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Avaliação Fisiológica Invasiva: Do Binário ao Contínuo

Avaliação Fisiológica Invasiva: Do Binário ao Contínuo

Autores:

Daniel Chamié,
Alexandre Abizaid

ARTIGO ORIGINAL

Arquivos Brasileiros de Cardiologia

versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170

Arq. Bras. Cardiol. vol.114 no.2 São Paulo fev. 2020 Epub 20-Mar-2020

https://doi.org/10.36660/abc.20200054

Descrita por Pijls et al. em 1993 e embasada por extensa validação e dados clínicos robustos, a reserva de fluxo fracionado (FFR, do inglês fractional flow reserve) foi incorporada às diretrizes de revascularização miocárdica para guiar a necessidade de revascularização de estenoses angiograficamente intermediárias em pacientes com doença arterial coronária (DAC) estável.1-3 Os argumentos mais amplos para tal decisão são: (1) a angiografia coronária, por apresentar uma complexa estrutura tridimensional como um luminograma planar, padece de conhecidas limitações,4,5, além de possuir alta variabilidade para quantificação da gravidade de estenoses6 e baixa capacidade em predizer o significado funcional de uma estenose coronária epicárdica,7 e (2) a revascularização de estenoses coronárias estáveis apenas com base na gravidade da redução luminal determinada pela angiografia coronária não resulta em melhora de eventos cardiovasculares adversos em comparação com o tratamento clínico otimizado8 ou contra a revascularização apenas de lesões funcionalmente significativas.9-11

A premissa central da fisiologia coronária invasiva é identificar a isquemia miocárdica com resolução espacial superior (por vaso) à dos métodos não invasivos (por território), auxiliando a seleção de estenoses (e, portanto, de pacientes) mais propensas a se beneficiarem da revascularização. No entanto, apesar dos benefícios clínicos e recomendações em diretrizes, a adoção da FFR na prática clínica permanece baixa (< 10%) na grande maioria dos laboratórios de cateterismo ao redor do globo. Custo, acréscimo de tempo ao procedimento, desconforto dos pacientes ao estímulo hiperêmico ou contra-indicações à utilização da adenosina, bem como dificuldades de interpretação dos traçados fisiológicos em algumas situações anatômicas (p. ex. lesões em série/difusas) são algumas das explicações para a baixa adoção da FFR.

Recentemente, a introdução da reserva de fluxo instantâneo (iFR, do inglês instantaneous wave-free ratio) renovou o interesse pelo uso da fisiologia invasiva. A iFR é mensurada em repouso - dispensando a necessidade de hiperemia máxima -, o que simplifica a utilização da fisiologia coronária em diversos cenários anatômicos, com menor incremento de tempo e menos sintomas adversos para os pacientes. Sete anos após sua descrição inicial por Sen et al.,12 dois estudos randomizados de grande porte documentaram a não-inferioridade da iFR em comparação com a FFR quanto à ocorrência de desfechos clínicos adversos, quando utilizadas para guiar revascularização de estenoses coronárias.13,14 Esses resultados foram obtidos a despeito da discordância diagnóstica descrita na casa de 20% entre os dois índices.15

Na presente edição dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, Vieira et al.16 descrevem sua experiência inicial com o uso da iFR para guiar a decisão de revascularização coronária em 96 lesões de 52 pacientes acumulados ao longo de quatro anos. Destas, 56 estenoses (58,3%) foram graduadas como intermediárias (diâmetro de estenose entre 41% e 70%), e 40 (41,7%) classificadas como graves (diâmetro de estenose entre 71% e 90%) pela estimativa visual da angiografia coronária. Em concordância com extensa validação prévia, os autores utilizaram o valor de iFR ≤ 0,8915 para classificar as lesões como hemodinamicamente significativas e decidir pela necessidade de revascularização. A realização de intervenção coronária percutânea (ICP) com implante de stent foi o desfecho primário utilizado, a qual foi realizada em 32% de todas as lesões estudadas. Entretanto, a mediana e o intervalo interquartil dos valores de iFR observados nas estenoses intermediárias (0,92 [0,82 a 0,94]) e graves (0,79 [0,61 a 1,00]) chama atenção para o fato de que uma proporção não desprezível de lesões foi tratada com stent, a despeito da ausência de impacto fisiológico significativo pela avaliação com iFR - particularmente aquelas de gravidade intermediária (Figura 4 de Vieira et al.16). Esses achados corroboram a noção de que a informação fisiológica é apenas uma peça (importante) do quebra-cabeças da tomada de decisão, a qual deve levar em conta outros fatores não menos relevantes, como a apresentação clínica, presença, tipo, e frequência de sintomas anginosos, localização da lesão alvo, função ventricular esquerda e perspectiva de prognóstico no longo prazo.

Embora o alívio de uma estenose significativa por intervenção mecânica melhore os sintomas anginosos de forma mais eficiente do que o tratamento clínico otimizado,17,18 essa prática não resulta em maior redução de eventos clínicos duros como morte e/ou infarto.8 É digno de nota que cerca de metade dos pacientes que possuem lesões com FFR “positivo” têm prognóstico de longo prazo favorável quando mantidos apenas em tratamento clínico.19,20 Fica claro, portanto, que há uma oportunidade significativa para otimização de alguns pacientes estáveis a despeito da significância fisiológica da lesão em investigação, particularmente aqueles assintomáticos ou oligossintomáticos com lesões que promovam pouco impacto fisiológico. Estes argumentos permitem alguma discordância quanto ao desfecho de Vieira et al.,16 ter sido decorrente do implante ou não de stents. Ao contrário, essa decisão deveria passar por uma avaliação muito mais completa do que apenas um valor “positivo” ou “negativo” de um índice diagnóstico.

Embora a decisão clínica de se revascularizar ou não uma estenose coronária seja binária, o que acaba justificando a busca por pontos de corte que definam o caminho para uma estratégia ou outra, advogamos que a fisiologia coronária invasiva seja analisada de forma mais compreensiva, contínua e interpretativa. Nesse sentido, à semelhança do que foi demonstrado no clássico estudo de Hachamovitch et al.,21 existem evidências robustas que apontam para uma associação linear entre FFR e o risco de eventos cardíacos adversos, sendo que as taxas de eventos adversos aumentam proporcionalmente à redução nos valores de FFR, revelando um contínuo de risco muito além de um ponto de corte fixo.22,23 Ademais, as lesões com valores mais baixos de FFR são as que experimentam os maiores benefícios absolutos com a ICP.23 Contrariamente, em lesões com valores de FFR nas cercanias do seu ponto de corte, os benefícios da revascularização são menores e, por vezes, incertos.

Embora a isquemia detectada no nível do vaso coronário - em outras palavras, “positivo” ou “negativo” como a somatória de todas as estenoses ao longo do vaso avaliado - tenha sido a base histórica para a utilização da FFR, uma série de avanços tecnológicos têm permitido uma abordagem mais global e sistematizada na forma de se avaliar a presença de isquemia miocárdica. Por meio de pullback manual do sensor de pressão, o índice não hiperêmico iFR permite avaliar o impacto funcional de cada estenose existente no segmento do vaso alvo; ademais, sobrepor esses resultados às imagens angiográficas fornece um valioso co-registro anatômico-funcional. Esta técnica permite caracterizar com maior precisão a distribuição do impacto fisiológico da doença coronária, possibilitando a identificação de doença difusa e focal (frequentemente coexistentes no mesmo vaso), além de quantificar a contribuição de cada uma para o valor de iFR no nível do vaso. Além disso, é possível simular diversas estratégias de ICP e estimar qual será o resultado fisiológico da possível intervenção. Consequentemente, o resultado é uma evolução do binário positivo/negativo para uma avaliação mais compreensiva do impacto fisiológico da doença coronária, e do potencial benefício da ICP, caso essa seja a estratégia terapêutica escolhida. Isso se mostrou particularmente importante no recente estudo piloto DEFINE-PCI.24 Em uma população de 500 pacientes submetidos à ICP com implante de stent considerado bem-sucedido por critérios angiográficos, a realização da iFR pullback demonstrou que 24% dos casos tratados ainda persistiam com estenoses fisiologicamente significativas. É digno de nota o achado de que mais de 80% das perdas de unidades de iFR eram focais e, portanto, facilmente resolvidas, reafirmando a limitação da angiografia em identificar estenoses fluxo-limitantes. Em casos com lesões seriadas ou doença difusa, o fluxo hiperêmico através de uma estenose é afetado pela presença de outra estenose no mesmo vaso, tornando a interpretação dos valores de FFR mais difícil neste frequente cenário anatômico. Por outro lado, o fluxo de repouso é estável através de quase todo o espectro de gravidade das estenoses coronárias. Portanto, mudanças nas pressões de repouso são mais previsíveis, e a contribuição de cada estenose ao longo do vaso pode ser mais facilmente estimada, representando uma vantagem prática da iFR sobre a FFR.25,26

Portanto, consideramos que a introdução de novos índices (p. ex: FFR derivado da angiografia e da angiotomografia coronária, índices de repouso, dentre outros) e novas possibilidades de entendimento do impacto funcional de estenoses coronárias têm promovido crescente interesse no campo da fisiologia invasiva e não invasiva na “era pós-FFR”. Continuamos aguardando o desenvolvimento de novas ferramentas fisiológicas que permitam mensurar de forma mais fácil e acurada a isquemia miocárdica (ao invés de desfechos substitutos para tal), além de ferramentas que simplifiquem a avaliação do estado da microcirculação coronária. Esses avanços contribuirão para uma abordagem mais individualizada acerca da decisão de revascularização coronária, de como abordar a doença focal e difusa, e como proceder frente aos estados pós-infarto onde dano ocorreu à microcirculação. Até lá, avançamos na avaliação fisiológica, do binário para o contínuo.

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