versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.11 Rio de Janeiro nov. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320172211.19952017
Este artigo analisa o modelo decisório de avaliação da elegibilidade da pessoa com deficiência ao Benefício de Prestação Continuada (BPC). O BPC foi formalizado na Constituição Federal de 1988 (CF 1988) e regulamentado pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) em dezembro de 1993. O acesso ao BPC é condicionado à da avaliação da burocracia pública. Caso a pessoa com deficiência seja avaliada em situação de vulnerabilidade, é disponibilizada uma renda contínua de fonte governamental para prover necessidades básicas. O artigo analisa os efeitos das diretrizes da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificadas pelo Decreto Federal n. 6.949, de 25 de agosto de 2009, na configuração da proteção social brasileira1.
Como destacam Silva e Diniz, a Convenção adotou uma conceituação abrangente para a pessoa com deficiência que influenciou as decisões do governo brasileiro. Nesse sentido, a legislação brasileira define que a pessoa com deficiência tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, que podem obstruir a participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas2.
Esta conceituação ampliada favoreceu a desconstrução da narrativa dos decretos e regulamentações que definiam a deficiência, no plano individual, como um fenômeno corporal associado à ausência de partes ou limitações funcionais3. Segundo Silva e Diniz, após a ratificação formal na esfera governamental restava adequar o que denominam de “regime pericial e social de avaliação da deficiência” aos princípios supranacionais da Convenção ratificados pelo Brasil2. Para as autoras, a nova regulamentação para concessão do BPC disposta na LOAS incorpora o conjunto amplo de princípios de proteção à pessoa com deficiência constantes da Convenção, mas devolve a autoridade discursiva sobre o corpo deficiente para o campo biomédico2.
Interessa destacar neste artigo que a autoridade discursiva na avaliação da pessoa com deficiência é exercida por burocracias especializadas solidamente instituídas no aparelho de Estado. Os mecanismos de acesso ao BPC não são, desse modo, constrangidos pela prática generalizada de patronagem, típicas das trocas clientelistas identificadas em outras áreas, mas sofrem as consequências da aplicação de rotinas padronizadas da avaliação técnica da vulnerabilidade de indivíduos que se declaram ou são declarados por terceiros como pessoa com deficiência. Portanto, esta autoavaliação da condição de pessoa com deficiência do requerente é sujeita ao julgamento de mérito por uma burocracia especializada e de carreira do executivo federal. Os efeitos das diretrizes internacionais sobre o padrão de implantação e desenvolvimento do BPC não são assim óbvios e lineares como a maioria dos estudos domésticos tendem a reiterar de modo surpreendentemente acrítico.
Cavalcante e Lotta chamaram atenção, corretamente, para a ausência de estudos empíricos sobre as burocracias profissionais que ocupam funções no governo federal brasileiro. Para os autores, a intervenção da burocracia pública profissional na administração e regulação de decisões alocativas de politicas sociais é uma das áreas de extrema relevância da ação governamental do país que necessita ser estudada4. No livro Burocracia e Implementação de Politicas de Saúde5, Lotta oferece uma contribuição específica ao campo da saúde coletiva ao analisar os processos de entrega final de políticas por meio de uma burocracia setorial de nível de rua, focalizando a Estratégia de Saúde da Família. Seguindo esta perspectiva, busca-se neste artigo situar os mecanismos organizacionais que influenciam a implantação de políticas públicas no âmbito da seguridade social brasileira, onde se insere o campo da saúde, com especial atenção para a intervenção da burocracia profissional médica.
A produção intelectual sobre a burocracia pública profissional brasileira pode ser classificada em três grandes correntes: a primeira resulta da explicação sobre o papel do aparato burocrático de viés desenvolvimentista no autoritarismo (1964-1985)6,7; a segunda é resultado da reflexão sobre a agenda da reforma administrativa inconclusa dos primeiros anos de governo democrático (1995-2002)8,9 e a terceira dedicada à descrição do recente crescimento da burocracia do governo federal influenciado pelas exigências de prestação de serviços das áreas sociais e coordenação orçamentária e fiscal (1995-2016)10-13.
Interessa argumentar neste que a constitucionalização dos direitos sociais pode ser enfaticamente associada à ampliação do aparato estatal, fortalecendo o que Pereira denominou de feição “universalista e meritocrática” da alta burocracia federal nos últimos anos14. A constitucionalização contemplou a inserção na CF 1988 da ideia de cidadania social, com importantes efeitos de acesso a benefícios e serviços nas áreas de educação, assistência social, saúde e previdência. A elegibilidade da pessoa com deficiência ao BPC tem sido, desse modo, diretamente afetada pela combinação do processo de modernização burocrática vis-à-vis expansão da cidadania social.
O BPC foi formulado e implantado como uma politica pública altamente focalizada na população idosa e nas pessoas com deficiência em condição de extrema pobreza, integrando a Proteção Social Básica no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS)1. Atualmente são elegíveis à renda de um salário mínimo as pessoas com idade igual ou superior a 65 anos e aquelas com deficiência que não têm como prover a própria manutenção ou cujas famílias não possam fazê-lo.
A condição de incapacidade para prover as condições de sobrevivência é aferida pela burocracia ministerial por meio da quantificação dos riscos sociais pelo Instituto Nacional de Seguro Social (INSS). Uma variável crucial na elegibilidade é a situação familiar do requerente. A família é considerada incapaz de prover a manutenção quando a renda per capita do grupo familiar for inferior a ¼ do salário mínimo.
São incluídos na categoria grupo familiar aqueles que vivem sob o mesmo teto - o requerente, o cônjuge, a companheira, o companheiro, o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 anos ou inválido, os pais, e o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 anos ou inválido. Para o cálculo da renda familiar é considerada a soma dos rendimentos brutos auferidos mensalmente pelos membros e composta por salários, proventos, pensões, benefícios de previdência privada, comissões, pró-labore, outros rendimentos do trabalho não assalariado, rendimentos do mercado informal ou autônomo e rendimentos auferidos do patrimônio1.
No âmbito do governo central brasileiro, a avaliação da condição de elegibilidade da pessoa com deficiência é de responsabilidade de indivíduos de profissões reconhecidas por lei e detentoras de monopólios de competência. Cabe destacar a função da profissão paradigmática dos médicos, que detêm o monopólio de competência para diagnosticar a condição vulnerabilidade funcional dos requerentes ao BPC. A intervenção da profissão médica é uma referência central no funcionamento do regime pericial e social de avaliação da pessoa com deficiência. Os médicos compõem uma carreira de estado com elevada autonomia decisória, de escopo técnico, na estrutura operacional do INSS.
A influência da burocracia profissional na decisão governamental é amplamente reconhecida no campo das ciências sociais, ainda que pouco estudada no campo da saúde coletiva. Lipsky foi um dos primeiros a identificar que os valores, as opiniões e as preferências das profissões influenciam o desenvolvimento das políticas públicas. Os profissionais que atuam nas organizações governamentais são categorizados pelo autor como street-level-bureaucracy. Essa burocracia de estado detém poder discricionário no exercício da autoridade15. O poder discricionário advém da relativa autonomia que possuem no momento da implantação das políticas. São eles que decodificam as normas que afetam os usuários ou demandantes. Como destaca Lipsky, a discricionariedade exercida pelos burocratas é também resultante da interação entre seus valores, os valores de outros atores envolvidos, os procedimentos, os incentivos, as estruturas e as proibições no plano organizacional15.
A análise da posição da burocracia pública é assim justificável pelo impacto que produz na vida do cidadão comum ao determinar a elegibilidade a benefícios sociais, mediando a relação institucional com o aparelho de Estado. Essa pode ser uma dimensão radicalmente nova na compreensão do lugar da burocracia pública no Brasil. Estamos diante de uma burocracia pública vinculada à estrutura de proteção social consolidada nas últimas décadas no país16 e que interage diretamente com o cidadão.
Os usuários de serviços públicos brasileiros não podem escolher, na maioria das vezes, os serviços a que se vinculam. Eles devem aceitar as escolas, os serviços de saúde ou sociais do seu município ou região. Se forem pobres, como assinala Keiser17 em outro contexto, devem aceitar os arranjos governamentais para a assistência à saúde, a transferência de renda, os programas de moradia ou outros programas sociais.
É importante sublinhar que os critérios de avaliação dos requerentes para a concessão do BPC estiveram, no Brasil, explicitamente subordinados à orientação biomédica até fins da década passada. Nesse período, a avaliação da deficiência foi de responsabilidade exclusiva da Perícia Médica do INSS. O acesso de pessoas com deficiência ao BPC exigia, essencialmente, o atendimento aos critérios de renda per capita familiar e a caracterização da deficiência em termos puramente biomédicos, enquanto incapacidade para o trabalho e para a vida independente. A avaliação realizada pela perícia médica do INSS verificava a capacidade de trabalho, o nível de dificuldade visual, auditiva, motora e de fala; o grau de dificuldade para realizar as atividades diárias, como higiene pessoal, alimentação e vestimenta; o grau de controle da evacuação; a dependência de cuidado permanente de profissionais de saúde ou outros, e diagnóstico de esquizofrenia18.
Em 2009, a Portaria Conjunta MDS/INSS no 1 instituiu, por força de compromissos internacionais, novos procedimentos para a avaliação social e médica da pessoa com deficiência requerente ao BPC1. A avaliação passou a ser realizada pelas duas comunidades profissionais - Assistentes Sociais e Peritos Médicos do INSS - com atribuições funcionais de avaliação de barreiras sociais e ambientais, alterações de funções do corpo, limitações de atividades e restrições à participação social1.
O artigo 2o da Portaria Conjunta MDS/INSS no 1/2009 detalhou a divisão de trabalho de assistentes sociais e médico-peritos e os procedimentos formais para a avaliação da pessoa com deficiência e do “grau de incapacidade”. A avaliação social propõe qualificar: 1) os denominados “fatores ambientais” por meio de “domínios”: produtos, condições de moradia e mudanças ambientais; apoios e relacionamentos; atitudes; serviços, sistemas e políticas; 2) as atividades e a participação social para maiores de 16 anos mediante análise dos “domínios” relação e interação interpessoal, vida comunitária, social e cívica. Para os menores de 16 anos a avaliação considera os “domínios” relação e interação interpessoal, vida comunitária, social e cívica. A avaliação do serviço social é realizada através de entrevista presencial do requerente na sede de uma agência do MPS.
A avaliação médica verifica as funções do corpo via anamnese, considerando os seguintes “domínios”: funções mentais, sensoriais da visão, sensoriais da audição, sensoriais da voz e da fala, da pele, geniturinárias, neuromusculoesqueléticas e relacionadas ao movimento e os sistemas cardiovascular, hematológico, imunológico, respiratório, digestivo, metabólico e endócrino.
A avaliação do médico-perito também deve qualificar a atividade e a participação por meio dos “domínios” da aprendizagem e aplicação do conhecimento, tarefas, comunicação, mobilidade e cuidado pessoal. De qualquer modo, cabe destacar que o diagnóstico das alterações de funções do corpo é de atribuição exclusiva dos médicos-peritos e prevalece sobre a avaliação social da assistência social. A intensidade das limitações e restrições funcionais é definida em cinco (5) níveis: nenhuma, leve, moderada, grave e completa.
As novas diretrizes internacionais sustentadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) forçaram os Estados nacionais a ampliarem a compreensão da deficiência, principalmente pela difusão da Classificação Internacional da Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF)19. Na CIF, os problemas de funcionalidade humana são categorizados em três áreas: alterações das estruturas e funções corporais; limitações para executar atividades como caminhar ou comer, e restrições à participação em múltiplos aspectos da vida, como discriminação no emprego ou nos transportes. A OMS reconhece, ainda assim, a autonomia dos Estados nacionais para estabelecer limites para a gravidade da incapacidade, das limitações para realizar atividades ou restrição à participação20.
Na experiência brasileira, em função da adoção de um limite de renda familiar extremamente baixo e das categorias de risco biomédico, o processo decisório do INSS não ficou imune à contestação - mesmo tendo como referência normativa as diretrizes da CIF. Cabe destacar a influente intervenção revisionista das decisões de elegibilidade do BPC exercida nos últimos anos pelo Judiciário1. O estabelecimento do limite de uma renda básica pelo BPC tem sido também alvo de problematização na literatura especializada. Silva e Diniz reiteram que a redução das necessidades aos mínimos sociais configura uma ameaça à universalidade da assistência social no Brasil2.
Cabe especialmente destacar o papel crucial desempenhado pelo exercício do diagnóstico médico baseado na concepção das doenças específicas que existem independentes do indivíduo21. Como chama atenção Rose, a medicina está associada ao regime de valores no qual os indivíduos são descritos em termos de saúde e doença e padrões de normalidade e patologia. A verdade do diagnóstico não tem como base a “narrativa subjetiva” ou a descrição dos “sintomas”, consideradas como fontes de erro. O exercício do diagnóstico consolida um sistema de conhecimento de especialistas e aumenta o poder da esfera médica22. Esse poder é expandido quando tais diagnósticos condicionam o acesso a direitos sociais23. Por isso considera-se, neste artigo, que no processo organizacional de avaliação dos requentes do BPC não é identificável um completo deslocamento do regime médico pericial para o modelo social com base na CIF, mas um conflito entre princípios normativos sobre a conceituação da pessoa com deficiência.
Este artigo descreve o escopo, a posição e as funções da burocracia pública na intermediação do acesso à política social para a pessoa com deficiência sob a gestão do governo central brasileiro. O artigo pretende contribuir para a reflexão sobre a condição de acesso ao BPC da pessoa com deficiência e o papel da burocracia profissional. Para responder aos objetivos propostos foram utilizadas diferentes fontes de informação secundárias. Recorreu-se a dados administrativos de domínio publico do Ministério do Planejamento e Orçamento (MPOG) - período 1997 a 2016 - para demostrar a evolução e o escopo da burocracia do governo central brasileiro. As principais variáveis descritivas da série histórica são: 1) quantitativo de servidores ativos do governo central; 2) quantitativo de servidores ativos do MPS, Ministério da Saúde, Ministério da Educação e Ministério do Orçamento e Gestão. A participação relativa dos médicos peritos do INSS nesta estrutura é mostrada com dados do Anuário Estatístico da Previdência Social para 2006 e 2015.
Para a descrição do quantitativo de beneficiários do Regime Geral de Previdência Social e dos beneficiários do BPC foi o utilizado o Boletim Estatístico da Previdência Social. Essas informações são apresentadas segundo os diferentes governos nacionais e as diferentes áreas de administração de políticas públicas do período: governo Fernando Henrique Cardoso - FHC (1997-2002); Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016). Seguindo a análise de Souza24, considera-se, para feito descritivo, que diferentes coalizões de governo e diferentes políticas públicas enfrentaram a tarefa de modernização da relação Estado-sociedade e Estado-Estado no Brasil nas últimas décadas.
Para a análise da variação média do quantitativo geral da burocracia no governo central e dos Ministérios selecionados, o artigo utiliza o modelo log-lin descrito pela equação In Yt = β1 + β2t + μt. O modelo log-lin é como qualquer outra regressão linear na qual os parâmetros β1 e β2 são lineares. A diferença neste caso é que o regressando é o logaritmo de Y e a variável independente é tempo, representado por “t”’, que assumirá os valores de 1,2,3, +…+ n, […]”, correspondentes ao período analisado25.
A análise do padrão decisório da burocracia profissional médica utiliza como fonte o balanço de deferimentos e indeferimentos segundo a intensidade do diagnóstico médico sobre as limitações e as restrições nas funções do corpo do Sistema de Avaliação do Benefício de Prestação Continuada para Pessoa com Deficiência (SIAVBPC). Esses dados foram produzidos no Projeto de Pesquisa “Aprimoramento da Política Pública para Pessoas com Funcionalidade Reduzida - Pessoas com Deficiência e Idosos”, parceria da Fundação Oswaldo Cruz e Faculdade de Medicina de Petrópolis, a partir de acordo de colaboração com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – 2015-2017.
A recente expansão da burocracia federal foi bem descrita nos trabalhos de Cavalcante e Carvalho11, Nunberg e Pacheco13 e Souza24. O Gráfico 1 permite identificar dois momentos distintos desta evolução nas últimas décadas: o primeiro de redução (1997-2002) durante o governo FHC e o segundo de reversão ou recomposição do quadro de funcionários ativos nos governos posteriores (2003-16). Os processos de descentralização na área da saúde, a aceleração das aposentadorias e a redução na frequência dos concursos públicos, além das privatizações de empresas federais, influenciaram a queda expressiva da burocracia federal do primeiro momento; no segundo período, o governo federal iniciou a ampliação significativa do número de concursos públicos, o que elevou o quantitativo anual de novos servidores11,24.
Fonte: Brasil. Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Estatística de Pessoal e Informações Organizacionais. Brasília. Outubro, 2016.
Gráfico 1 Variação da força de trabalho estatutária do governo federal brasileiro – 1997-2016.
A Tabela 1 permite também observar que a variação média anual no número de servidores públicos foi bastante desigual entre as diferentes áreas de atuação do governo central. Para efeito de comparação, é demonstrada na Tabela 1 a evolução da burocracia estatutária dos Ministérios da Previdência Social, Saúde, Educação e Planejamento e Orçamento e do governo federal na totalidade.
Tabela 1 Variação média anula do quantitativo de servidores civis estatutários no governo central e ministérios selecionados – 1997-2016.
Governo Central e Ministérios | Variação média anual |
---|---|
Governo Central Brasileiro | 1,3 |
Ministério da Educação | 3,0 |
Ministério da Saúde | (0,72) |
Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão | 2,1 |
Ministério da Previdência Social | (0,66) |
Fonte: Brasil. Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Estatística de Pessoal e Informações Organizacionais. Brasília. Outubro, 2016.
Surpreende na Tabela 1 é o incremento do quantitativo de servidores do Ministério da Educação, impulsionado pela massiva entrada de docentes e técnicos nas universidades federais, como também observaram Nunberg e Pacheco13 e Souza24. A área de educação cresceu em média a uma taxa de 3% no período, com grande expansão dos últimos 5 anos da série histórica. O mesmo crescimento pode ser observado em relação ao MPOG, que teve semelhante expansão média de 2,1% anual no período 1997-2016, com um salto expressivo no biênio 2015-2016. Os setores saúde e previdência social foram os mais afetados pela redução no quantitativo de servidores ao longo de 20 anos, com uma queda média anual, respectivamente, de 0,66 e 0,72 no período.
O Gráfico 2 mostra adicionalmente a variação no quantitativo de servidores do MPS na estrutura da burocracia federal entre 1997-2016. Nota-se pelo Gráfico 2 que o declínio da força de trabalho estatutária do MPS tornou-se mais acentuado a partir de 2006.
Fonte: Brasil. Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Estatística de Pessoal e Informações Organizacionais. Brasília. Outubro, 2016.
Gráfico 2 Variaçao no quantitativo de servidores estatutários do Ministério da Previdência Social (MPREV) - Brasil – 1997-2016.
O declínio do quadro de pessoal estatutário no MPS foi acompanhado no período pelo expressivo crescimento do número de benefícios emitidos pelo Regime Geral de Previdência Social e pelo BPC a partir de 2006, como mostra o Gráfico 3. Observa-se que a relação entre o quantitativo de benefícios emitido e servidores foi substancialmente expandida, passando de 481 para 915 por servidor entre 2000 e 2016. Esta robusta expansão indica que a difusão de rotinas gerenciais orientadas ao aumento da produtividade da força de trabalho foi certamente intensa na estrutura do MPS/INSS.
Fonte: Brasil. Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Estatística de Pessoal e Informações Organizacionais. Brasília. Outubro, 2016.
Gráfico 3 Relação beneficiário/servidor estatutário do MPS.
No contexto geral de redução do quadro do MPS/INSS e crescimento da produtividade, cabe também destacar a insignificante redução da participação proporcional de médicos peritos na estrutura do recurso humano estatutário do INSS entre 2006 e 2015, como mostra a Tabela 2. O declínio do quantitativo de médicos peritos de apenas 3,3% no período revela que o suposto deslocamento do modelo de avaliação centrado na expertise médica afetou marginalmente a posição da profissão na estrutura do MPS/INSS.
Tabela 2 Variação no quantitativo de médicos peritos e assistentes sociais na estrutura organizacional do INSS – 2006-2015.
Descritores | 2006 | 2015 | Variação |
---|---|---|---|
Total de Servidores Estatutários | 43623 | 38130 | (12,6) |
Médicos Peritos | 4866 | 4704 | (3,3) |
Assistentes Sociais | 563 | 420 | (25,4) |
Fonte: Brasil. Ministério da Previdência Social Anuário Estatístico da Previdência Social – 2008 e 2015.
A autarquia sofreu no geral um achatamento no quadro de pessoal estatutário de 12,6% no período 2006 e 2015, acompanhando o quadro observado para o MPS entre as duas décadas. A Tabela 2 mostra igualmente uma monumental redução na participação da assistência social na composição da burocracia profissional do INSS: 25% da força de trabalho entre 2006 e 2015. Esta redução da participação da profissão da assistência social no quadro do INSS revela uma inesperada contradição entre a adoção da diretriz de ampliação dos critérios da avaliação e a diminuição em termos absolutos da parcela da burocracia profissional com maior propensão a aceitar as orientações normativas da avaliação ampliada inspirada na CIF.
Diante deste cenário, a análise dos resultados da atuação da pericia médica em 2010 revela um processo decisório finalístico severo - apenas 50,5% das 414 mil dos requerimentos apresentados ao BPC foram deferidos favoravelmente. No mesmo ano, o percentual de deferimento dos requerimentos de “incapacidade” para o regime geral da previdência social (RGPS) foi de 61%26. Caso o mesmo padrão do decisório do diagnóstico da pericia médica para o requerente do RGPS fosse observado para as demanda da pessoa com deficiência ao governo federal, 39 mil requerentes ao BPC seriam incluídos na politica pública em 2010.
A Tabela 3 revela, ademais, a notável preferência para o deferimento dos requerentes quando diagnosticados na escala das alterações em funções do corpo na condição de extrema incapacidade - grave (98%) ou completa (100%). Há claros indicativos da prevalência de diagnóstico médico na decisão da elegibilidade a despeito da introdução do modelo social de avaliação em 2009. Nesse sentido, a Tabela 3 demonstra também que foram indeferidos todos os requerimentos de pessoas avaliadas como sem nenhuma alteração ou com alteração leves em funções do corpo. É bastante plausível que uma parcela não irrelevante dos requerentes diagnosticados em termos bio- médicos como sem nenhuma alteração ou com alteração leves em funções do corpo tenha sido avaliada pelo serviço social na situação de grave ou completa vulnerabilidade segundo os “fatores ambientais”, sendo consequentemente indeferida.
Tabela 3 Resultado da avaliação dos requerentes pela perícia médica do INSS segundo os critérios de alteração em funções do corpo - Brasil – 2010.
Alterações em Funções do Corpo | Requerentes (A) | Deferidos (B) | Razão de Deferimento |
---|---|---|---|
Nenhuma | 39214 | 0 | 0,0 |
Leve | 108538 | 0 | 0,0 |
Moderada | 110081 | 63002 | 57,2 |
Grave | 111597 | 103258 | 92,5 |
Completa | 44720 | 42369 | 94,7 |
Total | 414150 | 208629 | 50,4 |
Fonte: Projeto de Pesquisa “Aprimoramento da Política Pública para Pessoas com Funcionalidade Reduzida - Pessoas com Deficiência e Idosos” – 2017.
A Tabela 4 mostra o diagnóstico médico de uma amostra de 772.641 beneficiários ativos do BPC em dezembro de 2015, segundo a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID). Neste ano, o total de beneficiários do BPC na condição de pessoa com deficiência era de 2.323.8797 indivíduos27.
Tabela 4 Beneficiários Ativos para a Pessoa com Deficiência segundo a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde CID 10 - Brasil - Dezembro – 2015.
CID | Total | % | Acumulado |
---|---|---|---|
F70, F71, F72, F73, F79 Retardo Mental | 350.412 | 44,7 | - |
F20, F29 Esquizofrenia e Psicose não orgânica não especificada | 131.096 | 18,4 | 63,1 |
G80 Paralisia Cerebral Infantil | 82.619 | 10,7 | 73,8 |
Q90 Síndrome de Down | 43.980 | 5,7 | 79,5 |
I64, I69 Doenças Cerebrovasculares | 39.488 | 5,0 | 84,5 |
G40 Epilepsia | 25.796 | 2,4 | 86,9 |
H90.3, H91.3 Doenças do ouvido e da apófise mastoide | 37.961 | 5,0 | 91,9 |
H54 Cegueira de Ambos os Olhos | 28.526 | 4,1 | 96,0 |
B91 Sequelas de Poliomielite | 14.178 | 2,0 | 98 |
B24 Doença pelo HIV não especificada | 18.585 | 2,0 | 100 |
Total | 772.641 | 100 | - |
Fonte: Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Boletim - BPC 2015. Benefício de Prestação Continuada. Brasília: Secretaria Nacional de Assistência Social; 2015, p. 20-21.
Chama especialmente atenção, na Tabela 4, o fato de que 43% de beneficiários da amostra terem sido diagnosticados com “retardo mental” segundo a CID (CID F70-F79). A categoria diagnostica médica “retardo mental” guarda similaridade com o que, por exemplo, na Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2013 é categorizado como “deficiência intelectual”. É importante assinalar que na PNS a estimativa da prevalência de “deficiência intelectual” é de apenas 0,8% na população brasileira, sem variação regional28.
De acordo com a Tabela 4, o diagnóstico neuropsiquiátrico, quando agrupado, responde por 86,9% da amostra de 772.641 beneficiários ativos do BPC pessoas com deficiência em 2015. Este paradoxal resultado autoriza perguntar sobre o escopo do repertório de diagnósticos da perícia médica do INSS no âmbito do BPC. No que este restrito repertório se diferencia da percepção de senso comum sobre a pessoa com deficiência? A sobrerepresentação do diagnóstico neuropsiquiátrico é indicativa de que as demais categorias de diagnóstico elencadas ou ausentes na Tabela 4 estão sendo objeto de rotineira decisão de indeferimento?
Este artigo demonstra que o governo central brasileiro mantém uma burocracia especializada que atua com elevada autonomia nas decisões de elegibilidade aos benefícios sociais. Esta burocracia toma decisões de elegibilidade ao BPC por meio de procedimentos avaliativos influenciada por valores profissionais. Ainda que esse processo decisório se distancie das práticas patrimonialistas atribuídas à assistência social brasileira como um todo29, é necessário refletir se as preferências dessa burocracia são adequadas aos objetivos da política pública.
O artigo demonstra que a introdução do novo modelo de avaliação social do BPC no fim da década passada ocorreu em um contexto de efetivo declínio na participação relativa da força de trabalho com estabilidade nas carreiras burocráticas da previdência social brasileira. A diminuição sistemática do contingente de profissionais da assistência social foi um resultado inesperado da redução na força de trabalho estatutária do MPS/INSS nas duas últimas décadas. O artigo mostra também que a diminuição do quantitativo de peritos médicos foi extremamente residual no período. Diante desta evidência, a tese de um descolamento do papel decisório do campo biomédico na avaliação do requerente do BPC no âmbito do MPS/INSS dificilmente pode ser sustentada.
O ponto crítico da experiência brasileira pode ser atribuído à permanência do conflito normativo entre o modelo biomédico e o social no processo de elegibilidade ao BPC. Este artigo demonstra que, a despeito da mediação do modelo social por influência de diretrizes internacionais e da legislação doméstica, a elegibilidade ao BPC é subordinada ao diagnóstico clínico, que privilegia as limitações tipificadas em termos biomédicos por uma burocracia especializada.
Não há dúvida de que o país necessita ampliar a reflexão sobre a condição de acesso da pessoa com deficiência ao BPC e a confiabilidade da decisão finalística com base no diagnóstico. Esta ampliação favorecerá a que mais indivíduos em situação de vulnerabilidade possam ter acesso a direitos instituídos e, diante de recusa, possam ter mais elementos para a legítima ação política e mesmo demanda na esfera judicial.