Print version ISSN 0102-6720
ABCD, arq. bras. cir. dig. vol.27 no.4 São Paulo Nov./Dec. 2014
https://doi.org/10.1590/S0102-67202014000400018
Situs inversus totalis é condição congênita rara que ocorre em 1 a cada 4000-20000 pessoas, caracterizada pela completa transposição das vísceras torácicas e abdominais1 - 14. Em contraste, situs solitus é termo que refere o arranjo normal dos órgãos. Qualquer disposição dos órgãos entre esses dois extremos é designado de situs ambiguous, situs transversus ou situs inversus partialis8.
A natureza etiológica desta anomalia não é conhecida. Esta condição é, normalmente, associada à expectativa de vida normal, a menos que anomalia gastrointestinal ou cardíaca esteja presente2 , 8. A anomalia cardíaca típica, que tem de 3-5% de incidência, é a transposição dos grandes vasos, e 80% têm o arco aórtico situado à direita5. Outras anomalias vasculares são variação do tronco celíaco e da artéria mesentérica superior4. Existem também anomalias do sistema gastrointestinal que incluem atresia de via biliar, atresia duodenal, veia porta pré-duodenal, aganglionose colônica, má rotação intestinal, polisplenia/asplenia, pâncreas anular, hérnia diafragmática e outros4 , 5. Além disso, pode estar associada à síndromes clínicas, como a de Kartagener (situs inversus, rinossinusite crônica e bronquiectasias)14.
Esta anomalia não é condição pré-maligna. No entanto, muitos casos de neoplasias malignas e situs inversus totalis têm sido relatados, especialmente câncer gástrico8. Associação entre o câncer colorretal e situs inversus totalis é rara.
Homem de 74 anos, branco, ex-alcoolista e fumante apresentou-se com história familiar sem alterações para casos de situs inversus totalis, doença hereditária e familiar ou câncer colorretal. O paciente não sabia que ele tinha situs inversus totalis e apresentava história de dor abdominal em hemiabdome esquerdo, astenia e palidez cutaneomucosa nos últimos dois anos. Ele tinha exame físico normal, exceto por mucosas pálidas, sons cardíacos audíveis no tórax direito e uma leve dor à palpação do abdome esquerdo. Ele tinha ultrassografia abdominal que mostrava apenas situs inversus abdominal e colonoscopia que demonstrou lesão subestenosante no ângulo hepático do cólon, cuja biópsia revelou adenocarcinoma moderadamente diferenciado. Seu antígeno carcinoembrionário era de 1,8 ng/dL. ECG e radiografia de tórax indicavam dextrocardia. A tomografia computadorizada mostrou transposição completa das vísceras abdominais, confirmando situs inversus totalis (Figura 1).
Figura 1 - Radiografia de tórax mostra dextrocardia e achados na tomografia do abdome com inversão de órgãos Li=fígado; St=estômago; Sp=baço; Ao=aorta
De acordo com os achados foi realizada hemicolectomia proximal com dissecção linfonodal seguida de anastomose ileocólica. O inventário de cavidade na laparotomia mostrou situs inversus abdominal e presença de lesão esférica e endurecida na flexura hepática do cólon (Figura 2) e ausência de comprometimento metastático macroscópico.
Figura 2 - Radiografia de tórax mostra dextrocardia e achados na tomografia do abdome com inversão de órgãos
A avaliação anatomopatológica (Figura 2) demonstrou adenocarcinoma tubular, moderadamente diferenciado com presença de invasão perineural, e vascular mas não angiolinfática. O estadiamento TNM ficou em: T3N0M0, estadio IIA.
O pós-operatório transcorreu sem intercorrências e o paciente recebeu alta do hospital no 4º dia após a operação. Ele começou quimioterapia adjuvante (proposta da Clínica Mayo), mas parou no quarto ciclo, devido à toxicidade gastrointestinal. Até o momento da redação deste texto, nenhum sinal de recidiva ou metástase foi observado.
Na literatura, existem 13 casos reconhecidos sobre este fato, fazendo um total de 14 casos. O câncer colorretal foi mais frequente em mulheres (n=9; 64%) do que homens (n=5; 36%). A idade variou 41-78 anos, média de 63,71 e mediana de 61,5 (DP=±10,40). O adenocarcinoma foi o tipo histológico presente em todos os casos. Em relação à localização do tumor, houve predomínio do cólon transverso (n=6; 43%), com destaque para a flexura hepática (n=5; 36%), seguido de cólon ascendente (n=4; 29%), reto (n=3, 21%), ceco e cólon sigmóide (n=1,7% em ambas as topografias). Agrupando-se os tumores no cólon direito (proximal ao ângulo esplênico) e à esquerda (do ângulo esplênico), observou prevalência de 79% e 21%, respectivamente, com significância estatística (p=0,029), de acordo com teste exato para a proporção com nível de significância de α=0,05. Em relação ao procedimento cirúrgico, 10 (71%) dos pacientes foram submetidos à hemicolectomia proximal e um caso de cada (7%) com retossigmoidectomia, amputação abdominoperineal, transversectomia e colostomia descompressiva. O procedimento cirúrgico por laparotomia representou 93% e apenas um caso foi operado por via laparoscópica (7%)8.
Os procedimentos cirúrgicos são considerados mais difíceis em pacientes com situs inversus do que em outros pacientes por causa da diferente posição anatômica de órgãos, especialmente em operação laparoscópica3.
A avaliação pré-operatória para situs inversus inclui dois objetivos principais: a avaliação de anomalias cardíacas e gastrointestinais, e orientação das vísceras. A extensão da avaliação deve ser baseada na complexidade do procedimento. Anomalias devem ser definidas pelo uso de várias tecnologias de imagem para determinar o tratamento cirúrgico apropriado e diminuir as dificuldades cirúrgicas e tempo4 , 5. Ademais, o risco de ocorrência de complicações intra-operatórias é maior em comparação com os procedimentos de pacientes sem situs inversus totalis 1. Além disso, são evitadas incisões cirúrgicas incorretas e segunda operação2.