versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.112 no.1 São Paulo jan. 2019
https://doi.org/10.5935/abc.20190008
O Programa Nacional de Educação sobre Colesterol dos Estados Unidos (NCEP) formou o Painel de Tratamento do Adulto (ATP) em 1985 com o objetivo de orientar o médico e fornecer recomendações de diretrizes para o tratamento de dislipidemias. Em suas primeiras recomendações de 1998, a abordagem da prevenção primária de doença cardiovascular incluiu a redução do LDL-colesterol (LDL-C) em indivíduos com mais de dois fatores de risco e níveis de LDL-C acima de 160 mg/dL e o tratamento opcional naqueles com níveis “borderline” de LDL-C entre 130 - 159 mg/dL.1 Em sua segunda versão, em 1994, foi introduzida uma categoria de prevenção secundária com um LDL-C abaixo de 100 mg/dL.2 Em 2001, a terceira versão do documento, o ATP-III, introduziu o conceito de LDL-C “ideal” < 100 mg/dL e introduziu o uso do Escore de Risco de Framingham (ERF) de 10 anos para a estimativa do risco para definir a intensidade do tratamento e atingir os níveis de LDL-C,3 e uma atualização deste documento introduziu um alvo mais agressivo de LDL-C < 70 mg/dL para aqueles com risco extremamente alto. O ATP-III também menciona o cálcio da artéria coronária (CAC) como um “fator de risco emergente”, afirmando que pode ser útil para a estratificação de risco adicional, predominantemente nos grupos de risco intermediário. Curiosamente, neste ponto, as recomendações eram de que o CAC poderia ser útil em indivíduos com múltiplos fatores de risco ou indivíduos mais velhos, nos quais “os fatores de risco tradicionais perdem um pouco de seu poder preditivo”. Em ambos os casos, o CAC foi proposto como uma ferramenta para rastrear indivíduos com um risco ainda maior do que o esperado, embora o ATP-III tenha sido claramente contra o uso generalizado de CAC como uma ferramenta de triagem.
Após a atualização do ATP-III, houve um intervalo considerável até a publicação das diretrizes da ACC/AHA para o Colesterol do Sangue de 2013,4 e uma abordagem completamente nova foi adotada para a seleção de candidatos ao tratamento do LDL-C. Primeiro, este documento atualizou as equações da fórmula para calcular o risco cardiovascular em 10 anos (Escore de Risco de Framingham apenas previa o risco de cardiopatia coronariana). Segundo, identificou grupos de maior risco que deveriam ser tratados independentemente do risco (LDL-C > 190 mg/dL, diabéticos). Terceiro, propôs uma recomendação muito mais ampla do uso de estatinas para a prevenção primária, incluindo todos os indivíduos com LDL-C > 70 mg/dL e um risco de doença cardiovascular aterosclerótica calculado > 5% em 10 anos. Essa abordagem mais ampla tem sido criticada por muitos, pois resultou em um aumento substancial do número de indivíduos nos quais as estatinas seriam recomendadas,5 incluindo recomendações de tratamento de indivíduos de menor risco devido à superestimação do risco derivada da ferramenta de avaliação de risco.6 Esse documento também conferiu ao CAC uma indicação de classe IIb para uso seletivo em indivíduos que atendessem à descrição vaga “nos quais a decisão de iniciar o tratamento não estava clara”. Neste documento, marcadores adicionais de risco incluíram CAC, proteína C-reativa de alta sensibilidade, índice braquial de tornozelo, história familiar de doença cardiovascular prematura ou indivíduos com LDL-C > 160 mg/dL - e todos receberam recomendações de IIb semelhantes com pouca coisa para diferenciar seu poder preditivo. Conforme recomendado no ATP-III, o uso desses marcadores foi como uma ferramenta de triagem adicional para identificar indivíduos com maior risco de tratamento mais agressivo, embora nenhuma recomendação clara sobre seu uso tenha sido fornecida.
A história de recomendação de tratamento de dislipidemias na prevenção primária no Brasil segue um padrão semelhante, com um consenso inicial publicado em 1994, onde foram dadas definições básicas de dislipidemias, mas não foram definidas recomendações claras ou metas de LDL-C. Em sua quinta recomendação, a Sociedade Brasileira de Cardiologia incluiu, pela primeira vez, o uso do CAC como fator de risco “agravante” e sugeriu um tratamento mais agressivo de indivíduos com CAC > 100 ou acima do 75º percentil,7 mas esta ainda era uma recomendação do CAC como uma ferramenta de triagem para identificar indivíduos de maior risco.
A atualização mais recente das recomendações dos EUA forneceu várias alterações nas recomendações anteriores. Primeiro, um grupo de risco intermediário foi reincorporado como parte da estratificação de risco. Nas novas diretrizes, indivíduos com risco de 10 anos <5% são considerados de baixo risco, aqueles entre 5 a 7,5% são considerados limítrofes, aqueles entre 7,5 e 20% são considerados de risco intermediário e aqueles acima de 20% são considerados indivíduos de alto risco. O reconhecimento de grupos de risco limítrofes e intermediários pode ser interpretado como uma necessidade de reconhecer a considerável incerteza das estimativas de risco atualmente utilizadas na prática. Embora as estratégias de tratamento sejam provavelmente bem definidas para a maioria dos indivíduos nos extremos de risco, uma proporção considerável da população ainda se encontra nos dois grupos de “zonas cinzentas”, onde a incerteza na recomendação pode surgir durante a discussão do risco médico-paciente.
Isso, na verdade, destaca outro aspecto das novas diretrizes. O documento destaca a necessidade de tomada de decisão compartilhada antes de qualquer prescrição de medicamento, incluindo uma discussão dos riscos e benefícios das estratégias de tratamento farmacológico e não farmacológico. Particularmente para aqueles indivíduos de risco intermediário, e talvez limítrofe, pode-se esperar considerável incerteza sobre a necessidade de terapia para muitos indivíduos. Para esse grupo de pacientes, as diretrizes recomendam considerar fatores de risco adicionais como ferramentas potenciais para favorecer o tratamento farmacológico.
Para o uso do CAC, uma abordagem completamente nova foi proposta. Em vez de uma ferramenta usada apenas para indivíduos de maior risco selecionados, nos quais o tratamento deveria ser mais agressivo, o CAC é agora proposto como uma ferramenta de duas vias (pode mudar os indivíduos tanto para cima como para baixo no espectro de risco) para indivíduos para os quais o tratamento pode ser considerado. Por um lado, se o CAC = 0, tratamento farmacológico pode ser suspenso ou adiado para a maioria dos indivíduos, enquanto um CAC > 0 favorece o tratamento, especialmente se > 100 unidades, > 75º percentil ou se > 0 em indivíduos com menos de 55 anos de idade.
Esta capacidade única do CAC de “tirar de risco” indivíduos em risco intermediário não é trivial. Neste grupo, aproximadamente metade da população tem um CAC = 0 e pode ser retirado do tratamento para um acompanhamento considerável.8 Com base nessas novas recomendações, uma redução considerável da necessidade de tratamento pode ser prevista no CAC e implementada conforme recomendado. Curiosamente, alguns dados sugerem que esta abordagem pode ser custo-efetiva do ponto de vista societário.9
Entretanto, ainda existem algumas lacunas no conhecimento para o uso generalizado dessa estratégia. Primeiramente, as diretrizes destacam que essa abordagem pode não ser recomendada em diabéticos, fumantes e indivíduos com histórico de doença cardiovascular prematura, embora isso seja amplamente baseado nos dados limitados disponíveis para esses subgrupos, e não em evidências de danos. Em segundo lugar, esta abordagem não é apoiada por ensaios clínicos randomizados, embora tenham sido propostos ensaios nesta área. Embora alguns tenha tido cuidado com o uso de radiação, a exposição atual de um exame de CAC (0,89 mSv), menor que um terço da exposição anual à radiação ambiente. Finalmente, uma lacuna importante no uso disseminado de CAC nos EUA e no Brasil é a falta atual de reembolso pela maioria dos prestadores de serviços de saúde ou pelo sistema público no Brasil.
Embora essas áreas exijam mais estudos e apresentem desafios para a implementação, a nova abordagem voltada para avaliação de risco individualizada e tomada de decisões compartilhadas com a inclusão opcional do CAC como parte do kit de ferramentas de tomada de decisão é um grande passo em direção a um tratamento mais preciso voltado para as preferências do indivíduo.