versão impressa ISSN 1809-2950
Fisioter. Pesqui. vol.21 no.4 São Paulo out./dez. 2014
http://dx.doi.org/10.590/1809-2950/11556021042014
O rápido crescimento da população idosa no Brasil e a consequente mudança nos perfis demográfico e epidemiológico do país têm gerado desafios sociais e econômicos e suscitado a necessidade de estudos e pesquisas na área do envelhecimento.
Cabe ressaltar o aumento expressivo no número e percentual de idosos longevos, ou seja, de indivíduos com idade igual ou superior a 80 anos. Apesar deles representarem cerca de 1,3% da população mundial, esta faixa etária é o segmento populacional que cresce mais rapidamente1. No Brasil, enquanto a taxa média geométrica de crescimento anual da população idosa geral é de aproximadamente 3,3%, entre os idosos mais velhos é cerca de 5,4%, sendo uma das mais altas do mundo2.
A capacidade funcional é um dos indicadores mais importantes do estado de saúde da população idosa e surge, portanto, como um novo paradigma de saúde3. O envelhecimento saudável, dentro dessa nova ótica, passa a ser resultante da interação multidimensional entre saúde física, saúde mental, independência na vida diária, integração social, suporte familiar e independência econômica4 , 5.
Avaliação da capacidade funcional é um desafio a ser enfrentado, tendo em vista a heterogeneidade do processo de envelhecimento e as influências dos diferentes fatores aos quais famílias, idosos e sociedade podem estar sujeitos. No Brasil, poucos estudos abordam a capacidade funcional e seus determinantes na população de idosos longevos vivendo em comunidade5 , 6.
O envelhecimento não ocorre de forma homogênea, podendo variar de acordo com a condição socioeconômica, o acesso à informação e à educação, a cultura e a região em que os idosos residem7. Assim, a situação e a localização do indivíduo podem influenciar no processo de envelhecimento e ditar a forma como este sujeito vai experimentar a saúde em tal estágio da vida. Nessa perspectiva, o objetivo do presente estudo foi determinar a prevalência do comprometimento da capacidade funcional e os fatores associados em idosos longevos de um município do Nordeste brasileiro.
Trata-se de um estudo transversal que utilizou dados da pesquisa de bases populacional e comunitária "Estado nutricional, comportamentos de risco e condições de saúde dos idosos de Lafaiete Coutinho-BA". O município de Lafaiete Coutinho possuía, no período da coleta de dados, uma população de 4.162 habitantes, sendo destes 2,4% (n=100) correspondentes ao número de idosos longevos.
Foram excluídos da análise os sujeitos que, no momento da entrevista, não tinham um informante caso fossem incapazes de compreender as instruções devido a problemas cognitivos, avaliados por meio do Miniexame do Estado Mental (MEEM)8.
Um censo foi conduzido, em janeiro de 2011, a partir da listagem dos idosos cadastrados na Estratégia de Saúde da Família, que cobre 100% da população, para identificação dos idosos longevos, não institucionalizados e residentes na zona urbana. Dos 100 indivíduos identificados, 4 recusaram-se a participar e 2 não foram localizados no domicílio. Desse modo, a pesquisa foi constituída por 94 (94%) idosos longevos.
Foi utilizado um formulário próprio, recorte do questionário da Pesquisa Saúde, Bem-estar e Envelhecimento (SABE)9, acrescido do Questionário Internacional de Atividades Físicas (IPAQ), forma longa, versão brasileira10. As seguintes informações foram utilizadas: capacidade funcional (variável dependente), mensurada a partir das atividades básicas da vida diária (ABVD)11 e atividades instrumentais da vida diária (AIVD)12; características socioeconômicas e demográficas, condições de saúde e fatores comportamentais (variáveis independentes).
Os idosos foram classificados como independentes quando não relataram necessidade de ajuda para realizar nenhuma ABVD e AIVD, e dependentes quando reportaram precisarem de auxílio em pelo menos uma das atividades de cada dimensão. Conforme proposto por Hoyemans et al.13, uma escala de incapacidade funcional hierárquica foi construída distinguindo-se três categorias: independentes (categoria de referência); dependentes nas AIVD; dependentes nas ABVD e AIVD.
Para as condições de saúde e os fatores comportamentais, a categorização das variáveis foi mensurada a partir dos seguintes critérios: sintomas depressivos, avaliados pela Escala de Depressão Geriátrica (GDS) forma abreviada de 15 itens (escore<6 pontos determina ausência de sintomas e ≥6 estabelece a presença de sintomas)14; estado de peso, por meio do índice de massa corporal (IMC<22 kg/m2=peso insuficiente, 22 kg/m2≤IMC≤27 kg/m2=adequado e IMC>27 kg/m2= sobrepeso)15 e atividade física, considerando insuficientemente ativo quem realizava menos de 150 minutos por semana em atividades físicas moderadas ou vigorosas e ativo quem realizava 150 minutos ou mais16.
Procedeu-se à análise descritiva das variáveis e, em seguida, como medida de associação, estimou-se Odds Ratio (OR) e intervalos de confiança a partir da regressão logística multinomial. Em todas as análises, o nível de significância adotado foi de 5% (α=0,05). Os dados foram analisados no Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) para Windows, versão 15.0.
A caracterização dos idosos de acordo com as variáveis socioeconômicas e demográficas, as condições de saúde e os fatores comportamentais segue apresentada na Tabela 1. A média de idade foi de 86,1 anos (desvio padrão - DP=6,39), com idade máxima de 105 anos. A capacidade funcional foi avaliada em 94,6% (n=89) dos participantes do estudo, observando-se maior prevalência de idosos dependentes para AIVD.
Tabela 1. Características descritivas da população do estudo. Lafaiete Coutinho, Bahia, Brasil, 2011
Variáveis | % de resposta | n | % |
---|---|---|---|
Sexo Feminino Masculino |
100 |
56 38 |
59,6 40,4 |
Sabe ler e escrever Sim Não |
100 |
20 74 |
21,3 78,7 |
Estado civil Com união Sem união |
100 |
42 52 |
44,7 55,3 |
Raça/Cor Branco Não branco |
91,5 |
15 71 |
17,4 82,6 |
Renda per capita (R$) ≤255,00 255,00–510,00 >510,00 |
93,6 |
39 37 12 |
44,3 42,0 13,6 |
Participação em atividade religiosa Sim Não |
97,9 |
87 5 |
94,6 5,4 |
Atividade física Ativo Insuficientemente ativo |
97,9 |
24 68 |
26,1 73,9 |
Índice de massa corporal Peso normal Peso insuficiente Sobrepeso |
91,5 |
40 32 14 |
46,5 37,2 16,3 |
Saúde autopercebida Positiva Negativa |
92,5 |
34 53 |
39,0 51,0 |
Saúde comparada Melhor Igual Pior |
87,2 |
51 15 16 |
62,2 18,3 19,5 |
Hospitalização Nenhuma Acima de uma |
98,9 |
64 29 |
68,8 31,2 |
Número de doenças crônicas Nenhuma Uma Duas ou mais |
98,9 |
15 30 48 |
16,1 32,3 51,6 |
Quedas Não Sim |
100 |
68 26 |
72,3 27,7 |
Sintomas depressivos Sem sintomas Com sintomas |
85,1 |
57 23 |
71,3 28,7 |
Capacidade funcional Independente Dependente para AIVD Dependente para ABVD |
94,6 |
17 50 22 |
19,1 56,2 24,7 |
AIVD: atividades instrumentais da vida diária; ABVD: atividades básicas da vida diária
A prevalência de independência, dependência em ABVD e dependência em ABVD e AIVD, conforme exposição às variáveis socioeconômicas e demográficas, estão apresentadas na Tabela 2. Verificou-se que as idosas apresentam chance 4,65 vezes maior de dependência para ABVD e 4,20 vezes maior para AIVD em relação aos homens. Além disso, notou-se uma chance 4,69 vezes maior de dependência para AIVD entre os não brancos quando comparados aos que se declararam brancos (Tabela 2).
Tabela 2. Associação entre variáveis socioeconômicas e demográficas e capacidade funcional. Lafaiete Coutinho, Bahia, Brasil, 2011
Variáveis | Capacidade funcional | Valor p | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Independente | Dependente AIVD | Dependente ABVD | ||||
% | % | ORajustado (IC95%) | % | ORajustado (IC95%) | ||
Sexo Masculino Feminino |
70,6 29,4 |
34,0 76,0 |
1,0 4,65 (1,40–15,40) |
36,3 63,7 |
1,0 4,20 (1,08–16,32) |
0,026 |
Sabe ler e escrever Sim Não |
35,3 64,7 |
14,0 86,0 |
1,0 3,35 (0,93–12,00) |
31,8 68,2 |
1,0 1,16 (0,30–4,46) |
0,092 |
Estado civil Com união Sem união |
52,9 47,1 |
46,0 54,0 |
1,0 1,32 (0,43–3,97) |
40,9 59,1 |
1,0 1,62 (0,45–5,82) |
0,756 |
Raça/Cor Branco Não branco |
35,3 64,7 |
10,4 89,6 |
1,0 4,69 (1,20–18,25) |
16,7 83,3 |
1,0 2,72 (0,55–13,36) |
0,063 |
Renda per
capita >510,00 255,00–510,00 ≤255,00 |
13,3 73,4 13,3 |
10,4 37,5 52,1 |
1,0 0,65 (0,10–3,97) 4,90 (0,56–44,34) |
19,0 33,3 47,7 |
1,0 0,32 (0,04–2,22) 2,5 (0,25–24,37) |
0,066 |
AIVD: atividades instrumentais da vida diária; ABVD: atividades básicas da vida diária; valor p do teste do ?2 de Pearson; Odds ratio ajustada para as outras categorias de capacidade funcional
Como descrito na Tabela 3, dentre as condições de saúde e os aspectos comportamentais, apenas o uso de medicamentos esteve associado ao comprometimento da capacidade funcional, tanto na dependência para as AIVD, quanto para ABVD e AIVD.
Tabela 3. Associação entre as variáveis de saúde e biológicas e a capacidade funcional em idosos longevos. Lafaiete Coutinho, Bahia, Brasil, 2011
Variáveis | Capacidade funcional | Valor p | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Independente | Dependente AIVD | Dependente ABVD | ||||
% | % | ORajustada (IC95%) | % | ORajustada (IC95%) | ||
Índice de massa corporal Peso normal Peso insuficiente Sobrepeso |
64,7 29,4 5,8 |
39,5 37,5 23,0 |
1,0 2,00 (0,60–7,18) 6,36 (0,72–56,20) |
42,1 47,4 10,5 |
1,0 2,47 (0,59–10,26) 2,75 (0,21–35,83) |
0,256 |
Atividade física Ativo Insuficientemente ativo |
47,0 53,0 |
24,5 75,5 |
1,0 2,74 (0,86–8,68) |
18,2 81,8 |
1,0 4,00 (0,94–16,92) |
0,107 |
Número de doenças crônicas Nenhuma Uma Duas ou mais |
18,7 31,3 50,0 |
14,0 32,0 54,0 |
1,0 1,37 (0,25–7,39) 1,44 (0,30–6,92) |
18,2 31,8 50,0 |
1,0 1,05 (0,15–6,92) 1,03 (0,17–5,94) |
0,987 |
Uso de medicamentos Não usa Usa (um ou mais) |
61,5 38,5 |
20,5 79,5 |
1,0 2,71 (1,29–5,69) |
22,2 77,8 |
1,0 2,17 (0,95–4,95) |
0,036 |
Hospitalização Nenhuma Acima de uma |
76,5 23,5 |
70,0 30,0 |
1,0 1,39 (0,39–4,97) |
63,6 36,4 |
1,0 1,85 (0,45–7,66) |
0,686 |
Saúde autopercebida Positiva Negativa |
52,9 47,1 |
36,7 63,3 |
1,0 1,93 (0,63–5,91) |
23,5 76,5 |
1,0 3,65 (0,84–15,91) |
0,206 |
Saúde comparada Melhor Igual Pior |
66,6 20,0 13,4 |
65,9 14,9 19,2 |
1,0 0,75 (0,16–3,47) 1,45 (0,26–7,86) |
41,2 29,4 29,4 |
1,0 2,38 (0,42–13,38) 3,57 (0,53–23,95) |
0,427 |
Quedas Não Sim |
70,6 29,4 |
80,0 20,0 |
1,0 0,60 (0,17–2,09) |
54,5 45,5 |
1,0 2,00 (0,52–7,63) |
0,085 |
Sintomas depressivos Sem sintomas Com sintomas |
88,2 11,8 |
70,5 29,5 |
1,0 3,14 (0,62–15,75) |
60,0 40,0 |
1,0 5,00 (0,82–30,28) |
0,186 |
AIVD: atividades instrumentais da vida diária; ABVD: atividades básicas da vida diária; valor p do teste do ?2 de Pearson; Odds ratio ajustada para as outras categorias de capacidade funcional
O município de Lafaiete Coutinho apresenta baixos indicadores de saúde e qualidade de vida (4.487º colocação no ranking nacional, Índice de Desenvolvimento Humano Municipal - longevidade)17, e possui características peculiares, algumas tipicamente rurais, embora esta pesquisa tenha sido realizada com idosos da zona urbana.
A partir dos 80 anos, mesmo com um envelhecimento saudável, espera-se algum grau de comprometimento fisiológico na capacidade funcional desses idosos. Entretanto, a frequência e intensidade deste comprometimento são muito variadas18. Nusselder, Looman e Mackenbach19 relataram que a dependência funcional, observada principalmente em idosos mais velhos, está associada a fatores sociodemográficos, como nível educacional e renda; comportamentais, como sedentarismo, obesidade e consumo de álcool; e psicossociais, como perda de autonomia e sintomas depressivos.
Dentre os fatores socioeconômicos estudados, o sexo feminino apresentou forte associação com comprometimento da capacidade funcional. Corroborando com esses dados, um estudo realizado em 22 províncias da China, baseado em pesquisa com amostra de 8.805 idosos com idades entre 80 e 105 anos, apontou que mulheres de 80 anos ou mais foram seriamente desfavorecidas em capacidade funcional quando comparadas aos homens da mesma idade20.
O maior comprometimento da capacidade funcional em idosos do sexo feminino pode estar relacionado às diferenças nas condições de saúde e estilo de vida entre sexos. De modo geral, a expectativa de vida das mulheres é superior à dos homens. Porém, essa maior sobrevida não significa que as mulheres tenham melhores condições de saúde, uma vez que apresentam maior prevalência de condições incapacitantes não fatais, tais como osteoporose, osteoartrite e depressão21. Acrescenta-se ainda que mulheres têm maior perda de massa muscular com o envelhecimento, caracterizando-se como potencial fator responsável pela diminuição da capacidade funcional22.
A variável raça/cor associou-se ao comprometimento da capacidade funcional, com maior prevalência de dependência para AIVD (75%) dos não brancos quando comparados aos de cor branca. Em consonância com esses achados, o estudo transversal de base populacional, conduzido por Duca et al.23 com 598 indivíduos com idades iguais ou superiores a 60 anos da zona urbana de Pelotas, Rio Grande do Sul, encontrou associação da incapacidade funcional para as atividades básicas com as cores de pele parda, preta, entre outras.
Dessa forma, torna-se importante interpretar a associação da capacidade funcional com raça/cor de forma cautelosa. Diante das desigualdades sociais que permeiam o Brasil, que é um país em desenvolvimento, e o Nordeste, em especial, as exposições ao longo da vida podem ser influenciadas pelas diferenças étnicas. Assim, raça/cor pode estar diretamente associada ao nível socioeconômico do idoso.
A população idosa, por registrar maior fragilização e probabilidade de agravos, utiliza com frequência serviços de saúde e medicamentos. O uso de um ou mais medicamentos apresentou uma prevalência duas vezes maior para dependência nas ABVD e AIVD e 72% maior para dependência apenas nas AIVD, quando comparado àqueles idosos que não fazem uso deles. Associação semelhante foi encontrada no estudo transversal e de base populacional realizado com 397 idosos residentes na zona urbana de Ubá, Minas Gerais, de Nunes et al.24.
A relação entre comprometimento da capacidade funcional e uso de medicações pode sofrer influência de outros fatores como, por exemplo, presença de doenças crônicas25 que, apesar de não ter sido associada com comprometimento da capacidade funcional no presente estudo, obteve alta prevalência, sendo 83,9% dos idosos longevos portadores de uma ou mais doenças crônicas. A cultura de medicalização torna-se preocupante diante das reações adversas acentuadas nesse grupo, da possibilidade de iatrogenia e uso incorreto dos fármacos, exigindo da família e dos profissionais de saúde atenção especial com os idosos de idade mais avançada.
Os resultados apresentados neste estudo foram originados de delineamento transversal, inadequado para apreender relações temporais evolutivas da incapacidade funcional e, assim, realizar medidas diretas de risco. Dessa forma, o tipo de análise aplicado não teve como objetivo definir o caráter etiológico da incapacidade em idosos longevos, senão explorar um aspecto de análise inédito no contexto da realidade do Nordeste do Brasil.
A capacidade funcional é um importante marcador de envelhecimento bem-sucedido e da qualidade de vida dos idosos. A dificuldade ou incapacidade do idoso está associada à predição de fragilidade, dependência, institucionalização, morte e problemas de mobilidade, trazendo complicações ao longo do tempo e gerando cuidados de longa permanência e alto custo26.
Portanto, a meta no atendimento à saúde deixa de ser apenas prolongar a vida, mas, principalmente, manter a capacidade funcional do indivíduo, de forma que esse permaneça autônomo e independente pelo maior período possível. Para que isso ocorra, a manutenção da saúde do idoso deve ser baseada nos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) com objetivo do acesso universal e cuidado integral, por meio de estratégias, e não programas pontuais, adequados às necessidades deste grupo populacional.
Diante dos resultados obtidos, pôde-se concluir que há alta prevalência (80,9%) de idosos longevos dependentes para as AIVD e/ou ABVD e que o comprometimento da capacidade funcional neles associou-se ao sexo feminino, à raça/cor não branca e ao uso de um ou mais medicamentos.