminação, em humanos, por uma variante da doença, sendo registrados, no mesmo período, vários casos da doença de Creutzfeldt-Jakob (DCJ), de caráter neurodegenerativo e fatal. Esses eventos representaram a configuração da emergência de uma grave doença, transmitida por alimentos, carnes e derivados, que estão na pauta econômica dos países, para o consumo interno e para o comércio de exportação, o que favorece a dissiminação da doença em termos globais, exigindo da saúde pública o controle da transmissão. Esse monitoramento apresenta enorme complexidade, uma vez que envolve a combinação e a cooperação de diversas instâncias científicas, políticas, econômicas e admistrativas, como por exemplo os produtores e os governos, através de suas representações no campo da agricultura e da pecuária, as áreas econômicas, os profissionais dos diversos campos da saúde pública, dentre outros. Destaca-se também que as encefalopatias estão vinculadas aos sistemas culturais, ocorrendo em sociedades tribais que praticam o canibalismo. Acentua-se que o controle das doenças priônicas exigem significativos esforços dos sistemas de vigilância sanitária e se constituem em desafios para a contrução de mecanismos e ações eficazes de prevenção, não prescindindo da essencialidade multidisciplinar2 , 3.
Durante anos, pesquisadores propuseram que as encefalopiatias espongiformes transmissíveis (EET) eram causadas por "vírus lentos"; no entanto, nenhum vírus foi isolado. Em meados dos anos 1960, foi levantada a possibilidade de que o agente pudesse ser desprovido de ácidos nucleicos ou simplesmente uma proteína. Estudos posteriores demonstraram que o agente scrapie tem propriedades químicas similares à proteína, sustentando a hipótese de que se tratava de uma proteína. Em 1986, Prusiner introduziu o termo príons para descrever a pequena partícula proteica infecciosa demonstrando ser o componente essencial do scrapie 4.
As EET humanas incluem a DCJ, Kuru, síndrome de Gerstmann-Sträussler-Scheinker (GSS), insônia familiar fatal (IFF) e nova variante da DCJ (vDCJ)5. de todos os casos, 85% estão relacionados à DCJ, 10 a 15% à IFF e menos de 1% às infecções iatrogênicas6 , 7.
Kuru foi descrito, em 1957, como a causa mais comum de morte entre as mulheres na população da Nova Guiné, devido ao ato ritual de canibalismo, no qual o cérebro e outros órgãos eram destinados às mulheres, enquanto que os homens ingeriam os músculos dos cadáveres2 , 8.
Uma nova variante da doença, vDCJ, foi relatada em março de 1996 pelo governo inglês. Foram dez casos em pacientes do Reino Unido. Esse relatório atraiu a atenção ao afirmar que a encefalopatia espongiforme bovina (BSE) pode ser propagada aos seres humanos. A partir de de junho de 2014, foram relatados 177 casos de vDCJ no Reino Unido, 27 na França, 5 na Espanha, 4 na Irlanda, 4 nos Estados Unidos, 3 na Holanda, 2 em Portugal, 2 na Itália, 2 no Canadá, 1 no Japão, 1 na Arábia Saudita e 1 em Taiwan9.
Países sem casos da doença também podem ter sido expostos aos príons devido à importação de bovinos, ou de seus derivados, de países afetados pela doença. Além disso, ressalta-se a visita de estrangeiros ao Reino Unido durante os anos de 1980, quando teriam sido expostos ao agente10. Esses fatos representam um importante risco para todos os países. Como forma de detectar precocemente a vDCJ, transmitida pelo consumo de carne de gado contaminado com a EEB, a Organização Mundial de Saúde (OMS) vem propondo uma vigilância global de todas as formas de DCJ, como recurso para identificação da vDCJ.
O Regulamento Sanitário Internacional (RSI) adotado em 1951 e administrado pela OMS representa o mais importante instrumento legal relativo ao controle de doenças infecciosas, abrangendo procedimentos visando limitar a transmissão de doenças infecciosas por meio do tráfego internacional de produtos, insumos e pessoas.
A implantação da vigilância para a DCJ, no sentido de detecção precoce da vDCJ, embasa-se na notificação e busca de casos suspeitos da doença, em todas as suas formas, e na integração do sistema de vigilância epidemiológica, serviços de neurologia e de suporte ao diagnóstico laboratorial. Assim, a DCJ é uma das doenças de importância em saúde pública, de notificação compulsória11.
O objetivo geral deste estudo é identificar os óbitos ocorridos no Brasil por patologias relacionadas aos príons, para estabelecer o risco ao qual estariam expostos os profissionais de saúde e determinar os critérios de contenção e os requisitos de proteção relativos ao manejo de príons, no sentido de prevenir doenças ocupacionais.
Para alcançar os objetivos foi feito um levantamento dos óbitos por doenças priônicas, no Brasil, no período de janeiro de 2005 a dezembro de 2010, utilizando como fonte de obtenção de dados o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde.
O SIM é um sistema de informações de referência nacional onde são registradas as causas de morte baseadas na Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), implantada desde 1996 pela OMS e que atualmente encontra-se na décima edição12. Para tanto, é utilizada a Declaração de Óbito, que é padronizada nacionalmente.
A população do estudo foi representada pelos óbitos por doenças priônicas. O período de abrangência do estudo correspondeu aos últimos seis anos de dados disponibilizados pelo SIM, ou seja, de 2005 a 2010. Para tanto, foi necessário inicialmente identificar os óbitos por doenças infecciosas, contidas no capítulo I - "Algumas doenças infecciosas e parasitárias", categorias A00 a B99 da CID. Para essa identificação foram adotados os seguintes critérios de exclusão:
óbitos por doenças cujos agentes etiológicos não puderam ser identificados;
óbitos por doenças infecciosas não especificadas;
óbitos por doenças nas quais poderiam haver mais de um agente etiológico envolvido.
A partir da análise do Capítulo I, identificou-se o código que classifica as doenças priônicas dentro da categoria das infecções virais do sistema nervoso central, A80 a A89, sendo que as subcategorias nas quais se enquadram as doenças priônicas: A81.0 (doença de Creutzfeldt-Jakob) e A81.8 (outras infecções por vírus atípicos do sistema central - Kuru).
O agente etiológico das doenças priônicas foi classificado quanto ao risco, com base na "Classificação de Risco dos Agentes Biológicos", do Ministério da Saúde13.
Os dados foram obtidos através do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (SUS), que disponibiliza as informações pela Internet, através do software Oracle 10 G.
Como método de análise foi empregada a distribuição de frequência absoluta e os dados foram analisados no programa Statistical Package for the Social Science (SPSS) versão 16.0.
Todos os dados utilizados nesta análise são de domínio público e preservam a identidade dos indivíduos.
Foram levantados pelo estudo, no período de 2005 a 2010, 282.187 casos de mortes por doenças infecciosas e parasitárias no Brasil, sendo que 110.964 casos (39%) foram excluídos.
Do total de 171.223 óbitos causados por doenças infecciosas e parasitárias, foi identificado 1 caso de Kuru e 132 casos de DCJ, distribuídos ao longo dos 6 anos de pesquisa (Figura 1).
Das EET humanas, a DCJ foi responsável pela maioria dos óbitos registrados (99,2%) em todo o período estudado.
Foi observado que a faixa etária onde houve maior número de óbitos é a compreendida entre 60 e 69 anos (Tabela 1). Comparando o número de óbitos do período estudado, as faixas etárias que apresentaram menores valores foram: ≤19, 20 a 29 e 30 a 39 anos.
Tabela 1. Número de óbitos por faixa etária, no Brasil, de 2005 a 2010
Encefalopiatias espongiformes transmissíveis/idade (anos) | ≤19 | 20–29 | 30–39 | 40–49 | 50–59 | 60–69 | 70–79 | 80–89 |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Doença de Creutzfeldt-Jakob | 1 | 1 | 1 | 14 | 19 | 48 | 26 | 5 |
Kuru | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | 0 | 0 | 0 |
Foi observado, em ambos os gêneros, frequências nos óbitos bem próximas. O gênero feminino apresentou 51,1% dos óbitos e o masculino, 48,9%.
A distribuição das ocorrências de mortes por EET por região geográfica apresenta a seguinte situação: a região que apresenta o maior número de notificações é a Sudeste, com 84 casos (63,2%), seguida da região Sul, com 26 casos (19,5%), região Nordeste com 14 (10,5%) e região Centro-Oeste com 9 casos (6,8%).
A Figura 2 apresenta o número de óbitos ocasionados por EET distribuídos geograficamente pelo Brasil.
Figura 2. Distribuição espacial dos óbitos por encefalopiatias espongiformes transmissíveis pelos estados brasileiros, no período 2005-2010
Entre as EET, Minas Gerais foi o único estado brasileiro a notificar um caso de Kuru.
A exclusão de 39% do total de casos levantados se deve ao fato de que a CID-10 fornece códigos relativos à classificação das doenças e dos problemas relacionados à saúde através dos sintomas e sinais. A cada estado de saúde é atribuída uma categoria única à qual corresponde um código, que contém até seis caracteres. Tais categorias podem incluir um conjunto de doenças semelhantes, que muitas vezes são inespecíficas quando se busca identificar o agente etiológico causador da doença.
O aumento no número de EET observado nos dois últimos anos da pesquisa pode ser determinado pela evolução e popularização dos exames de diagnóstico mais sofisticados. As EET não possuem um teste laboratorial específico para detectar precocemente a infecção pelos príons. Atualmente, os exames do líquido cefalorraquidiano, ressonância magnética (RM) e tomografia computadorizada (TC) detectam alterações no sistema nervoso, que também podem ser encontradas em outras doenças neurológicas, dificultando o diagnóstico.
O eletroencefalograma (EEG) pode mostrar alterações observadas em estágios avançados da doença, auxiliando na confirmação diagnóstica.
O diagnóstico só é realizado quando o paciente já exibe sintomas, como a demência. O exame de proteína 14-3-3 no líquido cefalorraquidiano tem sido utilizado como um marcador de DCJ (positivo em mais de 90% dos casos de DCJ e 50% na vDCJ). Essa proteína neuronal está envolvida em sinalização de células e está presente em altas concentrações no sistema nervoso central (SNC). Pode ser liberada no líquor em inúmeras condições patológicas e neurológicas que afetam a integridade neuronal e por isso sua presença no líquor não é específica para DCJ, não sendo útil para testes de screening geral da doença14 - 16. Contudo, na presença de um conjunto de características próprias da doença, a identificação de 14-3-3 no líquor tem um alto grau de especificidade e sensibilidade para o diagnóstico das formas de DCJ. Porém, o diagnóstico definitivo só é alcançado por intermédio do exame neuropatológico confirmatório, no qual há a necessidade de obtenção do tecido cerebral do paciente, obtido após a morte por meio de necropsia, para estudo histopatológico, imunohistoquímico e/ou aplicação de outras técnicas especializadas como Western blot, Elisa e PCR, que permitem demonstrar a presença da proteína priônica patógena2 , 10 , 16 - 29.
Estudos feitos a partir de amostras do córtex frontal e utilizando uma técnica denominada Real-time QuIC Analysis (RT-QuIC) têm demonstrado uma sensibilidade e especificidade de 89 a 100% para o diagnóstico das formas de DCJ16 , 30.
No Brasil, o material biológico (sangue, líquor e amostras do encéfalo) devem ser encaminhadas ao Laboratório Central de Saúde Pública (LACEN) estadual, que enviará as amostras para confirmação diagnóstica ao Centro Colaborador correspondente, de acordo com o fluxo de amostras definido pela Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde. A confirmação é feita através da utilização da técnica neuropatológica padrão (biópsia do cérebro ou necropsia) e teste imunocitoquímico (Western blot ou PCR) da PrP protease resistente e/ou presença de fibrila associada aos scrapies 31.
O período de incubação da DCJ é prolongado, e no homem pode atingir várias décadas (12 a 30 anos), assim, o maior número de óbitos acontece nas faixas etárias mais avançadas. Os achados desta pesquisa demonstram esse fato32 - 35.
É importante ressaltar que a transmissão da doença é influenciada por diversos fatores, incluindo a via de transmissão, quantidade de material infectado e a susceptibilidade do hospedeiro. Casos de infecção assintomática têm sido reconhecidos experimentalmente e mais recentemente foram também identificados em seres humanos9 , 10 , 36 , 37.
Na distribuição das ocorrências de óbitos por EET por região geográfica e por estados brasileiros (Figura 2), observa-se que os estados onde houve maior número de registros foram: São Paulo (56), Rio de Janeiro (15), Minas Gerais (11) e Rio Grande do Sul (11). Isso demonstra uma maior estruturação da rede diagnóstica e da vigilância epidemiológica nas regiões Sudeste e Sul. Enquanto que não há dados de ocorrência nos estados da região Norte e em alguns estados da região Nordeste.
As deficiências nos sistemas regionais de vigilância epidemiológica estão diretamente relacionadas às atuações das Secretarias Estaduais de Saúde. A baixa representatividade dos óbitos de doenças priônicas no país pode ser resultado de uma tendência na notificação dos casos de maior gravidade, dos hospitalizados e daqueles que estão sendo focalizados pelos meios de comunicação em detrimento ao restante. Essa evidência de subnotificação pode impedir a identificação de tendências, fatores de risco, podendo gerar interpretações que concluam a ausência de ações de controle. Porém, é importante destacar que a dificuldade no diagnóstico precoce pela ausência de biomarcadores específicos também podem levar à deficiência no sistema de vigilância epidemiológica das EET.
Não existe tratamento específico para nenhuma das doenças priônicas. A doença ainda é fatal em todos os casos diagnosticados38. Como a doença é, em geral, rapidamente progressiva, pacientes desenvolvem alta dependência e requerem acompanhamento permanente39. Os profissionais de saúde e os parentes devem ser orientados quanto aos cuidados com o paciente, bem como quanto às medidas de prevenção de transmissão da doença.
Deve-se ter em conta que o potencial infeccioso dos diferentes tecidos e órgãos dos pacientes com EET pode variar desde muito alto até muito baixo ou indetectável. Dessa forma, os príons são encontrados com maior frequência e concentração no SNC, especificamente cérebro e medula espinhal, e retina/nervo ótico. A infectividade é menor em fluido cerebrospinal/líquor e órgãos como pulmões, fígado, rim, baço, amígdalas, linfonodos e íleo. Nenhuma infectividade foi detectada em tecidos ou órgãos como coração, músculos, tecido adiposo, gengiva, tireoide, próstata, testículos, útero e ovários2 , 10 , 22 , 38 , 40 , 41. O Advisory Committee on Dangerous Pathogens' Transmissible Spongiform Encephalopathy, do Departamento de Saúde do governo britânico, salienta que as excreções, secreções e fluidos corporais (incluindo saliva, sangue e líquido cefalorraquidiano) são de baixa infecciosidade. Assim, o contato com pequenos volumes de sangue (incluindo os acidentes por inoculação) é considerado de baixo risco ocupacional42. Como são agentes cujo período de incubação é muito longo, o estudo retrospectivo de determinação da transmissão ocupacional da doença é dificultado. Apesar disso, existem estudos sobre os relatos de casos da doença de Creutzfeldt-Jakob esporádica (sCJD) entre profissionais da saúde43 - 49.
Alcalde-Cabero et al. 43 estudaram o levantamento da incidência de sCJD nos países componentes da rede europeia denominada European Creutzfeldt Jakob Disease Surveillance network (EuroCJD) e identificaram 8.321 casos, dos quais 202 eram profissionais de saúde (2,4%). Destes, 65 eram médicos ou dentistas e 137 eram outros profissionais da saúde. Entre as especialidades médicas com maior número de relatos estavam: clínica geral (9), cirurgia (7), medicina interna (7), oftalmologia (3) e patologia (2); além da odontologia (4). A partir do comparativo desses dados com um estudo de revisão bibliográfica entre os anos de 1989/2011, concluem que não há um risco aumentado de ocorrência de sCJD entre profissionais de saúde. Entretanto, ressaltam a impossibilidade de exclusão da probabilidade de haver um risco ocupacional em circunstâncias específicas, como por exemplo nas neurocirurgias e durante o manejo em laboratório de amostras biológicas de pacientes com EET2 , 10 , 38 , 41 , 43 - 47 , 50. As medidas preventivas e de precaução para o manejo de materiais biológicos devem ser adotadas em consequência do reconhecimento da infecciosidade dos príons e de sua resistência aos métodos convencionais de inativação.
Casos iatrogênicos da DCJ, hoje raríssimos, já foram relatados, como o uso de hormônios hipofisários extraídos de cadáveres, transplantes de córnea, aloenxertos de duramáter e materiais neurocirúrgicos contaminados2 , 38 , 51 , 52.
O príon é um agente infeccioso desprovido de material genético (DNA e RNA) e composto apenas por proteína (PrPsc). Essa proteína possui aproximadamente 250 aminoácidos e é quase idêntica a uma proteína produzida normalmente pelas células do SNC, denominada príon celular (PrPC), que possui várias funções, como proteção e diferenciação neuronais28. A estrutura química da PrPsc proporciona à molécula priônica forte estabilidade química e insolubilidade, o que torna a proteína altamente resistente aos principais agentes físicos e químicos51 , 52.
Uma característica particular dos príons é a resistência à inativação por procedimentos físicos ou químicos, como o congelamento, dessecação, calor do cozimento normal, da pasteurização e os métodos usuais de desinfecção química e calor utilizados usualmente nos serviços de saúde. É resistente a 90°C por 1 hora, em calor seco a 160°C por 24 horas e à autoclavação por 121°C por 20 minutos. É resistente às proteases gastrintestinais (tripsina, pepsina, nucleases, etc.), ao pH baixo (por exemplo, o pH do estômago de boi é 2,2). É também resistente à maioria dos desinfetantes (etanol, óxido de etileno, Lysol, álcool iodado, amônia, peróxido de hidrogênio, ácido peracético, ácido hipocorídrico ou formaldeído, podendo resistir a uma solução formolizada a 20% durante 4 meses). São resistentes à irradiação ionizante (até 150 kJ) e ultravioleta (até 2540 A), dessa forma apresentando atividade residual de sobrevivência por longo tempo no meio ambiente10 , 22 , 38 , 40 , 41 , 53 - 56.
Para os materiais termorresistentes, é recomendada a autoclavação a 134°C por um tempo não inferior a 18 minutos ou a 132°C por 1 hora57 - 59. Além disso, quando há a incorporação de um procedimento de desinfecção prévia, com soluções químicas como NaOH ou hipoclorito de sódio, por 1 hora, objetivando a redução da carga microbiana, é possível a esterilização em autoclaves gravitacionais à temperatura de 121ºC por 1 hora10 , 60.
Para os materiais termossensíveis recomenda-se a imersão em hidróxido de sódio (NaOH) de solução a 2 N por 1 hora ou em hipoclorito de sódio a 5% por 1 hora5 , 10 , 42 , 61.
Salienta-se que os compostos a base de cloro e o NaOH são agentes corrosivos e não são recomendados para descontaminação de dispositivos semicríticos, tais como endoscópios; além de comprometerem a vida útil das autoclaves60.
Os resíduos resultantes da atenção aos pacientes com suspeita de DCJ ou vDCJ são considerados resíduos do grupo A5 e deverão ser acondicionados em sacos vermelhos, impermeáveis, resistentes, duplos, identificados com o símbolo de risco biológico e encaminhados à incineração61 , 62.
É importante o estabelecimento de medidas de proteção para minimizar a exposição dos profissionais ao agente biológico, e dessa forma prevenir acidentes e consequentemente a ocorrência de infecções ocupacionais. Dentre elas, destaca-se a restrição das intervenções cirúrgicas ao estritamente necessário, devendo ser cuidadosamente planejadas com antecedência e preferencialmente realizadas ao final da jornada laboral50. O número de pessoas participantes deve ser restringido ao mínimo, advertidas quanto ao risco biológico e apropriadamente protegidas com roupa descartável, dois pares de luvas, máscara e protetor facial. Qualquer material biológico desse paciente deve ser considerado material de alto risco biológico e incinerado o mais rapidamente possível, salvo que representem amostras que devam ser encaminhadas para o diagnóstico anatomopatológico ou laboratorial, para o qual devem ser acondicionados em recipientes fechados e adequadamente identificados de tal forma a advertir sobre o risco63.
As atividades referentes à necropsia são consideradas de risco. O exame post mortem deverá restringir-se ao cérebro, evitando-se a necropsia completa. Recomenda-se avaliar a utilização de equipamentos e instrumentais com a menor possibilidade de geração de partículas e aerossóis. Só serão admitidas serras elétricas se operadas em equipamentos específicos (com ar de exaustão passando por filtro absoluto) para conter os aerossóis ou se os profissionais estiverem utilizando equipamentos de proteção individual compostos por dois pares de luvas, macacão e capuz de pressão positiva, contendo filtros adequados.
Os cadáveres deverão ser acondicionados em saco morgue (bolsa impermeável) antes de sua remoção. Caso haja extravasamento de fluidos, especialmente em caso de solução de continuidade da caixa craniana ou perda de líquido cefalorraquidiano, a bolsa deverá ser forrada com material absorvente. Devido à sobrevivência do agente infeccioso no solo por longos períodos de tempo, recomenda-se que os cadáveres com a doença sejam cremados.
A despeito dos óbitos ocorridos por EET no Brasil, entre os anos de 2005 e 2010, representarem somente 0,07% das doenças infecciosas e parasitárias, a proteína priônica infecciosa, agente etiológico da doença, é resistente à maioria dos métodos de desinfecção química ou física praticados rotineiramente nos hospitais e laboratórios, o que representa um risco e requer considerações especiais de biossegurança para minimizar a exposição ocupacional e ambiental.
É necessário que todos os profissionais do setor da saúde humana e animal conheçam a magnitude do risco biológico ao qual possam estar expostos durante o tratamento dos pacientes e o manejo de material biológico.
Ressalta-se como uma das medidas fundamentais para o controle da disseminação desse agente infeccioso a proibição da doação de órgãos, de sangue para transfusão ou fabricação de produtos biológicos e farmacêuticos de pacientes com suspeita clínica ou diagnóstico confirmado de EET. Da mesma forma, as instituições universitárias não devem aceitar a doação do corpo de tais pacientes para formação acadêmica ou pesquisa.
As doenças priônicas têm períodos de incubação longos, e como não são doenças clinicamente identificáveis, a propagação das infecções por príons em seres humanos é um desafio à saúde pública. Portanto, há uma necessidade urgente de dados epidemiológicos sobre a prevalência das EET.
Apesar dos avanços obtidos pelas novas biotecnologias que utilizam as técnicas da biologia molecular para o estudo das doenças priônicas, a etiopatogenia das EET ainda, em grande parte, é dependente dos dados obtidos pela epidemiologia, para sua formulação e esclarecimento. Além disso, os estudos epidemiológicos permitem a compreensão de como se dão as intervenções humanas e artificiais, por vezes tênues e latentes, que possam resultar em surtos pela ruptura das relações ecologicamente estáveis. Porém, como avaliar a prevalência das EE, salvaguardando os direitos dos participantes do estudo, é um desafio que tem preocupado os pesquisadores, especialistas em ética e autoridades de saúde pública.
Outro aspecto que deve ser destacado diz respeito ao reconhecimento das EET e dos casos suspeitos dessas doenças através da cuidadosa aplicação dos critérios clínicos para o diagnóstico.
O Brasil vem buscando a criação de instrumentos legais de controle dessas doenças, estabelecendo medidas sanitárias e regulamentos relacionados principalmente à prevenção da transmissão da vDCJ e da EEB, e sob a responsabilidade, em nível nacional, dos órgãos ligados à vigilância sanitária (Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa), e os de agricultura (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - MAPA).
No âmbito do MAPA, medidas como a proibição do uso de farinha de carne e ossos e de proteínas derivadas de ruminantes, com introdução de sistemas de vigilância, induziram uma redução de casos de EEB em bovinos. A exclusão de material bovino de risco da alimentação humana, tais como cérebro, olhos, tonsilas, medula espinhal e íleo, permitiram a prevenção da transmissão do agente da EEB para os seres humanos.
No âmbito do Ministério da Saúde (MS), a Anvisa publicou duas resoluções: RDC no 305, de 2002, e a RDC no 68, de 2003, que estabelecem medidas de controle para importação, comercialização e exposição ao consumo de produtos de origem animal, além de procedimentos relativos ao tratamento adequado de materiais potencialmente contaminados com DCJ ou vDCJ.
Em 2005, o MS classificou a DCJ como doença de notificação obrigatória. A inclusão da doença nessa lista estabeleceu a notificação de casos suspeitos de DCJ em todas as suas formas, a integração do sistema de vigilância epidemiológica, serviços de neurologia e o suporte ao diagnóstico laboratorial.
No Brasil, ainda há a necessidade de estabelecer o perfil epidemiológico das EET e isso só será possível através do fortalecimentos dos laboratórios e centros de referência, viabilizando a divulgação e atualização do conhecimento sobre a matéria e buscando grau de excelência na notificação compulsória da doença mediante elaboração e execução de projetos de pesquisa pertinentes. Esse fortalecimento exige que os espaços laborais, sob o ponto de vista das instalações, da dinâmica de trabalho e da capacitação de recursos humanos estejam perfeitamente consonantes a fim de permitir a eliminação ou a minimização de riscos para os profissionais e para o meio ambiente.