versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.16 no.4 São Paulo 2018 Epub 29-Nov-2018
http://dx.doi.org/10.31744/einstein_journal/2018ao4368
O termo “qualidade de vida” é comumente investigado e discutido por diferentes pesquisadores/profissionais de diversas áreas. Buscando unificar este termo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu qualidade de vida como “a percepção dos indivíduos de sua posição na vida no contexto da cultura e sistemas de valores em que vivem e em relação às suas metas, expectativas, padrões e preocupações”.(1) Assim, nota-se que a qualidade de vida pode ser considerada um conceito complexo e multidimensional sensível a mudanças físicas, psicológicas, sociais e ambientais.(2) Considerando a qualidade de vida relacionada à saúde, destaca-se o crescente interesse dos pesquisadores desta área pela melhoria da qualidade de vida dos indivíduos, principalmente daqueles acometidos por alguma doença.
O câncer é uma doença comumente investigada no contexto da qualidade de vida. Sua prevalência aumenta ao longo dos anos, influenciando negativamente na vida das pessoas. Os pacientes acometidos por doenças graves, como o câncer, geralmente apresentam uma variedade de sintomas, como náuseas, vômitos, diarreia, constipação, aversões alimentares, fadiga, dispneia e dor, que podem influenciar na vida cotidiana deles.(2-4) Destaca-se, ainda, que o apetite também é um aspecto que pode interferir na vida diária de indivíduos enfermos. Pacientes com câncer submetidos a tratamento oncológico, principalmente à quimioterapia, relatam sensações de mudança tanto no paladar quanto no apetite.(5-9)
Outro ponto importante a ser destacado é que o câncer, associado ao distúrbio do apetite e aos efeitos tóxicos do tratamento, pode aumentar a gravidade e a persistência dos sintomas da doença, afetando a ingestão dietética dos pacientes(3,10-12) e, consequentemente, sua qualidade de vida.(13,14)
Ainda, o local do tumor, o estágio clínico da doença, alguns sintomas e o uso de quimioterapia/radioterapia são fatores associados à alteração da ingestão dietética.(9,15) Entretanto, poucos estudos apresentam resultados sobre a influência da ingestão dietética na qualidade de vida de pacientes com câncer.
Estudos(9,16-18) sugerem que a baixa ingestão de alimentos pode influenciar na capacidade dos pacientes com câncer de manter o estado nutricional adequado durante o tratamento, mas são escassos os trabalhos que incluíram análise quantitativa do consumo de energia e macronutrientes, avaliação do apetite e sintomas, e a relação destes aspectos com a qualidade de vida de pacientes oncológicos. Apesar de a investigação da influência de características clínicas e demográficas na qualidade de vida ser bem documentada na literatura, estas relações não têm sido consideradas simultaneamente ao consumo de energia/macronutrientes e apetite, tornando a presente investigação relevante.
Estimar o consumo de energia e macronutrientes e sua relação com características clínicas e demográficas de pacientes com câncer; comparar o consumo de energia e macronutrientes com as recomendações vigentes para pacientes com câncer; estimar a influência de ingestão dietética, apetite, sintomas da doença/tratamento e de características clínicas e demográficas na qualidade de vida de pacientes com câncer.
Trata-se de estudo transversal com delineamento amostral não probabilístico por conveniência. O tamanho mínimo da amostra foi calculado considerando a necessidade de pelo menos cinco indivíduos por parâmetro do modelo hipotético idealizado.(19) O modelo final testado foi constituído por 76 parâmetros, o que resultou em estimativa inicial de 380 indivíduos. Porém, foi adicionada uma taxa de perda de 20%, de modo que o tamanho amostral mínimo passou a ser de 456 pessoas.
Foram convidados a participar pacientes atendidos no Hospital de Câncer de Barretos, em Barretos (SP), com diagnóstico de neoplasias malignas. Foram adotados como critérios de exclusão: pacientes submetidos a procedimentos cirúrgicos de alta e intermediária complexidade, com comprometimento cognitivo e indivíduos com idade inferior a 18 anos. Cabe esclarecer que somente aqueles que assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foram incluídos na amostra de estudo.
Os dados demográficos coletados incluíram sexo, idade, estado civil, presença e prática religiosa, atividade laboral e classe econômica. A idade foi avaliada em anos completos. O estado civil foi avaliado em categorias (solteiro, casado, viúvo e separado/divorciado). A prática de religião e a atividade laboral foram avaliadas dicotomicamente (presença ou ausência). A classe econômica foi obtida por meio do Critério de Classificação Econômica Brasil.(20)
As informações clínicas sobre a doença foram obtidas consultando o prontuário clínico do paciente. As variáveis avaliadas foram tipo de neoplasia (especialidade do diagnóstico), estágio da doença, tipo de tratamento (quimioterapia, radioterapia ou quimioterapia e radioterapia) e metástase (presença ou ausência).
A altura e o peso informados pelo paciente foram registrados para o cálculo do índice de massa corporal (IMC) e posterior classificação do estado nutricional antropométrico.(21)
Ingestão dietética, apetite/sintomas e qualidade de vida foram estimadas por meio de instrumentos específicos descritos a seguir.
A ingestão dietética foi estimada usando o Questionário de Frequência Alimentar (QFA) proposto por Matarazzo et al.,(22) para pacientes com câncer, que determina a frequência de alimentos consumidos. Para todos os itens de alimentos e bebidas, os participantes foram convidados a relatar a frequência de consumo diário.
Em seguida, a ingestão de energia, proteína, lipídeo e carboidrato foi estimada utilizando-se a Tabela Brasileira de Composição de Alimentos (TACO). Para os alimentos cuja composição não foi descrita na TACO, utilizaram-se o programa AVANUTRI 4.0 e a Tabela de Composição Nutricional dos Alimentos Consumidos no Brasil.
O comprometimento do apetite e os sintomas dos pacientes foram avaliados utilizando o Cancer Appetite and Symptom Questionnaire (CASQ), que foi originalmente proposto na língua inglesa por Halliday et al.,(23) O instrumento foi desenvolvido com 12 itens (4 deles com escala de resposta formulado no sentido oposto aos demais itens), escala de resposta do tipo Likert de 5 pontos e modelo unifatorial. A versão em português do CASQ foi desenvolvida e apresentada por Spexoto et al.,(24) que relataram bons indicadores psicométricos do instrumento quando aplicado a pacientes com câncer.
O comprometimento da qualidade de vida foi avaliado utilizando-se o European Organization for Research and Treatment of Cancer - Quality of Life Questionnaire Core 30 (EORTC QLQ-C30), que foi originalmente proposto na língua inglesa por Aaronson et al.,(25) O instrumento foi desenvolvido com 30 itens, escalas de resposta do tipo Likert de 4 pontos e 7 pontos e 10 fatores.
Os fatores são: Qualidade de Vida Geral (itens: 19 e 30), Função Física (itens: 1, 2, 3, 4 e 5), Desempenho Funcional (itens: 6 e 7), Função Emocional (itens: 21, 22, 23 e 24), Função Cognitiva (itens: 20 e 25), Função Social (itens: 26 e 27), Fadiga (itens: 10, 12 e 18), Náusea/Vômito (itens: 14 e 15), Dor (itens: 9 e 19) e Condições Diversas ou “Spurious” (itens: 8, 11, 13, 16, 17 e 28).
A versão em português do EORTC QLQ-C30 foi desenvolvida e apresentada pela European Organisation for Research and Treatment of Cancer. Campos et al.,(26) relataram bons indicadores psicométricos da versão em português instrumento em pacientes com câncer.
Para comparar a ingestão dietética, segundo as características clínicas e demográficas, utilizou-se a análise de variância (ANOVA), sendo a ingestão dietética a variável dependente (representada pelo consumo diário de energia, proteína, lipídeo e carboidrato), e as independentes as variáveis clínicas e demográficas. O pós-teste de Tukey foi utilizado para comparações múltiplas e, quando a homoscedasticidade foi violada, utilizou-se a correção de Welch, seguida do pós-teste Games-Howell.
Para comparar a ingestão de energia, proteína, lipídeo e carboidrato dos pacientes com os valores de referência, utilizou-se intervalo de confiança de 95% (IC95%). A ingestão de energia e proteína dos pacientes foi comparada às recomendações do Consenso Nacional de Nutrição Oncológica do Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA),(27) enquanto a ingestão de lipídeo e carboidrato foi comparada às recomendações do Institute of Medicine (IOM).(28)
As propriedades psicométricas do CASQ e do EORTC QLQ-C30 foram estimadas para a amostra de estudo. Para tanto, realizou-se análise fatorial confirmatória com o método de estimação Weighted Least Squares Mean and Variance Adjusted (WLSMV) na matriz de correlação policórica. Os índices razão do teste do χ2 pelos graus de liberdade (χ2/gl), root mean square error of approximation (RMSEA), comparative fit index (CFI) e Tucker-Lewis Index (TLI) foram utilizados para avaliar o ajustamento dos instrumentos. Valores de χ2/gl≤5,0, RMSEA≤0,10, CFI e TLI≥0,90 foram considerados adequados.(29) Quando os instrumentos não apresentaram ajustamento adequado à amostra, recorreu-se aos índices de modificação estimados a partir dos Multiplicadores de Langrange (ML) para seu refinamento.(29) O peso fatorial (λ) de cada item dos instrumentos também foi avaliado, e valores >0,35 foram considerados aceitáveis.(19) A consistência interna também foi investigada a partir do coeficiente alfa de Cronbach, e valores maiores que 0,70 foram considerados adequados.
Um modelo hipotético causal foi construído, considerando o “comprometimento da qualidade de vida” como variável dependente. Para tanto, foi elaborado um modelo hierárquico de segunda ordem do EORTC QLQ-C30. É importante esclarecer que o fator de primeira ordem “Qualidade de Vida Geral” não foi incluído nas análises, uma vez que trata de uma avaliação generalizada. As variáveis energia, proteína, lipídeo, carboidrato, IMC, estágio da doença (1=I, 2=II, 3=III ou 4=IV), metástase (0=ausente,1=presente), sexo (0=mulher, 1=homem), prática de religião (0=não, 1=sim), atividade laboral (0=não, 1=sim) e classe econômica (1=D e E, 2=C, 3=B, 4=A) foram inseridas no modelo como variáveis independentes.
O modelo foi elaborado no programa MPLUS 7.2 (Muthén & Muthén, Los Angeles, 2014) utilizando o método de estimação WLSMV. Para avaliação, observou-se o ajustamento do modelo de medida por meio dos índices χ2/gl, RMSEA, CFI e TLI, com seus respectivos valores de referência. A significância das trajetórias hipoteticamente causais (β) também foram avaliadas (teste z).(29) O nível de significância de 5% foi adotado para tomada de decisão. Para refinamento do modelo, consideraram-se somente as trajetórias significativas que foram avaliadas passo a passo. Além disso, a investigação de multicolinearidade foi realizada por meio do cálculo do variance inflation fator (VIF), e valores > 5 foram indicativos de multicolinearidade.
Pesquisadores devidamente treinados coletaram os dados nas salas de espera e nas unidades de internação do Hospital de Câncer de Barretos. O período da coleta foi de 2013 a 2014, sendo os pacientes entrevistados durante a espera para atendimento. A participação foi voluntária, e os pacientes receberam todas as informações referentes aos objetivos do estudo e aos aspectos éticos, tendo sido garantido o anonimato. As informações clínicas dos pacientes foram coletadas dos prontuários dos mesmos.
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do Hospital de Câncer de Barretos (protocolo 561/2011).
No total, 772 indivíduos com câncer de ambos os sexos (63% mulheres) foram incluídos no estudo. A média de idade dos participantes foi de 53,2 (desvio padrão de 12,7) anos e IMC médio de 25,8kg/m2 (desvio padrão de 5,4). Apresentam-se, na tabela 1, as características clínicas e demográficas dos pacientes com câncer, bem como a comparação da ingestão dietética, de acordo com as mesmas.
Tabela 1 Características demográficas e clínicas da amostra de pacientes com câncer e comparação da ingestão dietética
Característica | Ingestão dietética (média±desvio padrão) | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
| |||||||||
n (%) | Energia total (kcal/dia) | Valor de p | Proteína (g/dia) | Valor de p | Lipídeo (g/dia) | Valor de p | Carboidrato (g/dia) | Valor de p | |
Sexo | |||||||||
Masculino | 286 (37,0) | 1.330,70±347,49 | 57,38±22,05 | 27,25±10,23 | 218,46±55,35 | ||||
Feminino | 486 (63,0) | 1.355,82±322,56 | 0,311 | 56,79±18,62 | 0,691 | 27,39±9,75 | 0,844 | 226,19±55,70 | 0,063 |
Religião | |||||||||
Não | 29 (3,8) | 1.289,67±372,71 | 56,72±21,30 | 26,13±8,84 | 211,27±58,61 | ||||
Sim | 743 (96,2) | 1.348,76±330,37 | 0,347 | 57,02±19,91 | 0,937 | 27,39±9,97 | 0,504 | 223,81±55,53 | 0,234 |
Prática de religião | |||||||||
Não | 107 (13,9) | 1.289,88±343,95 | 55,17±20,66 | 25,67±9,40 | 214,38±57,44 | ||||
Sim | 665 (86,1) | 1.355,66±329,37 | 0,057 | 57,30±19,83 | 0,305 | 27,61±10,00 | 0,061 | 224,78±55,28 | 0,073 |
Estado civil | |||||||||
Solteiro | 112 (14,5) | 1.340,85±333,35 | 58,80±20,67 | 28,20±10,73 | 217,67±55,03 | ||||
Casado | 506 (65,6) | 1.357,95±335,58 | 57,25±20,05 | 27,29±9,88 | 226,12±55,95 | ||||
Viúvo | 77 (10,0) | 1.350,25±344,61 | 56,64±19,61 | 28,23±10,12 | 223,06±59,82 | ||||
Separado/divorciado | 76 (9,9) | 1.275,89±289,59 | 0,253 | 53,17±18,50 | 0,284 | 25,49±8,70 | 0,251 | 213,53±49,67 | 0,188 |
Atividade laboral | |||||||||
Não | 558 (72,3) | 1.327,19±322,63 | 55,46±19,31 | 26,52±9,24 | 221,83±54,26 | ||||
Sim | 214 (27,7) | 1.397,02±350,98 | 0,009* | 61,04±21,04 | <0,001* | 29,48±11,27 | <0,001* | 227,27±59,12 | 0,224 |
Classe econômica, renda média | |||||||||
A (R$ 9.263,00) | 20 (2,6) | 1.435,64±345,32a | 66,96±25,64a | 32,33±12,64a | 224,85±53,66a,b | ||||
B (R$ 3.947,00) | 267 (34,6) | 1.384,53±306,26a | 59,67±19,34a | 28,15±9,43a | 228,86±52,03a | ||||
C (R$ 1.416,00) | 368 (47,7) | 1.349,66±343,88a | 56,49±19,90a | 27,32±10,23a,b | 224,50±57,14a | ||||
D e E (R$ 776,00) | 117 (15,1) | 1.234,84±326,26b | <0,001* | 50,88±18,81b | <0,001* | 24,71±9,00b | 0,002* | 206,81±56,86b | 0,004* |
Especialidade do diagnóstico | |||||||||
Cabeça e pescoço | 61 (7,9) | 1.400,15±386,66 | 60,45±24,85a,b | 29,34±12,20a,b | 228,00±60,00 | ||||
Trato digestivo superior | 81 (10,5) | 1.425,29±397,32 | 62,59±25,56a | 29,51±11,33a | 232,55±65,77 | ||||
Trato digestivo inferior | 175 (22,7) | 1.363,60±304,37 | 58,45±19,62a,b | 28,27±8,87a | 223,42±50,66 | ||||
Ginecologia | 102 (13,2) | 1.367,54±359,64 | 57,80±19,92a,b | 28,30±10,97a,b | 225,97±62,10 | ||||
Câncer de mama | 248 (32,1) | 1.314,95±281,99 | 54,34±16,23a,b | 25,95±8,98a,b | 221,85±49,31 | ||||
Pulmão | 46 (6,0) | 1.250,66±360,45 | 50,11±18,56b | 24,10±7,91b | 213,60±62,37 | ||||
Urologia | 59 (7,6) | 1.303,70±351,09 | 0,065† | 56,73±19,54a,b | 0,008† | 26,24±10,39a,b | 0,003† | 214,87±58,27 | 0,592† |
Estágio da doença | |||||||||
I | 51 (6,6) | 1.296,30±268,54 | 54,82±14,33 | 26,34±8,29 | 215,31±44,09 | ||||
II | 196 (25,4) | 1.321,71±318,07 | 55,92±18,39 | 26,48±9,52 | 219,89±56,03 | ||||
III | 301 (39,0) | 1.356,92±331,54 | 57,50±20,03 | 27,72±10,16 | 224,60±55,58 | ||||
IV | 224 (29,0) | 1.365,77±356,22 | 0,347 | 57,79±22,16 | 0,632 | 27,80±10,28 | 0,407 | 226,47±57,77 | 0,445 |
Tipo de tratamento | |||||||||
Quimioterapia | 559 (72,4) | 1.351,59±336,11a | 57,28±20,26a | 27,45±10,01a | 224,20±56,52 | ||||
Radioterapia | 95(12,3) | 1.265,77±282,07a | 50,39±13,78b | 23,95±7,20b | 217,76±50,90 | ||||
Quimioterapia e radioterapia | 118 (15,3) | 1.387,66±341,22b | 0,023* | 61,06±21,42a | <0,001* | 29,53±10,76a | <0,001* | 223,71±55,41 | 0,579 |
Presença de metástase | |||||||||
Não | 459 (59,5) | 1.340,53±319,58 | 56,63±19,22 | 27,29±9,89 | 222,15±52,57 | ||||
Sim | 313 (40,5) | 1.355,37±349,69 | 0,542 | 57,56±20,99 | 0,529 | 27,41±9,99 | 0,877 | 225,07±59,96 | 0,476 |
Índice de massa corporal | |||||||||
<18,5 (baixo peso) | 52 (6,8) | 1.415,38±416,95 | 61,69±26,09 | 30,74±11,14a | 228,28±63,51 | ||||
18,5|-25,0 (eutrofia) | 326 (42,2) | 1.368,17±349,23 | 58,21±20,81 | 28,26±10,36a | 225,55±58,86 | ||||
25,0|-30,0 (sobrepeso) | 244 (31,6) | 1.307,09±295,46 | 54,34±16,66 | 25,82±9,19b | 219,40±51,74 | ||||
≥30,0 (obesidade) | 150 (19,4) | 1.339,86±311,62 | 0,082† | 57,10±20,16 | 0,050† | 26,71 ±9,27a,b | 0,004† | 223,21±51,80 | 0,545† |
Letras iguais indicam semelhança estatística. * Diferença estatística significativa (p<0,05); † análise de variância com correção de Welch (pós-teste Games-Howell).
Foi maior a prevalência de indivíduos do sexo feminino, que afirmaram ter e praticar alguma religião, casados, com atividade laboral, pertencentes à classe econômica C e com estado nutricional eutrófico. Ainda, foram prevalentes indivíduos com câncer de mama, em estágio III, em tratamento quimioterápico e sem metástase. A ingestão dietética apresentou relação significativa com atividade laboral, classe econômica, área de especialidade do câncer, tipo de tratamento e IMC. Os indivíduos que relataram possuir atividade laboral tiveram maior consumo de energia, proteína e lipídeo, ao contrário dos indivíduos pertencentes às classes econômicas mais baixas. No que diz respeito à especialidade diagnóstica do câncer, os pacientes com câncer de pulmão apresentaram menor consumo de proteína e lipídeo do que aqueles com câncer no aparelho digestivo superior e inferior. Os pacientes submetidos à quimioterapia e à radioterapia tiveram maior consumo de energia do que os que receberam outros tratamentos. Já pacientes submetidos somente à radioterapia apresentaram menor consumo de proteína e lipídeo. Em relação ao IMC, os indivíduos classificados em sobrepeso apresentaram menor consumo de lipídeo do que os classificados em eutrofia ou baixo peso.
Na tabela 2, encontra-se a comparação da ingestão dietética dos pacientes com os valores de referência para o consumo de energia e macronutrientes. Os participantes apresentaram consumo abaixo do recomendado.
Tabela 2 Caracterização do consumo de energia e de macronutrientes dos pacientes com câncer e valores de ingestão recomendados
Média±desvio-padrão | Mediana | Moda | Assimetria | Curtose | IC95% | |
---|---|---|---|---|---|---|
Energia, kcal/dia | ||||||
Consumo | 1.346,55±331,98 | 1.317,70 | 903,62 | 0,62 | 1,37 | 1.323,13-1.369,97 |
Recomendação* | 1.716,22±391,58 | 1.675,00 | 1.700,00 | 0,68 | 0,68 | 1.688,60-1.743,84 |
Proteína, g/dia | ||||||
Consumo | 57,01±19,95 | 54,07 | 54,07 | 1,24 | 2,66 | 55,60-58,42 |
Recomendação* | 82,38±18,80 | 80,40 | 81,60 | 0,68 | 0,68 | 81,05-83,71 |
Lipídeo, g/dia | ||||||
Consumo | 27,34±9,92 | 25,86 | 21,02 | 1,04 | 2,06 | 26,64-28,04 |
Recomendação† | 57,21±13,05 | 55,83 | 56,67 | 0,68 | 0,68 | 56,29-58,13 |
Carboidrato, g/dia | ||||||
Consumo | 223,33±55,66 | 222,87 | 206,50 | 0,46 | 1,19 | 219,40-227,26 |
Recomendação† | 235,98±53,84 | 230,31 | 233,75 | 0,68 | 0,68 | 232,18-239,78 |
* Valores de recomendação, segundo o Consenso Nacional de Nutrição Oncológica do Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva;(27)† valores aceitáveis de distribuição de macronutrientes segundo o Institute of Medicine. IC95%: intervalo de confiança de 95%.
Na tabela 3, apresentam-se os indicadores para avaliação das propriedades psicométricas dos instrumentos CASQ e EORTC QLQ-C30. Nenhuma das duas ferramentas apresentou adequado ajustamento aos dados, quando avaliadas as propostas originais, tendo os dados, então, sido refinados. Para o CASQ, dois itens foram excluídos, por apresentarem baixos pesos fatoriais (item 5: λ=0,27; e item 6: λ=0,19). Foram também adicionadas três correlações entre os erros de itens (1-2: ML=49,93; 1-3: ML=168,78; 10-11: ML=106,96).
Tabela 3 Indicadores para avaliação das propriedades psicométricas do Cancer Appetite and Symptom Questionnaire e do European Organization for Research and Treatment of Cancer - Quality of Life Questionnaire Core 30 quando aplicados a uma amostra de pacientes com câncer
Instrumento | Modelo | χ2/gl | RMSEA (IC90%) | CFI | TLI | λ | β | IE | e | α |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
CASQ original | Unifatorial | 12,79 | 0,12 (0,11-0,13) | 0,93 | 0,92 | 0,19-0,92 | - | - | - | 0,80 |
CASQ refinado | Unifatorial | 7,72 | 0,09 (0,08-0,10) | 0,98 | 0,97 | 0,36-0,92 | - | 5 e 6 | 1 e 2, | 0,81 |
1 e 3, | ||||||||||
10 e 11 | ||||||||||
EORTC QLQ-30 original | 9 fatores de primeira ordem | 2,71 | 0,05 (0,04-0,05) | 0,97 | 0,96 | 0,52-0,99 | - | - | - | 0,41-0,83 |
EORTC QLQ-30 refinado | 8 fatores de primeira ordem | 3,63 | 0,06 (0,05-0,06) | 0,96 | 0,95 | 0,50-0,98 | - | 8, 11, 13, 16, 17, 28, 29 e 30 | - | 0,50-0,83 |
EORTC QLQ-30 refinado | 8 fatores de primeira ordem e 1 fator de segunda ordem | 4,11 | 0,06 (0,06-0,07) | 0,95 | 0,94 | 0,50-0,98 | 0,53-0,94 | 8, 11, 13, 16, 17, 28, 29 e 30 | - | 0,50-0,83 |
χ2/gl: χ2 pelos graus de liberdade; RMSEA: root mean square error of approximation; IC90%: intervalo de confiança de 90%; CFI: comparative fit index; TLI: Tucker-Lewis Index; λ: peso fatorial dos itens; β: estimativas padronizadas das trajetórias; IE: itens excluídos; e: itens com correlação entre erros; α: coeficiente alfa de Cronbach; CASQ: Cancer Appetite and Symptom Questionnaire; EORTC QLQ-C30: European Organization for Research and Treatment of Cancer - Quality of Life Questionnaire Core 30.
Para ajustamento do EORTC QLQ-C30 à amostra, o fator Spurious foi excluído. Em seguida, testou-se o modelo hierárquico com um fator de segunda ordem denominado “Comprometimento da qualidade de vida”. Este modelo apresentou bom ajustamento aos dados. A consistência interna foi adequada em ambos os instrumentos, com exceção do fator “Função Cognitiva” do EORTC QLQ-C30.
A tabela 4 apresenta o modelo estrutural (completo e refinado) testado com as trajetórias hipoteticamente causais para a amostra de pacientes com câncer. O item 12 do CASQ e o fator Dor do EORTC QLQ C-30 foram colineares (VIF=5,26), e este item foi eliminado.
Tabela 4 Modelo estrutural (completo e refinado) considerando o impacto de variáveis clínicas e demográficas, ingestão dietética e apetite/sintomas, no comprometimento da qualidade de vida de pacientes com câncer
Variável independente | Completo | Refinado | ||||
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β | EP | Valor de p | β | EP | Valor de p | |
Apetite/sintomas (CASQ) | 0,766 | 0,022 | <0,001* | 0,645 | 0,027 | <0,001* |
Sexo | -0,120 | 0,043 | 0,005* | -0,197 | 0,086 | 0,021* |
Prática de religião | -0,015 | 0,039 | 0,705 | - | - | - |
Atividade laboral | -0,033 | 0,039 | 0,401 | - | - | - |
Estágio da doença | 0,062 | 0,048 | 0,192 | - | - | - |
Presença de metástase | 0,174 | 0,046 | <0,001* | 0,423 | 0,078 | <0,001* |
Índice de massa corporal | -0,036 | 0,040 | 0,361 | - | - | - |
Classe econômica | 0,087 | 0,040 | 0,028* | 0,152 | 0,052 | 0,003* |
Energia, kcal/dia | 0,637 | 1,123 | 0,570 | - | - | - |
Proteína, g/dia | -0,198 | 0,297 | 0,505 | - | - | - |
Lipídeo, g/dia | -0,117 | 0,305 | 0,701 | - | - | - |
Carboidrato, g/dia | -0,503 | 0,717 | -0,702 | - | - | - |
β: estimativa padronizada (trajetória); EP: erro padrão; CASQ: Cancer Appetite and Symptom Questionnaire. * p<0,05.
O modelo completo apresentou algumas trajetórias não significativas, tendo sido refinado. Após refinamento, o modelo apresentou adequado ajustamento aos dados (χ2/gl=3,90; RMSEA=0,06; IC90% 0,05-0,06; CFI=0,92; TLI=0,91) e variância explicada de 47%. Nota-se que quanto maiores o comprometimento do apetite e os sintomas da doença (CASQ), maior o comprometimento da qualidade de vida dos indivíduos com câncer. Ainda, metástase, sexo feminino e pertencer às classes econômicas mais altas foram características que contribuíram significativamente para o comprometimento da qualidade de vida dos pacientes avaliados.
Apesar da importância atribuída pela literatura(13,14) à ingestão alimentar como um fator interferente na qualidade de vida de pacientes com câncer, o presente estudo relevou que esta não foi significativa. Por outro lado, destaca-se a influência significativa do apetite e dos sintomas da doença para a qualidade de vida dos pacientes, bem como de variáveis clínicas e demográficas, corroborando estudos recentes.(4,30,31) Tais achados sugerem que estes fatores se sobrepõem à ingestão dietética e devem ser considerados pelos profissionais da saúde nos protocolos de intervenção, visando ao tratamento mais resolutivo e direcionado para melhoria da qualidade de vida dos pacientes com câncer.
Apesar da ingestão dietética não ter apresentado impacto na qualidade de vida, ressalta-se sua importância para manutenção da saúde e melhoria do prognóstico do paciente. A ingestão dietética diária dos pacientes ficou abaixo das recomendações, o que deve ser considerado preocupante.(32) Fearon et al.,(33) e Roxburgh et al.,(34) atribuem a ingestão inadequada de alimentos dos pacientes com câncer ao próprio tumor, enquanto Jeffery et al.,(18) e Pearce et al.,(35) atribuem tal fato à toxicidade do tratamento. Outros autores(2,3,36,37) afirmam que tanto o tumor quanto o tratamento são capazes de dificultar a ingestão de alimentos. A quantidade de energia ingerida por pacientes com câncer pode variar de acordo com o tipo de doença, o protocolo terapêutico, o estado nutricional prévio e as complicações, de modo que todos estes aspectos devem ser avaliados individualmente.
As relações significativas observadas entre a ingestão dietética e as características clínicas e demográficas também devem ser discutidas. A maior ingestão de energia e de macronutrientes dos indivíduos de classes econômicas mais altas pode ser atribuída ao maior poder aquisitivo para compra dos alimentos. Já a maior ingestão de energia, proteínas e lipídeos de indivíduos que exercem alguma atividade laboral pode estar relacionada ao consumo de refeições industrializadas ou fora da residência.(38) Pode-se especular ainda que os indivíduos que trabalham podem apresentar um quadro clínico mais favorável com menor número de sintomas e, portanto, apresentam melhor capacidade funcional, melhor apetite e menores efeitos colaterais do tratamento, o que pode contribuir para uma melhor alimentação, resultando na maior ingestão de macronutrientes e energia.
Ainda, pacientes classificados em sobrepeso apresentaram menor consumo de lipídeo do que os classificados em eutrofia e baixo peso. Este resultado pode ser atribuído ao fato de que indivíduos com sobrepeso, geralmente, recebem orientações de profissionais baseadas nas propostas da OMS(39) para limitar a ingestão de energia proveniente de lipídeo.
Quanto às propriedades psicométricas dos instrumentos (CASQ e EORTC QLQ C-30), ambos tiveram adequado ajustamento para a amostra de estudo somente após realização de algumas modificações. Alguns estudos(24,26,40,41) corroboram nossos resultados, apontando para a necessidade de ajustes destes instrumentos quando aplicados a diferentes amostras.
Em relação ao modelo estrutural testado, o apetite, os sintomas da doença, a presença de metástase, o sexo, e a classe econômica foram importantes para a qualidade de vida. O comprometimento do apetite e os sintomas decorrentes da doença foram altamente significativos para o comprometimento da qualidade de vida dos pacientes. O INCA(27) faz recomendações nutricionais específicas para pacientes oncológicos com baixo apetite e/ou presença de outros sintomas. Assim, sugerimos que estas recomendações sejam rigorosamente consideradas no manejo do paciente oncológico. A relação entre presença de metástase e maior comprometimento da qualidade de vida pode ser atribuída ao fato desta condição aumentar a debilidade do paciente e intensificar a intervenção/tratamento, fazendo com que os efeitos colaterais da doença sejam maiores e, em alguns casos, mais agressivos.
No nosso estudo, identificamos ainda que mulheres portadoras de câncer e indivíduos com melhores condições financeiras apresentaram pior qualidade de vida. Lopes et al.,(42) e Gijsberts et al.,(43) sugerem que, no curso de determinadas doenças, as mulheres apresentam sua qualidade de vida mais afetada do que os homens. Estes autores justificam tal fato a partir de aspectos não biológicos, apontando que as mulheres são mais suscetíveis psicologicamente aos estressores ambientais do que os homens, e elas apresentam maior carga de estresse físico e ambiental, principalmente, diante da dificuldade de manter suas funções rotineiras. Com relação à classe econômica, nossos resultados vão em direção oposta aos da literatura, de modo que qualquer argumentação a este respeito representaria apenas especulação, uma vez que, para justificar tal fato, uma investigação mais aprofundada dos indicadores sociais e econômicos da amostra deveria ser realizada.
A análise dos resultados deve considerar algumas limitações do estudo, como, por exemplo, a falta de uma avaliação dietética mais acurada, utilizando diferentes instrumentos, e do maior aprofundamento da condição clínica dos pacientes. Apesar disso, este estudo buscou utilizar amostra alargada, que incluiu indivíduos com diferentes diagnósticos, tratamentos e condições clínicas na tentativa de minimizar estes vieses.
A ingestão dietética dos pacientes com câncer avaliados não atingiu os níveis recomendados de energia e macronutrientes, mas este fato não interferiu diretamente no comprometimento da qualidade de vida relatada por eles. Apetite/sintomas, sexo, presença de metástase e classe econômica impactaram significativamente na qualidade de vida dos pacientes e devem ser considerados em protocolos para tomada de decisão clínica.