versão impressa ISSN 1808-8694versão On-line ISSN 1808-8686
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.84 no.6 São Paulo nov./dez. 2018
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2017.08.006
Cerca de 5-36% dos pacientes com fissura palatina ± labial submetidos à palatoplastia primária apresentam insuficiência velofaríngea, um defeito estrutural caracterizado pela incapacidade do fechamento completo do esfíncter velofaríngeo (ou seja, há um espaço remanescente entre a parede posterior da faringe e o palato mole após a sua excursão máxima durante a fala, rotineiramente denominado com a palavra da língua inglesa gap) devido à restrição mecânica, ao posicionamento inapropriado e/ou à insuficiência tecidual.1,2 A insuficiência velofaríngea resulta em distúrbios obrigatórios e compensatórios de fala que comprometem a qualidade de vida global e as relações interpessoais dos pacientes fissurados.1,2 Entre os distúrbios obrigatórios de fala, a hipernasalidade é considerada o sintoma mais representativo e é definido como uma ressonância nasal excessiva durante a produção de sons orais.1,2
O tratamento cirúrgico da insuficiência velofaríngea é um desafio para os cirurgiões bem treinados devido ao amplo espectro de apresentação clínica dos pacientes e à ausência de consenso sobre a abordagem cirúrgica ideal.3 A escolha entre os procedimentos cirúrgicos mais adotados (esfincteroplastia, retalhos faríngeos, zetaplastia dupla reversa ou veloplastia intravelar) tem sido baseada principalmente no tamanho e no padrão do gap velofaríngeo.3-10 Embora resultados de fala satisfatórios tenham sido descritos com tais intervenções cirúrgicas,3-10 alguns fatores (por exemplo, os tipos de cirurgia palatina previamente feitos, a presença de cicatrizes no palato e o gap velofaríngeo médio ou grande) limitam a aplicabilidade da zetaplastia dupla reversa ou da veloplastia intravelar a um pequeno espectro dos pacientes.3,6-10
Ademais, a esfincteroplastia e os retalhos faríngeos estão associados com complicações relevantes, tais como apneia obstrutiva do sono, roncos, respiração oral, fala hiponasal e óbito;11 contudo, é relevante enfatizar que foi recentemente demonstrado que a presença de retalho faríngeo em indivíduos de meia-idade não foi fator de risco para apneia obstrutiva do sono.12
Nesse contexto, a repalatoplastia para alongamento do véu palatino com o retalho miomucoso do músculo bucinador tem sido feita com o intuito de normalizar a função velofaríngea e minimizar as sequelas obstrutivas das vias aéreas.13-18 Entretanto, o número de pacientes reduzido, a heterogeneidade dos grupos avaliados e o seguimento pós-operatório restrito têm limitado as conclusões relacionadas aos resultados de fala e hipernasalidade dessa abordagem cirúrgica em particular.13-18
Particularmente no Brasil, Bozola et al.19 foram os primeiros a descrever a anatomia detalhada do retalho bucal, intitularam-no como retalho miomucoso do músculo bucinador. Franco et al.20 reportaram a versatilidade desse retalho para a reconstrução palatina de pacientes sem fissura labiopalatal. Além disso, Raposo do Amaral15 apresentou uma experiência preliminar sobre o uso desse retalho para o tratamento da insuficiência velofaríngea particularmente em pacientes fissurados. Entretanto, apenas os dados relacionados à evolução pós-operatória de três meses do gap velofaríngeo foram detalhados.
Portanto, o objetivo deste estudo foi avaliar o efeito do retalho miomucoso do músculo bucinador bilateral sobre a hipernasalidade na fala no tratamento de pacientes fissurados com insuficiência velofaríngea.
Trata-se de um estudo prospectivo de todos os pacientes com fissura palatina ± lábio submetidos consecutivamente ao retalho miomucoso do músculo bucinador bilateral para o tratamento da insuficiência velofaríngea entre janeiro de 2010 e janeiro de 2014 por um único cirurgião. Dados demográficos, clínicos (tipo de fissura e características da hipernasalidade na fala e do gap velofaríngeo1,2,21-23 ), cirúrgicos (tratamento cirúrgico da insuficiência velofaríngea prévio sem sucesso, largura do retalho miomucoso do músculo bucinador e complicações) e resultados de hipernasalidade na fala7,8,24-27 foram coletados por meio de avaliações padronizadas pela mesma equipe multiprofissional. Pacientes com perda auditiva (> 25 decibéis), síndrome craniofacial, fissura de palato submucosa, fístula palatina sem correção cirúrgica e/ou pós-operatório incompleto (< 12 meses) foram excluídos do estudo.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital (001/15) e está de acordo com a Declaração de Helsinque de 1975, aperfeiçoada em 1983. Todos os pacientes incluídos aceitaram participar do estudo mediante assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido.
Todos os pacientes foram incluídos no protocolo institucional multidisciplinar de avaliações perceptivo-auditivas e instrumentais (exames de nasofaringoscopia) da função velofaríngea. Registrosaudiovisuais padronizados (gravações da fala e dos exames de nasofaringoscopia) foram sistematicamente feitos nos períodos pré-operatório e pós-operatórios de três e 12 meses (recente e tardio, respectivamente). Todos os parâmetros foram testados com um número definido de palavras e frases balanceadas foneticamente.
Após o diagnóstico de insuficiência velofaríngea ter sido estabelecido com base nos critérios da avaliação perceptivo-auditiva da fala previamente estabelecidos,1,2,21 os pacientes foram investigados com exames de nasofaringoscopia feitos por um cirurgião plástico em conjunto com a equipe de fonoaudiólogas. Durante a nasofaringoscopia, a superfície nasal do palato foi inspecionada para definir a orientação sagital ou transversal do músculo elevador do véu palatino.22,23 O tamanho do gap velofaríngeo durante o fechamento máximo na fala foi caracterizado como: fechamento velofaríngeo completo; puntiforme (demonstrado por borbulhamento); pequeno (fechamento velofaríngeo > 80% e < 100%); médio (fechamento velofaríngeo entre 50% e 80%); ou grande (fechamento velofaríngeo < 50%).9,10,22 Os padrões de gap velofaríngeo foram definidos como coronal, sagital ou circular, com ou sem a presença do anel de Passavant.23
Em nosso centro, um algoritmo terapêutico tem sido adotado para o tratamento cirúrgico dos pacientes com fissura palatina ± labial e insuficiência velofaríngea desde 2010. O nosso racional terapêutico foi baseado nos seguintes critérios: tratamento cirúrgico (repalatoplastia com pushback, dissecção radical da musculatura do véu palatino ou zetaplastia dupla reversa) da insuficiência velofaríngea prévio sem sucesso; quantidade de cicatrizes na região de transição entre os palatos duro e mole avaliada por oroscopia; e orientação do músculo elevador do véu palatino e tamanho do gap velofaríngeo avaliados por nasofaringoscopia (fig. 1).
Figura 1 Algoritmo terapêutico para o tratamento da insuficiência velofaríngea de pacientes com fissura palatina operados, sem fístula palatina e com gap velofaríngeo médio ou grande.
Em resumo, pacientes com tratamento cirúrgico da insuficiência velofaríngea prévio sem sucesso foram submetidos ao retalho bucinador (cirurgias secundárias ou terciárias). Pacientes sem tratamento cirúrgico da insuficiência velofaríngea prévio com grande quantidade de cicatrizes no palato ou com cicatrizes mínimas no palato e orientação transversal do músculo elevador do véu palatino foram submetidos ao retalho bucinador (cirurgias primárias). Pacientes sem tratamento cirúrgico da insuficiência velofaríngea prévio, com cicatrizes mínimas no palato e orientação sagital do músculo elevador do véu palatino foram submetidos ao retalho bucinador associado à veloplastia intravelar (cirurgias primárias). O padrão do gap velofaríngeo não foi determinante em nossa abordagem cirúrgica. Apenas o subgrupo de pacientes submetidos ao retalho miomucoso do músculo bucinador foi incluído neste estudo.
O retalho miomucoso do músculo bucinador bilateral foi adotado para o alongamento palatino conforme preconizado por Maeda et al.28 As cirurgias foram feitas com o paciente em decúbito dorsal horizontal, com intubação orotraqueal e sob anestesia geral. Após infiltração local (soro fisiológico 0,9% e adrenalina; 1:100.000), a transição entre os palatos duro e mole foi incisada e dissecada, permitiu a mobilização do palato mole em direção à parede posterior da faringe e criou um defeito entre os palatos duro e mole (fig. 2). Outras manobras cirúrgicas (por exemplo, dissecção do feixe vásculo-nervoso palatino maior e/ou da musculatura do véu palatino, inclusive o hámulo pterigóideo) para permitir o retroposicionamento do palato mole sem tensão foram efetuadas, dependeram da disponibilidade de tecidos moles e/ou da magnitude da retração cicatricial local.
Figura 2 A, Fotografia intraoral intraoperatória que revela as cicatrizes nas transições dos palatos duro e mole. B, Fotografia intraoral intraoperatória que demonstra o defeito criado entre os palatos duro e mole após descolamento radical do véu palatino e mobilização do palato mole em direção à parede posterior da faringe (T, transição entre os palatos duro e mole; D, palato duro; M, palato mole; N, nasofaringe).
A veloplastia intravelar foi feita em pacientes com orientação sagital do músculo elevador do véu palatino com o intuito de reposicionar anatomicamente a musculatura palatina e, por conseguinte, contribuir para a mobilização do véu palatino. Os retalhos bucinadores foram então delimitados com azul de metileno nas porções medial (mucosa jugal), cranial (passou logo abaixo da saída do ducto de Stensen), caudal (paralela à cranial), anterior (termina em V próximo à rima bucal) e posterior (pedículo estabelecido próximo aos terceiros molares) (fig. 3). A distância entre as linhas cranial e caudal (largura do retalho) foi definida pela mensuração do tamanho do defeito criado na transição palatina. Os retalhos miomucosos com os músculos bucinadores foram dissecados com cuidado para não violar o coxim adiposo de Bichat. O retalho à esquerda foi rodado em cambalhota para reconstruir a mucosa nasal, enquanto o retalho à direita foi rodado e avançado para reconstruir a mucosa oral. As mucosas das áreas doadoras foram suturadas (fio de poliglactina 910 4-0) de forma direta (figs. 4 e 5). Três a seis semanas após a cirurgia, os pedículos foram divididos na presença de dificuldade de mastigação e/ou limitação da abertura da boca.
Figura 3 Fotografias intraorais da marcação e confecção do retalho miomucoso do músculo bucinador. A, Marcação da saída do ducto de Stensen com azul de metileno. B, Delimitação da porção cranial que passa logo abaixo da saída do ducto de Stensen. C, Delimitação da porção caudal paralela à porção cranial e da porção anterior próximo à rima bucal (D, palato duro; M, palato mole; N, nasofaringe).
Figura 4 Fotografia intraoral que demonstrando o retalho miomucoso do músculo bucinador e síntese da área doadora sem tensão (R, retalho bucinador).
Todos os registros pré-operatórios e pós-operatórios recentes e tardios foram analisados por três avaliadores com experiência no tratamento de pacientes com fissura labiopalatal de forma aleatória, independente e cega (sem conhecimento prévio sobre os pacientes e/ou períodos avaliados). Os resultados de fala foram avaliados com base em uma variável estruturalmente corrigível e distribuídos de acordo com uma escala de pontuação amplamente adotada:8,24-27 hipernasalidade (0 = nenhuma; 1 = leve; 2 = moderada; ou 3 = severa). Foi considerada como melhora de hipernasalidade a redução de, no mínimo, um nível na classificação de gravidade nos períodos pós-operatórios recentes e tardios.7
Testes para triagem da apneia obstrutiva do sono (Questionário STOP-Bang [variação 0−8; pontuações 0−2, 3−4 e ≥ 5 definidas como baixo risco, intermediário risco e alto risco, respectivamente] e escala de sonolência de Epworth [variação 0−24; escores < 11 e ≥ 11 definidos como baixo risco e alto risco])29-32 foram rigorosamente aplicados pela equipe multidisciplinar nos períodos pré-operatório e pós-operatório recentes e tardios.
Para a análise descritiva, a média foi usada para variáveis métricas e as porcentagens para as variáveis categóricas. Os testes Anova, χ2, correção de Yates, igualdade de duas proporções e intervalo de confiança para média foram usados para todas as análises comparativas. O grau de concordância entre os avaliadores foi analisado com valores de kappa e foi considerado excelente (valores de kappa ≥ 0,89) para as variáveis analisadas. A estimativa do tamanho da amostra foi de 33 pacientes (α = 0,05; β = 0,12). Os programas Statistical Package for Social Sciences versão 20 (SPSS, Chicago, IL, USA) e Minitab versão 16 (Minitab, Inc., USA) foram usados para as análises estatísticas. Os valores foram considerados significativos para um intervalo de confiança de 95% (p<0,05).
Foram incluídos 37 pacientes. A amostra foi composta principalmente (p< 0,05) por pacientes com fissura transforame incisiva unilateral, submetidos ao tratamento cirúrgico prévio da insuficiência velofaríngea sem sucesso (tabela 1). Foram feitos 37 retalhos miomucosos do músculo bucinador bilateral para o tratamento de pacientes com gap velofaríngeo circular e grande e hipernasalidade severa (tabelas 2 e 3). Todos os pacientes apresentaram edema transitório nas áreas doadoras. Houve 11 (29,7%) complicações relacionadas aos procedimentos cirúrgicos (três [27,3%] deiscências que cicatrizam espontaneamente; três [27,3%] limitações de abertura bucal resolvidas com a divisão dos pedículos; dois [18,2%] hematomas nas áreas doadoras drenados cirurgicamente; duas [18,2%] necroses parciais das porções distais dos retalhos usados para reconstrução da mucosa oral que cicatrizaram espontaneamente sem sequelas residuais; e uma [9%] fístula na transição entre os palatos duro e mole tratada com retalho de língua após o término da coleta de dados) (tabela 1). Todos os testes de rastreio para apneia obstrutiva do sono foram (p > 0,05) classificados como baixo risco nos períodos pré-operatório e pós-operatório recentes e tardios (tabela 2).
Tabela 1 Características dos pacientes com fissura labiopalatal e insuficiência velofaríngea tratados com o retalho miomucoso do músculo bucinador (n = 37)
Características | Pacientes (n = 37) | p-valor |
---|---|---|
Idade (anos) M ± DP | 20,8 ± 12,4 (5-41) |
- |
Feminino/Masculino n (%) | 16 (43,2)/21 (56,8) |
> 0,05 |
Classificação de Spina n (%) | ||
Fissura pós-forame incisivo incompleta | 2 (5,4) | < 0,01 |
Fissura pós-forame incisivo completa | 10 (27) | |
Fissura transforame incisivo unilateral | 14 (37,8) | |
Fissura transforame incisivo bilateral | 11 (29,7) | |
Origem dos pacientes n (%) | ||
Tratados inicialmente em nosso serviço | 20 (54,1) | > 0,05 |
Tratados inicialmente em outros serviços | 17 (45,9) | |
Palatoplastia primáriaa n (%) | ||
Precoce (≤ 18 meses)/Tardia (> 18 meses) | 19 (51,4)/18 (48,6) |
> 0,05 |
Tratamento cirúrgico prévio n (%) | ||
Fístula palatina (Sim/Não) | 26 (70,3)/11 (29,7) |
< 0,01 |
Insuficiência velofaríngea (Simb/Não) | 23 (62,2)/14 (37,8) |
< 0,03 |
Largura do retalho (milímetros) M ± DP |
15,5±4,2 | - |
Complicações cirúrgicas n (%) | ||
Sim/Não | 11 (29,7)/ 26 (70,3) |
< 0,01 |
-, não aplicável; DP, desvio-padrão; IVF, insuficiência velofaríngea; M, média; n, número de pacientes.
aPalatoplastia em dois estágios pela técnica de Goteborg (n = 14; 37,8%) e palatoplastia em estágio único pelas técnicas de Von Langenbeck, Veau, Veau-Wardill-Kilner com ou sem veloplastia intravelar (n = 23; 62,2%).
bTodos os pacientes apresentaram insucesso no tratamento cirúrgico prévio (repalatoplastia com pushback, dissecção radical da musculatura do véu palatino ou zetaplastia dupla reversa).
Tabela 2 Testes de rastreio para apneia obstrutiva do sono nos períodos pré-operatório e pós-operatórios do tratamento da insuficiência velofaríngea com o retalho miomucoso do músculo bucinador bilateral (n = 37)
Características | Pré-operatório | Pós-operatório | ||
---|---|---|---|---|
Recente (3 meses) |
Tardio (12 meses) |
p-valora | ||
Questionário STOP-Bang M ± DP | 0,73 ± 0,45 | 0,78 ± 0,42 | 0,73 ± 0,45 | > 0,05 |
Baixo risco, n (%) | 37 (100) | 37 (100) | 37 (100) | > 0,05 |
Intermediário risco, n (%) | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) | |
Alto risco, n (%) | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) | |
Escala de sonolência de Epworth M ± DP | 3,59 ± 1,79 | 3,62 ± 1,66 | 3,57 ± 1,68 | > 0,05 |
Baixo risco n (%) | 37 (100) | 37 (100) | 37 (100) | > 0,05 |
Alto risco n (%) | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) |
DP, desvio-padrão; M, média; n, número de pacientes.
aComparações interperíodos.
Tabela 3 Tamanho e padrão do gap velofaríngeo nos períodos pré-operatório e pós-operatório (n = 37)
Características do gap velofaríngeo | Pré-operatório | p-valora | Pós-operatório | p-valorb | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Recente (3 meses) |
p-valora | Tardio (12 meses) |
p-valora | ||||
Padrão do gap n (%) | < 0,01 | ||||||
Ausente | 0 (0) | < 0,03 | 5 (13,5) | < 0,01 | 21 (56,8) | < 0,01 | |
Coronal | 11 (29,7) | 13 (35,1) | 6 (16,2) | ||||
Circular | 15 (40,5) | 13 (35,1) | 7 (18,9) | ||||
Circular com prega de Passavant | 11 (29,7) | 6 (16,2) | 3 (8,1) | ||||
Sagital | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) | ||||
Tamanho do gap n (%) | < 0,01 | ||||||
Fechamento velofaríngeo completo | 0 (0) | < 0,02 | 5 (13,5) | < 0,01 | 21 (56,8) | < 0,01 | |
Puntiforme | 0 (0) | 2 (5,4) | 9 (24,3) | ||||
Pequeno | 0 (0) | 13 (35,1) | 7 (18,9) | ||||
Médio | 10 (27) | 12 (32,4) | 0 (0) | ||||
Grande | 27 (73) | 5 (13,5) | 0 (0) |
-, não aplicável; n, número de pacientes.
aComparações intraperíodo.
bComparações interperíodo.
As análises comparativas entre os períodos pós-operatórios revelaram que houve uma redução progressiva (recente > tardio; p < 0,05) do tamanho do gap velofaríngeo e um aumento progressivo (recente < tardio; p < 0,05) do número de pacientes com padrão do gap velofaríngeo classificado como ausente. O tamanho do gap velofaríngeo mensurado nos períodos pós-operatórios recentes e tardios foi significativamente (p < 0,05) menor do que a avaliação pré-operatória (tabela 3).
As análises comparativas entre os períodos pós-operatórios revelaram que houve uma redução progressiva (recente > tardio; p < 0,05) da hipernasalidade e um aumento progressivo (recente < tardio; p < 0,05) do número de pacientes com melhoria da hipernasalidade. A hipernasalidade mensurada nos períodos pós-operatórios recentes e tardios foi significativamente (p < 0,05) menor do que a hipernasalidade do período pré-operatório (tabela 4; fig. 6). Não houve hiponasalidade nessa série.
Tabela 4 Características da hipernasalidade da fala nos períodos pré-operatório e pós-operatórios do tratamento da insuficiência velofaríngea com o retalho miomucoso do músculo bucinador bilateral (n = 37)
Características | Pré-operatório | p-valora | Pós-operatório | p-valorb | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Recente (3 meses) |
p-valora | Tardio (12 meses) |
p-valora | ||||
Hipernasalidade n (%) | |||||||
Melhoria (Sim/Não) | - | - | 28 (75,7) / 9 (24,3) | < 0,01 | 37 (100)/0 (0) | < 0,01 | < 0,01 |
Nenhuma | 0 (0) | < 0,01 | 4 (10,8) | < 0,01 | 22 (59,5) | < 0,01 | < 0,01 |
Leve | 0 (0) | 10 (27) | 11 (29,7) | ||||
Moderada | 6 (16,2) | 17 (45,9) | 4 (10,8) | ||||
Severa | 31 (83,8) | 6 (16,2) | 0 (0) |
-, não aplicável; n, número de pacientes.
aComparações intraperíodos.
bComparações interperíodos.Nota: O grau de concordância entre os avaliadores foi considerado excelente (valores de kappa ≥ 0,89) em todas as mensurações.
Figura 6 Distribuição do escore (média ± desvio-padrão) de hipernasalidade (escore 0−3) nos períodos pré-operatório e pós-operatórios recente e tardio (três e 12 meses, respectivamente). Valores de p < 0,01 para todas as comparações (Pré-operatório > Pós-operatório de três meses > Pós-operatório de 12 meses).
No presente estudo, avaliamos um subgrupo de pacientes fissurados com insuficiência velofaríngea tratados cirurgicamente com o retalho miomucoso do músculo bucinador bilateral e demonstramos uma redução significativa da hipernasalidade na fala nos períodos pós-operatórios recentes e tardios. Após 12 meses de seguimento, nossa taxa de pacientes com melhoria da hipernasalidade (100%), de pacientes sem hipernasalidade (59,5%) e de pacientes com hipernasalidade leve (29,7%) está de acordo com o encontrado na literatura específica sobre o retalho miomucoso do músculo bucinador.13,14,16-18 Entretanto, quaisquer interpretações sobre as comparações entre os nossos resultados e os reportados em investigações prévias devem ser feitas com cautela, pois existe uma ampla heterogeneidade nos tamanhos e nas composições das amostras, nos desenhos de estudos, na confecção dos retalhos e nas metodologias aplicadas nas mensurações dos resultados.13,14,16-18 Desde as primeiras descrições sobre o uso do retalho miomucoso do músculo bucinador em pacientes fissurados,19 esse retalho tem sido aplicado principalmente nas palatoplastias primárias ou nas reconstruções de fístulas palatinas.28,33 Em 2004, Hill et al.18 foram os primeiros a usar esse retalho para alongar o palato de pacientes fissurados com insuficiência velofaríngea. Desde então, particularmente no âmbito da insuficiência velofaríngea, os estudos12,13,15,16 sobre esse retalho têm incluído pacientes fissurados com insuficiência velofaríngea e fístula palatina concomitante.
Além disso, pacientes sindrômicos, com fissura submucosa de palato e/ou sem fissura labiopalatina (ou seja, insuficiência velofaríngea secundária a sequela de neoplasia ou trauma) também foram incluídos.16 Apenas dois estudos15,18 (n = 16 em ambos) abrangeram pacientes fissurados com insuficiência velofaríngea isolada (ou seja, sem fistula palatina associada). Entretanto, apenas um grupo18 analisou retrospectivamente os resultados de fala, enquanto o outro15 restringiu os resultados na classificação do tamanho e do padrão do gap velofaríngeo no período pós-operatório de três meses.
Em nosso estudo, os pacientes com síndrome craniofacial, fissura submucosa do palato e/ou fístulas palatinas sem tratamento foram excluídos. Embora isso tenha restringido a amostra final incluída, nós reduzimos alguns vieses, pois os subgrupos excluídos apresentam aspectos intrínsecos que confundem as mensurações dos resultados de fala1-3,8-10,25 e, portanto, têm sido avaliados isoladamente em diferentes estudos.3,8-10,25 Ademais, o presente estudo é o primeiro na literatura nacional a analisar os resultados relacionados à hipernasalidade na fala após a aplicação desse retalho para o tratamento da insuficiência velofaríngea.
A idade média dos pacientes incluídos é maior do que a idade recomendada para o tratamento cirúrgico da insuficiência velofaríngea, pois as intervenções em pacientes entre quatro e 12 anos (variável de acordo com a investigação) parecem estar relacionadas com melhores resultados de fala.9,10,26,34,35 As experiências anteriores13-18 com o retalho miomucoso do músculo bucinador foram principalmente compostas por pacientes pediátricos com insuficiência velofaríngea. Nossos dados são, portanto, complementares aos apresentados anteriormente,13-18 uma vez que esse retalho foi eficaz no tratamento cirúrgico de pacientes mais velhos (inclusive adultos). O aumento da idade de nossa amostra reflete a realidade do tratamento cirúrgico da insuficiência velofaríngea em nosso e outros centros,34-36 pois pacientes mais velhos têm sido referenciados (frequentemente adotados ou de regiões rurais e com baixo índice de desenvolvimento humano) com fissura palatina não reparada ou com insuficiência velofaríngea residual.
Inúmeras características do retalho miomucuso do músculo bucinador (por exemplo, abundante vascularização do músculo bucinador, localização do pedículo, arco de rotação, flexibilidade do retalho, elasticidade dos tecidos e mínima morbidade à área doadora) têm sido reportadas como vantagens para seu uso em cirurgias no palato.13-20 Entretanto, além das características intrínsecas a cada tipo de retalho, aspectos relacionados ao gap velofaríngeo também tem sido considerados na escolha das abordagens cirúrgicas especificamente para o tratamento de pacientes fissurados com insuficiência velofaríngea. Nesse contexto, a imensa maioria dos pacientes fissurados com gap velofaríngeo médio ou grande tem sido tratada com esfincteroplastia ou retalhos faríngeos.3-5,7,11,24,25,37
Em 2005, Armour et al.37 demonstram que as esfincteroplastias e os retalhos faríngeos fornecem os melhores resultados de fala nos padrões de gap velofaríngeo coronal e não coronal (circular ou sagital), respectivamente. Em nosso e em outros estudos,13-18 o retalho miomucoso do músculo bucinador foi usado independentemente do padrão do gap velofaríngeo.
Assim, com base na melhoria da função velofaríngea demonstrada aqui e em outros estudos,13-18 o retalho do músculo bucinador apresenta uma vantagem adicional sobre as esfincteroplastias e os retalhos faríngeos, pois pode ser aplicado em pacientes com gap médio ou grande, independentemente do padrão do gap velofaríngeo. Existem vantagens adicionais previamente descritas13,14 e reforçadas por nossos achados: a abordagem cirúrgica que usa o retalho do músculo bucinador é mais anatômica e fisiológica, pois quando o palato é curto o defeito anatômico é tratado diretamente (ou seja, o palato mole, inclusive a musculatura do véu palatino, é dissecado e retroposicionado com consequente alongamento do véu palatino) sem atuar na parede posterior da faringe; ausência de hiponasalidade pós-operatória; e ausência de quadros obstrutivos das vias aéreas, uma vez que não existe uma ponte de tecido miomucoso entre a parede posterior da faringe e o palato mole, situação anatômica característica dos retalhos faríngeos.
Como nossos pacientes foram classificados como de baixo risco para apneia obstrutiva do sono nas mensurações feitas nos períodos pré-operatório e pós-operatórios recentes e tardios, exames de polissonografia não foram feitos. Esse raciocínio também foi adotado em outros estudos13,14,16,38 sobre insuficiência velofaríngea e tem sido estabelecido em alguns questionários e modelos clínicos para a triagem da apneia obstrutiva do sono.29-32 Fizemos a triagem da apneia obstrutiva do sono com a aplicação de testes (questionário STOP-Bang e escala de sonolência Epworth) previamente validados no Brasil.29,30 Embora esses questionários tenham sido amplamente aplicados como ferramentas para triagem da apneia obstrutiva do sono com alta especificidade e/ou sensibilidade,29-32 ferramentas de triagem distintas poderiam ter revelado dados diferentes. Além disso, investigações futuras com avaliações polissonográficas são necessárias para ratificar ou contrariar os achados de nosso e outros estudos.13,14,16
Ademais, o retalho miomucoso do músculo bucinador pode ser aplicado em um amplo espectro de pacientes fissurados com insuficiência velofaríngea, pois aspectos como os tipos de cirurgias palatinas previamente feitas e/ou a quantidade de cicatrizes no palato não são fatores limitantes de sua indicação. Na verdade, o alongamento palatino com a interposição do retalho miomucoso do músculo bucinador bilateral quebra a restrição imposta pela grande quantidade de cicatrizes no palato (particularmente na transição dos palatos duro e mole) ao introduzir tecido sadio com grande elasticidade em um uma área com pobre vascularização secundária as cicatrizes prévias.14 Outra vantagem teórica é que como a maxila não é conectada à parede posterior da faringe (como ocorre nas intervenções faríngeas), o retalho miomucoso do músculo bucinador teoricamente não tem um efeito negativo no crescimento facial quando feito em pacientes com o desenvolvimento craniofacial incompleto.
Entre as desvantagens do retalho adotado em nosso estudo, destaca-se a necessidade potencial de um segundo tempo cirúrgico, embora exista divergência sobre a necessidade de fazer esse segundo tempo.8-13 Temos indicado a divisão dos pedículos apenas nos pacientes com limitação da abertura bucal e/ou com queixas relacionadas à mastigação.
Na literatura sobre a insuficiência velofaríngea,1,2,26 outro aspecto relevante é o tempo de seguimento pós-operatório. A maioria dos grupos14,16-18 fez as mensurações dos resultados de fala após 3−6 meses das repalatoplastias com o retalho miomucoso do músculo bucinador. Ainda que tenha sido demonstrado que o edema no palato involui com seis meses de pós-operatório, o movimento palatino atinge um nível ótimo somente após um ano das intervenções cirúrgicas.26 Portanto, o período de, no mínimo, um ano deve ser considerado ideal para essas avaliações. Isso é reforçado por nossos resultados, uma vez que existem diferenças significativas nas mensurações feitas nos períodos pós-operatórios recentes e tardios.
Outro grupo13 também apresentou resultados de fala com mais de 12 meses de pós-operatório. Porém, a ausência de resultados de fala em períodos intermediários (por ex., três meses) não permite que o raciocínio terapêutico comparativo fonoaudiológico e cirúrgico seja baseado no entendimento da evolução pós-operatória dos pacientes tratados particularmente com o retalho miomucoso do músculo bucinador. Ademais, como Jackson et al.33 sugerem que existe uma melhoria na função velofaríngea mesmo após anos das cirurgias palatinas, é possível que avaliações subsequentes (> 12 meses) de nossos pacientes revelem resultados de hipernasalidade de fala distintos. Estudos futuros devem testar essa hipótese.
Certamente, os detalhes técnicos relacionados ao manuseio do palato e do retalho miomucoso do músculo bucinador são variáveis entre os centros e os cirurgiões.13-18 Como nós, alguns usam o retalho bilateral com o intuito de reconstruir o defeito da forma mais anatômica possível (reconstruir as mucosas nasal e oral), enquanto outros usam apenas o retalho unilateral.13-18 Como outro grupo,18 acreditamos que a ausência da reconstrução da mucosa nasal (ou seja, área cruenta presente no forro nasal) pode resultar em áreas de vascularização inadequada, consequente à cicatrização por segunda intenção. A contração cicatricial do retalho aplicado na reconstrução da mucosa oral pode culminar no encurtamento sagital do palato. Contudo, como não temos dados objetivos para apoiar nossa hipótese, é importante que estudos futuros avaliem a influência da reconstrução com um ou dois retalhos miomucosos do músculo bucinador na hipernasalidade dos pacientes fissurados.
Diferentes autores13-18 têm discutido sobre a segurança e a baixa taxa de complicações relacionadas ao retalho miomucoso do músculo bucinador. Nossa taxa de complicações (29,8%) é semelhante às tendências previamente descritas (8−31,25%),13-18 existem diferenças nas populações estudas e no formato da coleta dos dados. Interessantemente, todas as complicações reportadas aqui ocorreram nos primeiros dois anos de uso do retalho e em pacientes adultos que tinham os terceiro molares. Alguns grupos14,16 têm feito modificações no retalho (por exemplo, colocar o pedículo no trígono retromolar ou confeccionar retalhos ilhados) ou nos cuidados pós-operatórios (por exemplo, bloqueios de mordida, mais conhecidos como bite blocks) para evitar que os pacientes mordam os pedículos e comprometam o fluxo sanguíneo. Contudo, nenhuma análise comparativa foi feita para testar a eficácia de tais modificações.14,16 Acreditamos que à medida que o cirurgião principal adquiriu experiência com o retalho (ou seja, o cuidado nas dissecções do tecido palatino e do retalho aliado às orientações pós-operatórias mais detalhadas) foi suficiente para manter a baixa taxa de complicações nos dois últimos anos analisados. Ainda que outros grupos16,33 também tenham demonstrado que a taxa de complicações reduziu com o aumento da experiência do cirurgião, estudos futuros comparativos são necessários para averiguar se algumas modificações (por exemplo, mudanças na posição dos pedículos ou o uso de bloqueios de mordida) podem reduzir as complicações.
Reconhecemos que este estudo tem algumas limitações. Não adotamos todas as ferramentas ou métodos existentes para a avaliação dos resultados de fala, embora todas as mensurações feitas tenham sido baseadas em métodos ou escores previamente publicados8-10,21-27 e não exista consenso sobre a metodologia ideal para mensuração dos resultados no âmbito da insuficiência velofaríngea.1,2 É importante enfatizar que investigações com métodos de avaliação objetiva do grau de hipernasalidade (por ex., a técnica nasométrica que permite estimar a ressonância da fala por meio da medida da nasalância4,34,35 ) poderiam ter revelado resultados distintos.
Como nos estudos semelhantes,13-18 uma limitação adicional é a ausência de um grupo controle (por ex., retalhos faríngeos ou esfincteroplastias). É importante ratificar que os nossos dados estão restritos a uma subpopulação selecionada de pacientes fissurados (adolescentes/adultos, ausência de fístula palatina, cirurgias secundárias ou terciárias para o tratamento da insuficiência velofaríngea, hipernasalidade moderada ou severa e gap velofaríngeo médio ou grande). Embora esse subgrupo reflita a realidade de um centro de fissurados referência no Brasil,39 quaisquer generalizações devem ser feitas com prudência. Além disso, como Mann et al.16 demonstraram resultados de voz satisfatórios exclusivamente em pacientes com gap velofaríngeo pequeno tratados com o retalho miomucoso do músculo bucinador, estudos futuros devem expandir as nossas indicações, bem como confrontar e expandir nossos resultados e averiguar se nossas limitações interferem com os resultados.
O retalho miomucoso do músculo bucinador é eficaz na melhoria da função velofaríngea de pacientes fissurados, particularmente na redução/eliminação da hipernasalidade na fala.