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Características acústicas da qualidade vocal metálica

Características acústicas da qualidade vocal metálica

Autores:

Congeta Bruniere Xavier Fadel,
Ana Paula Dassie-Leite,
Rosane Sampaio Santos,
Marcelo de Oliveira Rosa,
Jair Mendes Marques

ARTIGO ORIGINAL

CoDAS

versão On-line ISSN 2317-1782

CoDAS vol.27 no.1 São Paulo jan./fev. 2015

http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20152014159

INTRODUÇÃO

A qualidade vocal metálica é descrita pela literatura como uma voz estridente, fina e desagradável( 1 ), sendo também associada ao padrão de ressonância vocal de foco faríngeo( 2 ). Sua emissão está relacionada à contração do trato vocal por meio de ajustes de constrição faríngea e de articuladores, elevação da laringe, tensão adutora( 3 ), abaixamento velar, constrição ariepiglótica e constrição lateral( 2 ).

A metalização da voz é vista por cantores e atores como um eficiente recurso de projeção vocal, sendo comumente utilizado em determinados estilos de canto, como o sertanejo e country americano( 3 ). No entanto, por se tratar de uma produção vocal que envolve ajustes hiperfuncionais de trato vocal(2) e por ser considerada aguda e irritante( 3 ), também é considerada como uma desordem de ressonância vocal fora do contexto artístico( 1 ).

Os ajustes glóticos e supraglóticos combinados às características anatômicas do indivíduo são responsáveis pela caracterização de uma qualidade vocal( 4 , 5 ). Tal combinação opera diretamente sobre as medidas da frequência dos formantes, nos quais F1 e F2 (formantes inferiores) são sensíveis quanto ao posicionamento dos lábios e da língua na cavidade oral e os formantes superiores (F3 e F4) estão relacionados ao comprimento total do trato vocal( 6 , 7 ).

A importância desse tipo de abordagem ao professor de canto se dá pelo conhecimento mais fundamentado dos fenômenos acústicos ocorridos no trato vocal, permitindo a ele um raciocínio técnico mais objetivo e um respaldo científico na sua prática pedagógica.

O objetivo deste estudo foi caracterizar a frequência fundamental e frequência de formantes F1, F2, F3 e F4 das emissões vocais de cantoras amadoras com qualidade vocal metálica.

MÉTODOS

Trata-se de estudo observacional, analítico e transversal. Participaram da amostra 60 cantoras amadoras, com idades entre 18 e 60 anos, sendo 30 mulheres de qualidade vocal metálica, integrantes do grupo estudo (GE), com média de idade de 32,6 anos, e 30 mulheres sem essa qualidade vocal que compuseram o grupo controle (GC), com média de idade de 34,2 anos. Todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), sob o número 154.350.

A amostra foi selecionada por uma triagem vocal perceptivo-auditiva (que inclui amostras vocais da emissão sustentada da vogal /ε/, fala encadeada e canto) realizada pela pesquisadora, por sua experiência prévia de 13 anos como professora de canto, na qual identificou 30 vozes metálicas e 30 não metálicas. As amostras vocais foram confirmadas por três juízes - dois professores de canto de mesma formação acadêmica em música e um fonoaudiólogo especialista em voz - com média de oito anos de experiência na área. Todos compartilhavam de forma clara a definição da expressão "voz metálica" e possuíam conhecimento prévio quanto à produção e à identificação perceptivo-auditiva do padrão vocal pesquisado.

Os juízes confirmaram, por meio de consenso, quais seriam as amostras consideradas metálicas e não metálicas. Para esse procedimento, foram consideradas amostras vocais de qualidade vocal metálica as vozes que apresentavam foco de ressonância faríngeo e que causavam incômodo ao juiz devido às características compatíveis com voz estridente.

Após a confirmação, foi realizada a etapa da coleta propriamente dita, a qual consistiu na gravação de amostras da emissão vocal da vogal /ε/ em tom habitual e em dois tons (frequências) pré-determinados - Lá 2 (220,0 Hz) e Dó 4 (523,2 Hz). As emissões foram gravadas por meio do software SONAR(r)8.0.2, com microfone unidirecional SHURE(r) modelo SM58 posicionado a 45° e 4 cm de distância da boca da cantora. Para os tons pré-determinados, utilizou-se como referência auditiva antes de cada emissão o teclado digital do software SPEECHPITCH (versão 1.1).

As amostras foram importadas para o software PRAAT 5.3.42 para a realização da análise acústica. Das emissões em tom habitual (TH), foram extraídos os valores da frequência fundamental (F0) e das medidas da frequência de formantes (FF) F1, F2, F3 e F4, enquanto que, das emissões em tons pré-determinados, foram extraídos os valores de F1, F2, F3 e F4. Para a análise dessas frequências (em Hz), foram utilizados como critério de seleção dos registros sonoros somente os seis segundos centrais de cada emissão, sendo desconsiderados os segundos iniciais e finais, extraindo-se os excertos com maior estabilidade.

Os dados foram analisados estatisticamente por meio do teste paramétrico t de Student, com nível de significância de 0,05 (5%).

RESULTADOS

A comparação entre grupos para TH demonstrou não haver diferença quanto ao parâmetro vocal F0, mas os valores de F2, F3 e F4 foram maiores no GE (Tabela 1).

Tabela 1. Comparação dos grupos estudo e controle para as variáveis F0, F1, F2, F3 e F4, na emissão da vogal /e/ em tom habitual 

Variáveis Média (Hz) Desvio padrão Valor de p
GE (n=30) GC (n=30) GE (n=30) GC (n=30)
F0 212,35 210,49 25,71 19,56 0,7543
F1 615,42 609,01 72,86 52,18 0,6969
F2 2.175,89 2.043,10 145,42 197,83 0,0044*
F3 2.976,63 2.731,48 160,46 177,85 0,0000*
F4 4.407,52 3.842,04 218,13 314,82 0,0000*

*Valores estatisticamente significantes (p=0,05) - teste t de Student Legenda: GE = grupo estudo; GC = grupo controle; F0 = frequência fundamental; F = formante

Nas tonalidades pré-estabelecidas, verificou-se diferença entre os dois grupos para F3 e F4, em ambos os tons (Tabela 2).

Tabela 2. Comparação dos grupos estudo e controle para as variáveis F1, F2, F3 e F4, na emissão da vogal /e/ nos tons Lá 2 e Dó 4 

Variáveis Média (Hz) Desvio padrão Valor de p
GE (n=30) GC (n=30) GE (n=30) GC (n=30)
Tom Lá 2
F1 605,00 620,04 76,22 45,60 0,3577
F2 2.117,17 2.069,73 171,43 187,97 0,3113
F3 2.972,23 2.839,76 175,54 244,76 0,0192*
F4 4.337,19 4.142,15 229,32 405,28 0,0254*
Tom Dó 4
F1 771,91 712,14 134,97 136,90 0,0939
F2 1.501,16 1.543,46 351,20 319,71 0,6275
F3 2.697,04 2.519,94 252,42 274,51 0,0118*
F4 3.932,86 3.612,50 382,70 353,95 0,0014*

*Valores estatisticamente significantes (p=0,05) - teste t de Student Legenda: GE = grupo estudo; GC = grupo controle; F = formante

DISCUSSÃO

Na área musical, percebe-se que os professores de canto não são unânimes quanto ao uso de terminologias para a descrição das diferentes qualidades vocais e de seus respectivos ajustes de trato vocal, ocorrendo o uso de denominações baseadas apenas nas sensações auditivas e vibrações corporais( 8 ). Deste modo, a associação da análise acústica à análise perceptivo-auditiva na descrição/identificação da qualidade vocal pode agregar-se como um recurso complementar a essa prática.

No presente estudo, os valores de F0 obtidos pelas cantoras de ambos os grupos são semelhantes aos valores de referência( 9 , 10 ), o que permite afirmar que a qualidade vocal metálica não pode ser considerada como um padrão vocal de F0 elevada. Contudo, a sensação de pitch agudo atribuído a ela se dá pelo aumento das frequências e amplitudes dos formantes( 2 ).

Quanto aos valores de FF, com a exceção de F1, todos os formantes em TH encontraram-se mais elevados nas vozes metálicas. É possível relacionar esse evento ao ajuste de encurtamento de trato vocal, ou seja, um trato vocal em menor tamanho resultaria em FFs maiores quando comparado a um trato vocal mais longo( 5 ). Fisiologicamente, esse encurtamento de trato vocal resultaria da elevação laríngea e da hipertonicidade dos músculos constritores faríngeos, ajustes estes associados à produção da voz metálica( 1 , 2 ).

Dentre esses valores, F2 do GE ficou acima do valor de referência, que é de 2.062 Hz( 11 ). Esse aumento de F2 foi relacionado à produção da voz em modo metálico por estudo que investigou os ajustes fisiológicos relacionados a ela( 2 ). Sabe-se que tal formante é variável conforme o posicionamento da língua na cavidade oral, mais precisamente no que se refere à modificação de seu corpo e ao seu posicionamento no sentido anteroposterior( 5 , 7 ). Possivelmente, os ajustes musculares que levaram a esse aumento de frequência são provenientes da anteriorização e elevação do dorso da língua, semelhante ao movimento que ocorre na produção da vogal /i/. Tal movimento lingual, além do ajuste de estiramento dos lábios em sorriso, é utilizado na prática do canto para se buscar a metalização da voz e foi referido pela literatura como um ajuste presente nessa qualidade vocal( 3 ). No entanto, para que tal hipótese pudesse ser confirmada, seria necessária a realização de exames radiológicos/de imagem complementares.

Nas emissões em tons pré-determinados, somente F3 e F4 apresentaram valores maiores para essa qualidade vocal. Esses formantes sofrem modificações relacionadas à dimensão da cavidade do trato vocal, cuja diminuição implicaria em frequências aumentadas( 7 , 12 ). Nesse caso, os ajustes de trato vocal empregados pelo GE durante a emissão do tom grave e agudo possivelmente implicaram em uma dimensão de trato vocal menor quando comparados ao GC.

CONCLUSÃO

A partir da avaliação acústica vocal, pode-se concluir que cantoras amadoras com qualidade vocal metálica apresentam F0 dentro dos padrões de normalidade. No entanto, apresentam valores da frequência dos formantes F2, F3 e F4 aumentados em relação às cantoras amadoras com qualidade vocal não metálica. O formante F2 parece ser o mais relacionado à qualidade vocal metálica, já que os valores médios apresentados pelo GE são superiores aos valores médios apontados pela literatura.

REFERÊNCIAS

1. Boone DlR, McFarlane SC. A voz e a terapia vocal. 5ª edição. Porto Alegre: Artes Médicas; 1994.
2. Hanayama EM, Camargo ZA, Tsuji DH, Pinho SMR. Metallic voice: physiological and acoustic features. J Voice. 2009;23(1):62-70.
3. Pinho SMR. Fundamentos em Fonoaudiologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 1998.
4. Laver J. Principles of phonetics. New York: Cambridge University Press; 1994.
5. Camardo ZA, Madureira S. Dimensões perceptivas das alterações de qualidade vocal e suas correlações aos planos da acústica e da fisiologia. DELTA. 2009;25(2):285-317.
6. Kent RD. Vocal tract acoustics. J Voice. 1993;7(2):97-117.
7. Lindblom BE, Sundberg JE. Acoustical consequences of lip, tongue, jaw, and larynx movement. J Acoust Soc Am. 1971;50(4):1166-79.
8. Pacheco COLC, Marçal M, Pinho SMR. Registro e cobertura: arte e ciência no canto. Rev CEFAC. 2004;6(4):429-35.
9. Santos CC, Mituuti CT, Berretin-Felix G, Teles LCS. Características da fonetografia em mulheres com equilíbrio dentofacial. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2010;15(4):584-8.
10. Felippe ACN, Grillo MHMM, Grechi TH. Normatização de medidas acústicas para vozes normais. Rev Bras Otorrinolaringol. 2006;72(5):659-64.
11. Monteiro MC. Uma análise computadorizada espectrográfica dos formantes das vogais orais do Português Brasileiro falado em São Paulo [monografia]. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo; 1995.
12. Sundberg J. Articulatory interpretation of the "singing formant". J Acoust Soc Am. 1974;55(4):838-44.