versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.11 Rio de Janeiro nov. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320172211.20042017
O Benefício de Prestação Continuada (BPC) é um direito assistencial garantido pela Constituição Federal de 1988 a idosos com 65 anos ou mais de idade e a pessoas com deficiência cuja renda familiar seja de até 1/4 do salário mínimo. Com valor de um salário mínimo, em 2015 alcançou cerca de 4 milhões de pessoas. Sua implementação envolve organizações de três setores sociais: previdência social, assistência social e saúde. No caso das pessoas com deficiência, física ou mental, várias barreiras se colocam para o acesso ao benefício. Algumas delas são resultado da precariedade de mecanismos de coordenação e cooperação entre os serviços de saúde, de assistência social e previdência.
O Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA) é responsável pela gestão, coordenação, regulação, financiamento, monitoramento e avaliação do Benefício, enquanto ao INSS cabe sua operacionalização, incluindo o reconhecimento do direito e a concessão, com base nas avaliações médica e social.
Neste trabalho, discutimos como algumas barreiras de acesso encontradas por pessoas com deficiência no processo de requerimento ao benefício relacionam-se a lacunas nos mecanismos de coordenação e cooperação entre previdência, assistência social e saúde. Assim como outras políticas sociais, a natureza intersetorial do BPC decorre da adoção de princípios normativos avançados em seu desenho e formulação, mas que não foram acompanhados, na gestão, por mecanismos de coordenação que viabilizassem a cooperação intersetorial na implementação.
O artigo divide-se em cinco seções, além desta Introdução. Na primeira, descrevemos as características do BPC para pessoas com deficiência; em seguida apresentamos a metodologia da pesquisa que originou este artigo; na terceira, discutimos as categorias analíticas pertinentes ao tema; na quarta, apresentamos alguns resultados e finalmente, as considerações finais.
Desde 1988, as definições de deficiência para a concessão do BPC vêm passando por várias mudanças positivas. Até 2007, a concepção de deficiência inscrita na lei era estritamente biomédica. Os critérios de elegibilidade se baseavam na concepção de deficiência vista como incapacidade para a vida independente e para o trabalho decorrentes de anomalias/lesões corpóreas. Como resultado de um forte questionamento ao modelo biomédico da deficiência, envolvendo movimentos sociais, organizações da sociedade civil e organismos internacionais, um novo modelo de avaliação da deficiência para a elegibilidade ao BPC foi instituído em 20071 e implantado em 2009. Com base na Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) da Organização Mundial de Saúde (OMS), esse novo modelo passou a considerar as deficiências como problemas nas funções ou nas estruturas do corpo, porém dentro de um contexto social e pessoal. Funcionalidade e incapacidade passaram a ser vistos como resultado da interação entre estados de saúde, contextos ambiental, sociofamiliar e participação na sociedade. A pessoa com deficiência é considerada elegível ao benefício se apresentar (além de renda familiar per capita de ¼ do salário mínimo) impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas2. Como critério de impedimento de longo prazo, a lei considera o período mínimo de dois anos.
Com isso, a avaliação do requerente para fins de concessão do benefício, além da perícia médica, incorporou a avaliação social realizada por assistentes sociais, também do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS). Cabe aos assistentes sociais avaliar o componente fatores ambientais – ambiente físico, social e atitudes – que constituem barreiras para a participação da pessoa com deficiência na sociedade e alguns domínios do componente atividades e participação. O componente funções do corpo, alguns domínios do componente atividades e participação. Quesitos específicos sobre prognóstico desfavorável, comprometimento de estrutura do corpo e impedimentos de longo prazo são avaliados pela perícia médica.
Apesar dos avanços na concepção e operacionalização da avaliação, a concessão do benefício ainda depende bastante do caráter subjetivo implícito a qualquer julgamento. É difícil definir parâmetros uniformes3 ou critérios claros para que cada indivíduo seja tratado do mesmo modo no processo de requerimento4. Isso se estende para a caracterização do grau de incapacidade da pessoa com deficiência. A avaliação pericial deve considerar não só a gravidade, mas o tempo que ela pode persistir, fundamental para a concessão do benefício e que não é necessariamente uma preocupação do médico que assistiu àquela a pessoa.
A avaliação também depende dos valores, percepções e mesmo do viés profissional dos envolvidos nas várias etapas do processo de concessão. A diversidade de valores, sobretudo os relacionados às diferentes culturas profissionais, podem dificultar a comunicação ou envolver concepções divergentes sobre incapacidade. Profissionais de saúde envolvidos com o diagnóstico sobre incapacidade, vida independente e participação possuem distintas compreensões, sobretudo quando se trata de pessoas com alguma deficiência física ou mental5,6. Há também diferenças entre profissionais médicos e assistentes sociais. Embora os médicos reconheçam a importância da avaliação social no processo de concessão, expressam maior resistência a essa parceria, assim como quanto aos objetivos do BPC5,7.
Os dados foram coletados no segundo semestre de 2015 junto a instituições e atores envolvidos no processo de formulação e concessão: gestores nacionais do INSS e MDS, os profissionais – técnicos administrativos; médicos peritos e assistentes sociais do INSS – e potenciais beneficiários, isto é, requerentes ao BPC. Embora não necessariamente participando do processo de concessão, que é operacionalizado pelo INSS no nível local, os assistentes sociais do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) – unidade municipal que é a porta de entrada para o atendimento à população –, também podem ter importante papel no encaminhamento de potenciais beneficiários ao INSS. Para verificar a articulação/ cooperação intersetorial no nível local entrevistamos um assistente social em cada município selecionado.
Três municípios de médio porte (regiões Sudeste, Nordeste e Norte) foram selecionados intencionalmente. Os dados foram coletados em agências com número expressivo de profissionais atuando no processo de concessão e na alta frequência de beneficiários e perfis de concessão, indicados pelo contratante da pesquisa. As entrevistas semiestruturadas buscaram apreender, de acordo com a especificidade de cada segmento, percepções e posicionamentos em relação às barreiras de acesso relacionadas aos componentes do estudo. Os profissionais do INSS e os requerentes foram entrevistados nas agências do INSS nos dias agendados para a avaliação social e/ou médica de idosos e pessoas com deficiência. Os assistentes sociais dos CRAS foram entrevistados nas sedes dos CRAS. Os gestores nacionais foram entrevistados por Skype. Foram entrevistados: 30 requerentes, 15 profissionais e 5 gestores nacionais.
Para discutir em que medida barreiras de acesso ao BPC podem estar relacionadas a lacunas na cooperação e coordenação, definimos a seguir, de forma sucinta, essas categorias, tal como orientaram a análise dos dados.
Como categoria analítica, acesso já foi amplamente estudado e aplicado nas áreas de saúde e educação, mas pouco na previdência e assistência social. Na previdência, o acesso é normatizado pela participação na estrutura contributiva. Assim, os problemas de acesso são mais investigados quanto à entrada no serviço, ou seja, as dificuldades e as facilidades que os indivíduos têm para requerer um dado benefício. Na assistência social, pelas características de sua população-alvo, a investigação do acesso implica em entender não só aspectos relativos ao momento do requerimento, mas também os relativos a restrições que antecedem e envolvem esse requerimento, como a informação sobre o benefício, as condições para requerer e acessar as agências implementadoras, bem como os valores e as atitudes dos profissionais responsáveis pelas várias etapas da avaliação. No caso das pessoas com deficiência, é importante entender como as relações entre os três setores envolvidos pode facilitar ou dificultar o acesso.
O acesso aos serviços envolve características culturais, geográficas, econômicas, organizacionais e individuais. Em nosso estudo, tomamos acesso como acessibilidade – ou seja, os componentes que facilitam ou dificultam a entrada no serviço que presta os cuidados8-10. A acessibilidade está relacionada com as características dos serviços que permitem o seu alcance e utilização, tais como sua organização, disponibilidade geográfica, capacidade de pagamento e aceitabilidade8. Além disso, influenciam o acesso fatores como idade, sexo, valores; condições de chegar e entrar nos serviços; necessidades percebidas pelo paciente ou diagnosticadas11.
Esses fatores e dimensões, originalmente analisados para o acesso a serviços de saúde, podem ser aplicados a outros serviços sociais onde há uma necessidade explícita do indivíduo, como é o caso das pessoas com deficiência que buscam o BPC. Na pesquisa, eles foram classificados em três componentes principais do acesso: o componente individual, o sociofamiliar e o organizacional. Neste artigo, discutimos especificamente as barreiras para o acesso ao BPC produzidas pelo componente organizacional. Introduzimos a discussão relacionada a lacunas na coordenação e cooperação intersetorial, entre as organizações de distintos setores envolvidos na implementação.
O estabelecimento de ações para se alcançar um objetivo de política pública é tratado pela ciência política como um problema de ação coletiva12-14. Isso implica que a provisão de um bem público não ocorre voluntariamente, mas depende de mecanismos de cooperação e de coordenação, sem os quais é improvável que se alcance resultados sustentáveis15,16.
No caso de políticas ou programas com interfaces em diferentes setores, coordenação e cooperação são ainda mais cruciais para que se alcance resultados17. Peters17 define coordenação como a necessidade de se garantir que as várias organizações envolvidas em prestar algum serviço público em conjunto não produzam redundâncias ou lacunas. Os níveis de coordenação podem ser mínimos ou máximos. Nos mínimos, as organizações simplesmente conhecem as atividades de todos os envolvidos e procuram não duplicar ou interferir. Nos níveis máximos, há controles mais rígidos sobre as atividades das organizações e meios para fazer com que as lacunas nos serviços sejam supridas17. Mecanismos de coordenação permitem ajustar políticas e programas intersetoriais para aumentar suas interconexões horizontais, com o possível compartilhamento de fontes financeiras18,19.
Cooperação é a ação em conjunto de um grupo de indivíduos para alcançar um objetivo comum14. Trata-se de uma interação entre setores para se conseguir maior eficiência em suas ações, envolvendo a otimização de recursos ao mesmo tempo que se estabelecem formalidades nas relações de trabalho. O compartilhamento de informação é o primeiro passo para a cooperação18,19.
Ainda que dentro de um arcabouço jurídico-normativo, as atividades relacionadas à implementação de uma política podem ser organizadas de diferentes maneiras. Os mecanismos e os processos podem conformar distintos arranjos, dependendo do contexto local15,20. O modo como os atores envolvidos agem e criam soluções, a partir das regras, produzem as formas locais de implementação.
Ainda que dependentes de relações top-down que seguem as hierarquias setoriais, a implementação de políticas intersetoriais no nível local podem, em maior ou menor grau, se aproximar das formas horizontais de gestão, cuja coordenação pode ser mais ou menos frouxa e a cooperação ultrapassa as fronteiras entre órgãos e organizações. Sobretudo no nível local, as relações horizontais são respostas aos processos de implementação nos quais o cidadão tem que se relacionar com órgãos de diferentes setores sociais. Hopkins et al.21 argumentam que, embora difusa, a gestão horizontal pode ser um meio crucial para se administrar questões transversais relacionadas a certas políticas ou na prestação de alguns serviços. Podem envolver diferentes tipos de vínculos entre os atores e as organizações envolvidas: vínculos informais que facilitam as trocas mútuas; coordenação para reduzir ou eliminar a sobreposição e a duplicação e colaboração por meio de recursos, o trabalho ou os processos decisórios estão integrados em todas as organizações envolvidas. Mecanismos de gestão inadequados produzem importantes barreiras, enquanto iniciativas mais adequadas produzem sinergias e minoram os problemas de implementação, favorecendo tanto as agências implementadoras quanto os requerentes. Os resultados a seguir apresentam barreiras de acesso ao BPC relacionadas a lacunas na cooperação/coordenação intersetoriais.
As lacunas na coordenação e cooperação intersetoriais serão discutidos com foco nas relações entre a) o INSS e a assistência social e b) o INSS e a saúde.
a) Relações entre o INSS e a assistência social
As relações entre o setor previdenciário e o assistencial podem se dar dentro de um mesmo nível federativo, como por exemplo, entre o MDS e o INSS, nas comissões e reuniões para tratar da gestão nacional do benefício; entre níveis federativos distintos, entre os gestores nacionais do INSS e gestores e gerentes municipais da assistência social; dentro de um mesmo município, entre as agências locais do INSS e os CRAS.
A coordenação e a cooperação intersetoriais mais estruturadas ocorrem no nível federal, entre INSS e MDS. Várias iniciativas conjuntas foram tomadas em diferentes áreas relacionadas à implementação do BPC, como na regulamentação, no orçamento, na elaboração do novo modelo de avaliação, na capacitação de quadros do INSS e nas relações com os CRAS. Como instância formal de coordenação, foi constituído um Comitê Gestor do BPC, com a participação do MDS e do INSS, para a discussão de problemas de gestão, tomadas de decisão e encaminhamentos das decisões para os grupos técnicos.
A criação do Grupo de Monitoramento da Avaliação da Deficiência e do Grau de Incapacidade (GMADI) em 2010 e formado por técnicos do MDS e do INSS, envolvidos na definição, implantação e monitoramento do modelo de avaliação para concessão do BPC buscou coordenar conjuntamente esta área da implementação do BPC. As próprias mudanças na concepção da avaliação foram feitas em grupo de trabalho formado por profissionais do MDS e do INSS.
Existem atos normativos do MDS orientando a interação entre o INSS e a gestão municipal em relação ao processo de concessão, porém formas mais estruturadas de cooperação nos municípios acabam dependendo das iniciativas das gerências das agências locais do INSS. A cooperação costuma ser contingente, não formalizada, embora se tenha tentado estabelecer pactos por convênio, processo que acabou não indo para a frente.
A cooperação entre o INSS e a rede socioassistencial, apesar ser pactuada nas três esferas como parte do desenho descentralizado das políticas sociais, depende muito das relações políticas do governo federal com a prefeitura e a gestão municipal ou mesmo estadual. Não há uma instância formal ou instrumento legal definindo as atribuições com o objetivo de estabelecer mecanismos de cooperação. As interações e a cooperação são informais e a responsabilidade por essa interface é o serviço social do INSS.
Alguns lugares têm feito parceria, mesmo sem ter assim uma direção formal institucional […] Então o INSS […] as agências, eles conversam com os assistentes sociais dos CRAS, conversam com o município. O assistente social tem um papel fundamental nesse processo e eles buscam isso… No ano passado o MDS fez vários encontros regionais buscando tanto o servidor do INSS como servidores dos municípios, dos estados e tal. Então foi assim uníssono a necessidade dessas parcerias […] Mas tem alguns municípios que não querem, não aderem, né? ‘ Não, esse benefício é do governo federal, parará, parará… e termina..’ Mas a maioria com certeza quer, nós do INSS queremos porque pra nós é importante porque a gente melhora o nosso trabalho, nosso fluxo (profissional da gestão nacional).
Cada um dos 5.570 municípios brasileiros é autônomo para aderir a instrumentos e mecanismos de gestão conjunta entre os diferentes níveis federativos. A dimensão partidária, sobretudo quando não há incentivo monetário para aderir a políticas federais, pode ser uma barreira importante para a cooperação interfederativa. Além disso, nem todos os municípios possuem unidades do INSS, e os requerentes têm que se deslocar a outros municípios para requerer o benefício, envolvendo um maior número de atores nas relações intersetoriais. Em municípios pequenos é mais fácil que as assistentes sociais do INSS e CRAS cooperem para a resolução de certos problemas. Isso é mais complicado em municípios maiores, inclusive por problemas de rotatividade de pessoal e maior dificuldade de contato com a rede socioassistencial.
A necessidade de se estabelecer cooperação – geralmente mencionada como “parcerias” ou “colaboração” – é consensual entre gestores nacionais e também entre as várias categorias de profissionais de entrevistados nos municípios. Foram apontados pelos profissionais envolvidos na implementação do BPC problemas que poderiam ser minorados se as agências locais do INSS e os CRAS cooperassem de forma mais estruturada.
A porta de entrada para a solicitação é o agendamento para a habilitação na agência da previdência social através do número 135, serviço de call-center que fornece as primeiras informações oficiais sobre o benefício. O desconhecimento das regras pode constituir a primeira barreira. No dia agendado para a habilitação do pedido, o requerente deve levar à agência do INSS a documentação de todos os membros de seu grupo familiar para comprovação de renda e composição familiar. Contudo, a composição familiar adotada pelo benefício não é necessariamente a mesma que os requerentes adotam. Muitas vezes a informação dada pelo 135 não é compreendida sequer para que o requerente faça perguntas.
O requerente não necessita passar por um CRAS antes da primeira visita ao INSS. Mas se ele assim o faz, pode receber as informações adequadas. Nem sempre, porém, as próprias assistentes sociais dos CRAS conhecem todas as regras. Como o CRAS não tem nenhum papel formal ou autoridade no processo de requerimento e decisão sobre o benefício e as assistentes sociais estão sempre sobrecarregados com muitas outras demandas, elas esclarecem, encaminham e até apoiam no preenchimento do requerimento, mas esta não é uma iniciativa regular. O processo de requerimento só começa, de fato, na agência do INSS.
Vários entrevistados sugerem que o CRAS poderia ter algum mecanismo de cadastramento antes que o requerente chegasse até a agência do INSS. Inclusive porque, se o requerente não leva a documentação completa quando dá entrada no requerimento, ele tem prazo de 30 dias para retornar com as exigências atendidas, ou o processo é indeferido. Considerando que os requerentes são pessoas com deficiência, além da vulnerabilidade social e econômica e que grande parte vive longe dos centros onde estão as agências, o custo financeiro e emocional do deslocamento é alto.
Tanto do ponto de vista do INSS quanto do requerente, tempo e recursos são desperdiçados porque as organizações envolvidas não conseguem estabelecer mecanismos sólidos de cooperação interorganizacionais. Para isso acontecer seriam necessários outros mecanismos de coordenação por parte das instâncias superiores, além dos já existentes.
Diante da falta de informação, da vulnerabilidade, do medo de enfrentar a burocracia, recorrer a um intermediário torna-se uma solução à mão para os requerentes. Os servidores do INSS têm escassa capacidade de interferência em relação aos intermediários, porque não podem impedir que um requerente venha acompanhado de outra pessoa, que não é colocado como intermediário, mas sim como “amigo”,“vizinho”,“conhecido”.
Os técnicos administrativos se queixam muito dos intermediários, a quem os requerentes devem pagar se o benefício é deferido. Também apontam o potencial dos CRAS para a orientação dos requerentes como um caminho para minorar esse problema. É bem difundida a visão, entre os profissionais do INSS, de que se houvesse uma rede articulada entre INSS e CRAS o papel dos intermediários diminuiria muito.
Uma vez habilitado o requerimento, são agendadas a avaliação social e a perícia médica. A avaliação social consiste em uma entrevista com a assistente social do INSS, que tem total autonomia para pontuar os quesitos do formulário social, o qual, junto com o da perícia médica, compõem uma soma de pontos que determina o deferimento do requerimento. Há muitas críticas ao processo de avaliação social feito na agência do INSS. O fato da assistente social do CRAS não participar do processo de avaliação, nem de sua opinião ser levada em consideração no processo, foi visto por um entrevistado como uma falha grave do sistema.
Não há arranjos formalizados nem qualquer sistema de informações sociais sobre o requerente compartilhado entre INSS e CRAS. Existe um formulário, o Sistema de Informações Sociais (SIS), que diante de alguma dúvida o assistente social do INSS preenche e encaminha pelo próprio requerente para que o do CRAS complete com algumas informações. Mas é o próprio requerente quem tem que levar o formulário e trazê-lo preenchido, o que torna o processo bastante aleatório e lento.
Os contatos entre CRAS e INSS são iniciativas individuais e limitadas pelos prazos e metas instituídos pelo próprio atendimento do INSS, pois não há servidores disponíveis para uma articulação permanente com os CRAS. O planejamento organizacional do INSS não contempla as relações com os CRAS e as ações individualizadas podem atrasar os prazos de atendimento das agências e ameaçar as metas de desempenho. O desempenho institucional e pessoal dos servidores do INSS é avaliado e mensurado semestralmente a partir de um plano de ação anual, sendo o tempo médio de atendimento monitorado pela gerência local. A cooperação entre INSS e CRAS é iniciativa local e informal, produzindo formas de gestão horizontais. Porém, mais do que institucionalizadas, são os esforços individuais e os vínculos informais que permitem as trocas mútuas.
Como a coordenação entre as agências locais do INSS e os CRAS são precárias ou inexistentes, tampouco há qualquer acompanhamento regular dos requerentes indeferidos por parte do CRAS sobre o resultado do requerimento. A área assistencial não toma conhecimento dos casos encaminhados e indeferidos, tampouco o porquê do indeferimento. O conhecimento sobre o resultado dos processos poderia evitar novos encaminhamentos às agências do INSS de pessoas não elegíveis, assim como favorecer o apoio a indeferimentos considerados incorretos.
Muitas vezes o benefício é negado por um pequeno excedente na renda ou, no caso da pessoa com deficiência, se já há outra pessoa com deficiência beneficiária do BPC na mesma família. Esses, embora não elegíveis, são vulneráveis e com dificuldade de acesso a renda. No momento da pesquisa houve a informação por parte de um gestor nacional do INSS de que eles estavam trabalhando junto com o MDS para o requerente indeferido ser encaminhado para outra política e não ficar abandonado.
Nesse processo, as relações construídas dependem do contexto local e do envolvimento dos profissionais nas iniciativas de cooperação. Em uma das agências, após a introdução da avaliação social, segundo um entrevistado, houve uma pactuação interna para se procurar a rede social de apoio nos municípios e áreas de abrangência das agências do INSS. Esta iniciativa permitiu o estabelecimento de vínculos com instituições de pesquisa, a criação de grupos de trabalho sobre problemas específicos da região, a divulgação dos instrumentos e maior discussão nas agências do INSS, a integração com comissões e conselhos.
b) Relações entre o INSS e o SUS
A coordenação e a cooperação entre INSS e SUS coloca problemas de outra ordem. Há maior interação do INSS com os profissionais da saúde mental, sendo mais comuns as reuniões entre assistentes sociais do INSS e do SUS da área de saúde mental para o esclarecimento de mudanças, troca de experiências e busca de soluções.
Em relação às deficiências físicas ou doenças crônicas, os requerentes precisam levar laudos médicos para a avaliação pericial e não há qualquer mecanismo de coordenação ou cooperação com o SUS, pelo menos nos locais onde foi feito o estudo.
A perícia médica feita no INSS consiste em um exame que verifica o laudo médico trazido pelo requerente e avalia se a condição de saúde atestada pelo SUS é impedimento para a vida independente e o trabalho por no mínimo dois anos. É comum que o médico do SUS, além de não saber que o paciente precisa do laudo para dar entrada no BPC, tampouco saiba o que é o BPC e por isso não coloca no laudo informações que seriam relevantes para a perícia médica previdenciária. A documentação médica que o perito do INSS recebe do SUS frequentemente é incompleta. O perito precisa avaliar o quadro clínico do requerente no momento da perícia e verificar se há comprometimento de suas funções a longo prazo ou não. Para isso, é necessário o acesso a certos exames e a algumas informações detalhadas, que nem sempre o requerente tem em sua documentação. O perito pode fazer uma Solicitação de Informação a Médico Assistente (SIMA), um requerimento que ele imprime solicitando ao médico ou profissional da área de saúde, psicólogo, fonoaudiólogo, etc. as informações faltantes. É o próprio requerente quem deve levar o SIMA para que o médico que o atende, ou algum outro, preencha; pode também pedir cópia do prontuário no posto de saúde ou no hospital em que foi atendido, o que nem sempre consegue dentro do prazo.
Então fica essa dificuldade com o requerente, que às vezes mora em (outro município) e até ele ir lá conseguir, depende de terceiros pra trazer… Aí muitas vezes eles sabem dessa dificuldade, o próprio requerente diz: ‘Ih, pra eu conseguir consulta vai demorar 3 meses’… Aí a gente avalia com base naquele documento e ele vai sair prejudicado […] Na parte de função do corpo a gente tem que seguir a documentação médica, então essa é uma barreira. (médico perito)
Não há nenhum mecanismo institucional de comunicação, os sistemas não se cruzam, não se comunicam. A avaliação médica ou mesmo a avaliação social, ficam pendentes e o requerente deve voltar dentro de 30 dias, do contrário o benefício é indeferido.
Como devem ser avaliadas as repercussões para a vida independente e o trabalho nos dois anos seguintes, geralmente a reabilitação depende da rede de assistência à saúde. Segundo um perito, as dificuldades maiores são em relação às funcionalidades, que não necessitam estar relacionadas a uma deficiência, mas também podem ser associadas a alguma doença crônica, como cardiopatia, diabetes e que têm repercussão sobre a função e as condições de vida e trabalho. O papel da rede de saúde é portanto crucial para o fornecimento de informações:
Porque aqui nós não fazemos assistência em saúde, nós fazemos o atendimento médico pericial […] Então (trata-se do) reconhecimento do direito em cima de informações que estão comprovadas tecnicamente e documentalmente. (médico perito)
A avaliação médica depende não apenas do conjunto de documentos ou de laudos do SUS, mas também de que a pessoa comprove que buscou assistência e que segue tratamento médico para a condição que geraria o benefício. Ou seja, ela não pode alegar uma condição que nunca tentou resolver de alguma forma, o que implica em comprovação por laudos e exames apropriados do SUS.
A falta de exames e a necessidade de voltar ao SUS para buscar um novo laudo ou um exame seria um custo evitável se os médicos da rede SUS já soubessem de que documentos o paciente precisa para dar entrada no requerimento. Com mais conhecimento sobre o BPC, os médicos do SUS poderiam apoiar o acesso quando identificam paciente elegíveis ao BPC. Para isso precisariam conhecer, ter contato com o benefício e com a avaliação médica; ou então isso poderia ser feito com a intermediação de um assistente social da saúde. A falta de informação que constitui uma barreira não se dá apenas por parte do requerente, mas também por parte do profissional de saúde.
Vários requerentes entrevistados souberam da existência do BPC na unidade de saúde. De fato, alguns profissionais de saúde conhecem um pouco o benefício e indicam aos pacientes, mas como iniciativa individual. Os assistentes sociais já incluem o BPC em sua prática profissional, mas nem sempre conhecem bem o benefício e nem todos os pacientes passam pelo atendimento do serviço social das unidades.
Quanto às iniciativas sinérgicas, em uma das agências foi desenvolvido um piloto de programa de comunicação do INSS com o sistema de saúde, com a construção de um formulário e o encaminhamento através da assistente social para tentar resolver problemas em relação à assistência à saúde que impediam a recuperação do requerente e o mantinham no BPC. Criou-se uma cooperação não apenas intraorganizacional, entre assistentes sociais e peritos médicos, mas também intersetorial, entre INSS e SUS, que não foi adiante, segundo o entrevistado, por falta de apoio adequado. Uma iniciativa local, horizontal, que não conseguiu sustentabilidade.
Ficou patente a necessidade de se estabelecer mecanismos de coordenação e cooperação institucionalizados com os setores da assistência social e saúde que podem melhorar os processos de implementação e diminuir as barreiras de acesso ao BPC. A gestão federal conseguiu estabelecer instrumentos de coordenação e cooperação intersetoriais e procura estender mecanismos similares para os níveis locais, onde a política é implementada. Contudo, estes são processos mais lentos pois dependem de pactuações inter e intrafederativas envolvendo um número maior de instâncias e atores.
O BPC é um benefício assistencial, mas como é implementado pelo INSS, o papel dos CRAS permanece contingente. Como a porta de entrada é no INSS, o processo de requerimento pode se dar inteiramente isolado da rede assistencial. Isso remete ao desenho do BPC. Um benefício assistencial ser concedido pela previdência é uma contradição que expressa um desenho viável para ser implementado em um primeiro momento, mas que com a construção do SUS aparece como disfuncional.
Mecanismos de coordenação e cooperação institucionalizados entre as agências locais do INSS e os CRAS poderiam melhorar o processo de implementação em vários aspectos. O primeiro seria evitar o agendamento de pessoas não elegíveis, melhorando os fluxos e diminuindo o tempo de espera dos requerentes nas agências. O segundo seria melhorar a informação ao público, problema crucial do BPC.
É preciso, por outro lado, também reconhecer que o BPC é um benefício bastante complexo com regras difíceis de entender e sobre as quais os requerentes não têm qualquer controle. A vulnerabilidade dos requerentes potencializa as barreiras produzidas pela falta de informação, pois eles não sabem ao certo as funções de cada instituição e muitas vezes nem mesmo que benefício estão solicitando. A atuação do CRAS também poderia diminuir o papel dos intermediários, que se tornaram uma solução do ponto de visa do requerente, vulnerável, sem informação, que se sente apoiado para lidar com uma burocracia com a qual não tem nenhuma familiaridade.
A introdução da avaliação social no processo de concessão em 2009 e a entrevista com assistentes sociais na previdência permitiram maior aproximação com as necessidades dos beneficiários, o que estimulou a rede de proteção através de encaminhamentos para outros serviços e direitos. Mas também são alvo de críticas dos próprios profissionais, já que as avaliações sociais são feitas nas agências do INSS.
Há processos relativos à perícia médica do BPC que extrapolam a governabilidade das agências locais do INSS e que dependem da comunicação com a rede SUS. Tais mecanismos, no entanto, mesmo quando construídos por iniciativas locais, dependem, para sua sustentabilidade, de outros de coordenação e incentivos dos níveis centrais.
No nível local, vários problemas identificados são às vezes resolvidos por iniciativas horizontais, mas provavelmente seriam enfrentados de forma mais efetiva com arranjos institucionalizados entre o INSS, os CRAS e o SUS, o que por sua vez, depende das relações verticalizadas, com os níveis decisórios centrais.
As lacunas observadas e as soluções dos problemas que envolvem as distintas instituições dependem de vínculos e relações informais, o que é uma característica de formas de gestão horizontais e difusas. O problema das várias ações intersetoriais positivas e sinérgicas a partir do nível local é que não costumam ser sustentáveis. As iniciativas locais são mais ágeis e desburocratizadas, dependem de ações individuais, porém são descontínuas e aleatórias. Isso fica evidente nas iniciativas encaminhadas por algumas agências locais e que não tiveram continuidade. Há de fato contradições entre as iniciativas individuais não burocratizadas na ponta e a estrutura hierárquica do INSS. As dinâmicas horizontais não substituíram a lógica verticalizada das políticas e programas federais. Mas para cumprir todas as funções reivindicadas para a melhoria da implementação do BPC é necessário que os CRAS tenham mais estrutura e sejam reconhecidos como partícipes no processo de decisão sobre a concessão do benefício.
Este artigo não incorporou as alterações realizadas pelo governo federal a partir de julho de 2016 para acesso ao BPC.