versão impressa ISSN 0101-2800
J. Bras. Nefrol. vol.36 no.4 São Paulo out./dez. 2014
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20140075
O poliomavírus BK (BKPyV) pertence à família Polyomaviridae (anteriormente Papovaviridae). Trata-se de um pequeno vírus (45-50 nm) não envelopado com cápside icosaédrica e núcleo com DNA circular de dupla fita em associação com histonas.1,2 O vírus foi isolado pela primeira vez em 1971 e batizado com as iniciais de um receptor de transplante sudanês com estenose ureteral.3
O BKPyV subdivide-se em quatro subtipos/sorotipos: I, II, III e IV. A distribuição geográfica dos subtipos sugere uma relação estreita entre o BKPyV e a migração de populações humanas, embora sem qualquer significado clínico aparente.4,5
O BKPyV é onipresente na população humana.6 A infecção primária, evidenciada pelo aumento da soroprevalência do BKPyV para 90% ou mais, ocorre na primeira década de vida.7 A transmissão natural do BKPyV ainda não foi completamente esclarecida, mas suspeita-se que ela ocorra por via respiratória ou oral. A infecção primária em crianças saudáveis é geralmente assintomática, mas pode se manifestar como um resfriado comum.8 Depois da viremia primária, o vírus estabelece uma fase latente, persistindo indefinidamente em diferentes tecidos, em especial no trato urinário.2,9
Em 5% a 10% da população saudável, o BKPyV pode ser reativado a partir de variações no estado imunológico e ser excretado em baixos níveis pela via urinária de forma assintomática.10 No entanto, alterações histopatológicas não são observadas no parênquima renal e a função dos rins permanece intacta.1
A replicação do BKPyV ocorre durante estados de imunossupressão. Virúria ocorre em casos de gravidez, câncer, infecções por HIV, diabetes e transplante. No entanto, viremia e nefropatia associada ao BKPyV (BKVN) são raras em casos outros que não de transplante renal.11 Além do estado imunológico, outras variáveis como idade avançada, sexo masculino, raça branca, diabetes, soronegatividade para BKPyV antes do transplante, tratamento com imunossupressores, lesão isquêmica durante o transplante e mutações virais, são consideradas fatores de risco para patologia por BK.12
Infecções por BKPyV em indivíduos imunodeprimidos podem originar entidades patológicas distintas em diferentes grupos de pacientes: em receptores de transplante renal, elas são associadas a nefropatia e estenose ureteral, enquanto que nos receptores de transplante de células-tronco hematopoiéticas (TCTH) a associação ocorre com cistite hemorrágica.2,8,12
A BKVN resulta da replicação viral no tecido renal e é caracterizada por infecção histologicamente manifesta do aloenxerto renal por BKPyV e deterioração da função do enxerto. O padrão ouro para BKVN ainda é a biópsia renal.10 Por ter uma distribuição irregular que afeta principalmente a medula renal,13 duas amostras de biópsia de fragmento incluindo a medula devem ser obtidas, a fim de se confirmar a presença do BKPyV por hibridização in situ ou imunohistoquímica para anti-SV40 ou antígeno T grande.12 Os padrões histológicos da BKVN foram divididos em três tipos, caracterizados pela presença de inclusões nucleares (Tipo A), inflamação aguda com pouca fibrose crônica (Tipo B) ou fibrose crônica significativa e atrofia (Tipo C).14 Em 25-40% dos pacientes com altos níveis de virúria/positividade para células decoy há o desenvolvimento de viremia. Progressão da BKVN pode ocorrer na ausência de intervenção.10 A prevalência de BKVN pode variar de centro para centro, mas geralmente fica entre 1% e 10%. O desfecho é perda do enxerto em até 80% dos casos.12,15 Vale lembrar que a nefropatia, em casos raros, também pode ser causada pela cepa JC do poliomavírus, o que requer investigação suplementar para pacientes com nefropatia sem detecção de BKPyV.16
A cistite hemorrágica (CH) é a manifestação mais comum nas infecções gênito-urinárias por BKPyV em receptores de TCTH. A forma viralmente induzida da CH normalmente ocorre após o transplante e, por conseguinte, é chamada de cistite hemorrágica de início tardio. Ela ocorre em de 6% a 29% dos pacientes de TCTH, geralmente dentro dos primeiros dois meses após o transplante. Os pacientes apresentam hematúria, micção dolorosa, cólica vesical e/ou dor no flanco.3
Estenose ureteral ocorre em aproximadamente três por cento (2-6%) dos pacientes transplantados renais e se desenvolve geralmente vários meses após o transplante.3 O vírus pode exercer um efeito citopático direto sobre o epitélio do ureter, resultando em inflamação e ulceração, o que causa uropatia obstrutiva.17
Além disso, o BKPyV está possivelmente associado a pneumonia, encefalite e vários tipos de câncer.18 A existência de patologias nãourinárias induzidas pelo BKPyV não é de forma alguma surpreendente, dada a persistência do vírus em diferentes tecidos humanos e o potencial oncogênico do poliomavírus.19,20
Os métodos usados para detectar e quantificar BKPyV são fundamentados na patogenia da infecção.11 A replicação começa logo após o transplante e progride em estágios detectáveis: virúria para viremia e, em seguida, para nefropatia (Figura 1). O início de cada evento é variável: virúria geralmente é relatada ≥ 5 semanas após o transplante, seguida de viremia após 4-5 semanas,21,22 que por sua vez precede a BKVN em 8-12 semanas.23,24
Em geral, os métodos baseados em virúria desempenham um papel de peso na triagem para BKPyV (alto valor preditivo negativo, VPN), apesar de seu fraco desempenho na indicação de doença renal ou doenças do trato urinário (baixo valor preditivo positivo, VPP), uma vez que menos da metade dos pacientes com virúria evolui para o estágio de viremia.25 Três métodos estão disponíveis para triagem de virúria por BKPyV: citopatologia de urina ("células decoy"), detecção/quantificação de DNA e Haufen urinário por microscopia eletrônica.26
Células decoy são células epiteliais com núcleos aumentados e grandes inclusões basofílicas intranucleares em vidro fosco.9 Embora uma célula decoy seja suficiente para marcar a ativação do poliomavírus, na prática clínica foi estabelecido um limiar arbitrário de mais de 10 células decoy por preparado de citologia em meio líquido para distinguir pacientes positivos e negativos para decoy.14 As células decoy podem ser facilmente detectadas por Papanicolaou, um exame de bom custo-benefício sem os riscos de contaminação cruzada dos métodos baseados em PCR.22 Além disso, o VPN das células decoy aproxima-se de 100%.26 Por outro lado, o VPP da análise de células decoy para prever BKVN varia entre apenas 25% e 30%. Os resultados de citologia são mais suscetíveis a atrasos no processamento e envio das amostras, além de exigirem a presença de um citologista qualificado.15 No entanto, devido a seu alto custo-benefício, as células decoy ainda são o método predileto em vários centros de diagnóstico.
Os métodos de microscopia eletrônica são baseados na detecção de partículas virais ou "Haufen," definidas como agregados intimamente agrupados, com um mínimo de seis poliomavírus e arquitetura tridimensional característica.27 Os valores preditivos positivo e negativo de Haufen para BKVN são muito elevados, chegando a > 90%,26 podendo servir de meio não-invasivo para diagnosticar BKVN pela urina.28 No entanto, o custo da realização de microscopia eletrônica de rotina é proibitivo para a maioria dos centros diagnósticos.
Os testes baseados em PCR para detecção/quantificação de DNA na urina ou sangue figuram entre os métodos de escolha nas atuais diretrizes. O PCR quantitativo (qPCR) equivale à citologia de células decoy para estimar a virúria de BKPyV. Cargas virais > 7 log10 cópias/ml são consideradas significativas.26 As vantagens da análise de virúria do BKPyV são semelhantes à análise de células decoy: alto VPN para BKVN; precede viremia ≥ 4 semanas,24 agindo portanto como sinal de alerta para viremia; e é uma técnica não invasiva. Notadamente, há relatos de BKVN com virúria detectável sem viremia.23 No entanto, fatores como o baixo VPP para BKVN, o custo da qPCR, a falta de padronização e a flutuação natural das cargas de BKPyV na urina podem representar desvantagens consideráveis.26
A viremia do BKPyV, por outro lado, é universalmente considerada como o parâmetro mais importante para prever BKVN,10,23,26 atingindo um VPP ≥ 90% e uma sensibilidade de 93% em cargas persistentemente elevadas de DNA de BKV (> 104 cópias/ml). No entanto, cargas virais < 4 log10 cópias/ml não excluem completamente a BKVN, e exige monitoramento contínuo.28 O limiar ótimo para DNAnemia de BKPyV não foi padronizado, e valores expressos em cópias/ml > 500;28 > 600;22 > 750;29 e > 1.000,30 são considerados significativos. Dado o seu desempenho geral, o teste de viremia do BKPyV sem urina se tornou o método de escolha em muitos centros de diagnóstico, além de ser recomendado pelo grupo de Trabalho do KDIGO em 2009,31 embora a triagem para virúria antes da quantificação da viremia tenha bom custo-benefício.22
A BKVN é predominante (> 90%) nos dois primeiros anos de transplante, especialmente no primeiro trimestre.24 Iniciativas de triagem tem se concentrado principalmente nos primeiros 6-12 meses. Contudo, devido à precocidade da viremia do BKPyV vista na maioria dos casos, a tendência aponta para a concentração da triagem durante os primeiros meses.
As atuais estratégias de triagem se baseiam em dois princípios básicos: 1) virúria seguida de viremia; 2) apenas viremia. Apesar de suas variações metodológicas, as duas estratégias mostraram-se igualmente eficazes na detecção de infecção por BKPyV, permitindo intervenção em tempo hábil.
Como citado anteriormente, a virúria pode ser avaliada por microscopia eletrônica, citologia de células decoy e qPCR. No entanto, a execução dessas técnicas ao mesmo tempo parece não agregar informações clínicas úteis.30 As estratégias atuais indicam que testes de virúria devam ser realizados a cada duas semanas durante os primeiros três meses. Posteriormente, o teste deve ser realizado mensalmente até o sexto mês e a partir daí a cada dois ou três meses até dois anos após o transplante, ou a qualquer momento em caso de disfunção do aloenxerto.11,22,26 Não obstante, a triagem mensal ou trimestral (menos frequente) até dois anos após o transplante ainda é empregada na pesquisa de BKPyV na urina.10 Citologia de células decoy e qPCR são os exames mais utilizados, embora o custobenefício do primeiro seja mais atraente.22 Apesar do baixo significado clínico da virúria isoladamente, a manutenção de elevadas cargas de BKPyV na urina (> 7 log10 cópias/ml) e a positividade sustentada para decoy (definida como ≥ duas amostras positivas > duas semanas de intervalo) são fortes indicadores de viremia futura (75%) e BKVN. A medição quantitativa da viremia não é indicada para pacientes sem virúria.30 No entanto, em caso de detecção positiva de BKPyV na urina por meio dos processos citados acima, o teste de viremia deve ser realizado.
As diretrizes sugerem a redução de medicamentos imunossupressores quando o nível plasmático de BKPyV encontra-se persistentemente superior a 10.000 cópias/ml,30 ponto em que deve ser feito o diagnóstico presuntivo de BKVAN.12 A maioria dos procedimentos atualmente em uso na triagem de BKPyV enfoca apenas viremia, sem o suporte para virúria. Em ambos os casos, a redução da imunossupressão é recomendada, mesmo na ausência de BKPyV na biópsia (ver ref. 26 para detalhes). Os termos "sustentada" ou "persistente" podem ser definidos como duas ou mais amostras plasmáticas positivas consecutivas por mais de duas a três semanas. Porém, outros grupos também recomendam a redução da imunossupressão após viremia sustentada21,29 ou de baixo nível (≈ 1.000 cópias/ml).24,28 Testes mensais nos primeiros 6-12 meses seguidos de intervalos de três meses são amplamente realizados.
Atualmente, a redução da imunossupressão é a pedra angular do tratamento da BKVN. Dado que o diagnóstico tardio da BKVN está geralmente associado a declínio irreversível da função do enxerto32,33 e que a maioria dos pacientes com viremia acabará por evoluir para BKVN, triagens regulares para reativação de BKPyV, principalmente durante os primeiros dois anos após o transplante, com subsequente redução preventiva de imunossupressão, representam o procedimento mais comumente adotado pelos centros transplantadores.21-30 A eliminação ou redução bemsucedida da viremia é realizada em mais de 80% dos pacientes após quatro a seis meses.34,35 A viremia deve ser continuamente monitorizada a cada duas a quatro semanas juntamente com os níveis de creatinina sérica após a redução da imunossupressão.31
Quando viremia é detectada, a biópsia do enxerto é geralmente indicada antes da redução da imunossupressão, principalmente em casos de deterioração da função renal para diferenciar BKVN de rejeição. Mesmo na ausência de alterações da função renal, a biópsia deve ser considerada para os pacientes com risco imunológico elevado, a fim de excluir episódios de rejeição subclínica.26
Não há evidências claras que corroborem qualquer modificação específica da terapia imunossupressora. No entanto, análises in vitro sugerem que a redução ou retirada dos inibidores da calcineurina deve ser o primeiro passo na modificação da imunossupressão por conta de seu efeito sobre os linfócitos T.36 A redução ou retirada de medicamentos anti-proliferativos, particularmente o micofenolato, é também um alvo habitual nas mudanças de regime imunossupressor.34 Por outro lado, análises in vitro demonstram uma ação favorável dos inibidores da mTOR sobre a progressão da BKVN.37 Assim, apesar da falta de estudos controlados, parece razoável, pelo menos para os pacientes sob risco menor de rejeição, a estratégia de retirar ou reduzir o uso de tacrolimus e micofenolato em cerca de 25% a 50%,26 possivelmente acompanhada da introdução de inibidores da mTOR ao regime imunossupressor. Após a redução da imunossupressão, a função renal deve ser cuidadosamente monitorizada por conta do risco de rejeição.
Embora a redução da imunossupressão seja o tratamento de primeira linha lógico, não há uma segunda linha bem definida. Apesar da falta de benefícios claros, tratamentos com imunoglobulina, cidofovir e fluoroquinolonas já foram oferecidos a pacientes que não conseguiram reduzir a viremia após redução da imunossupressão. Dentre estas opções, o uso de fluoroquinolonas foi mais amplamente estudado. Análises in vitro mostram que as fluoroquinolonas podem ter propriedades antivirais que inibem a replicação do BKV.38 Estudos retrospectivos sugerem que as fluoroquinolonas, utilizadas como profilaxia para pneumociste, foram eficazes na prevenção da viremia por BKPyV após TCTH e transplante renal.39,40 No entanto, um recente ensaio clínico randomizado não conseguiu demonstrar benefício das fluoroquinolonas para receptores de transplante renal com viremia por BKPyV.35
O cidofovir é um análogo de nucleótido da citosina que atua sobre o DNA viral, geralmente utilizado no tratamento de complicações por CMV em pacientes com HIV. Os benefícios do ciclofovir em pacientes com BKVN foram descritos apenas em pequenos estudos não controlados.41,42 Devido à sua nefrotoxicidade, o ciclofovir deve ser considerado para o tratamento da BKVN somente quando as outras opções fracassaram.
A administração de imunoglobulina intravenosa para o tratamento de BKVN é uma ideia atraente, dado que o BKPyV é onipresente na população humana. Assim, espera-se que a imunoglobulina contenha anticorpos contra este vírus. O uso de imunoglobulina parece ser especialmente interessante quando o diagnóstico de rejeição do enxerto não pode ser descartado. Neste caso, o uso de doses maciças de imunoglobulina pode ser útil tanto em casos de rejeição como de BKVN. No entanto, há uma escassez de estudos sobre o uso da imunoglobulina no tratamento da BKVN43-45 e ensaios clínicos randomizados são necessários.
O retransplante é uma opção viável após perda do enxerto devido a BKVN. Um estudo com 126 pacientes submetidos a retransplante renal após perda do enxerto por BKVN mostrou uma taxa de sobrevida de três anos do enxerto de 93,6%.46 Em outro estudo, 11 de 31 pacientes apresentaram viremia por BKPyV após o transplante e apenas dois evoluíram para BKVN. A eliminação de viremia após BKVN no transplante inicial foi significativamente associada a menor risco de recorrência após retransplante.47 O manejo pós-transplante deve seguir a triagem e o seguimento descritos anteriormente, mas sempre tendo em mente os tênues limites entre imunossupressão excessiva, com risco de reativação da viremia do BKPyV, e um regime imunossupressor pouco rigoroso para um paciente já sensibilizado pelo transplante anterior.
O advento de novos agentes imunossupressores mais potentes pode contribuir para uma incidência aparentemente crescente de BKVN em receptores de transplante renal. O método de triagem ideal e o melhor momento para detectar o BKPyV ainda não foram determinados. Valores de corte, especialmente para testes quantitativos, precisam ser definidos e padronizados. Atualmente, o diagnóstico precoce e a redução da terapia imunossupressora parecem resultar no tratamento mais eficaz para a infecção pot BKPyV.